Capítulo 4

2833 Palavras
Marco A madrugada me encontra na minha academia particular, castigando um saco de pancadas pesado com golpes precisos e brutais. Cada impacto ecoa pelo espaço vazio, acompanhando o ritmo das acusações que martelam minha cabeça. Monstro. Predador. Traidor. O suor escorre pelo meu peito nu enquanto tento conter a raiva que vem crescendo desde que Rebecca saiu do meu escritório. Seu “sim” sussurrado me assombra, tanto quanto a expressão de rendição nos olhos dela — como se eu tivesse apagado pessoalmente alguma luz vital dentro daquela garota que passei anos tentando proteger. O saco absorve outra sequência violenta. Gancho de esquerda. Cruzado de direita. Uppercut. Cada golpe envia ondas de choque através das minhas mãos enfaixadas, mas a dor não faz nada para acalmar minha mente. Passei anos mantendo-a segura, de longe. Observando-a florescer como artista. Mantendo a escuridão do nosso mundo à margem da sua existência inocente. Agora eu sou a escuridão que ela mais teme. A ironia seria engraçada se não fosse tão miserável. O sangue escorre pelas bandagens — rachei os nós dos dedos de novo. Ótimo. A dor física é simples. Concreta. Diferente do que sinto ao lembrar o rosto dela quando falei do casamento. O modo como ela me olhou, como se eu fosse algo que precisasse ser combatido. Ela não estava errada. A porta do ginásio se abre e Daniel entra, com o tablet em mãos. Aos cinquenta e cinco anos, meu conselheiro ainda se move com a graça calculada de um predador, mesmo depois de todos esses anos ao meu lado. Seus cabelos grisalhos e sua aparência de avô escondem uma das mentes mais afiadas e implacáveis da Costa Leste. — Chefe, temos novidades. Dou um último soco que faz o saco balançar violentamente. — Relatório — ordeno, começando a desfazer as bandagens. A gaze branca, agora manchada de vermelho, parece uma metáfora conveniente para o que estou prestes a fazer com a vida de Rebecca. — A família Greco não gostou do anúncio do noivado. Nicolai já está fazendo ameaças. — Daniel desliza a tela do tablet. — Reforçamos a segurança no apartamento e no estúdio da Srta. Maranzano. O Padre Romano foi confirmado para as duas cerimônias — funeral e casamento. E... Ele hesita. — O quê? — A mãe da Srta. Maranzano está no portão da frente. Está... insistindo em vê-la. — Tão cedo assim? — praguejo em italiano, já sentindo a dor de cabeça se aproximar. Claro que Katherine apareceria agora. Provavelmente farejando sua parte do acordo. — Mande-a para o meu escritório. Vou tomar um banho primeiro. Trinta minutos depois, estou vestido com um dos meus ternos pretos característicos, o cabelo ainda úmido. Entro no escritório e encontro Katherine Maranzano andando de um lado para o outro com seus saltos de grife, como se estivesse numa passarela. Aos 45 anos, ela continua deslumbrante, mas sua beleza é uma arma — meticulosamente mantida, estrategicamente usada. Rebecca é luz acidental. Katherine é brilho planejado. Compartilham a mesma pele pálida e feições refinadas, mas onde Rebecca é suavidade e força contida, Katherine é aço por trás da seda. — Como você ousa? — ela sibila, virando-se para mim com os olhos faiscando. — Meu marido nem esfriou no túmulo e você já está forçando minha filha a se casar? — Sente-se, Katherine — respondo friamente. Estou cansado desse teatro. — Nós dois sabemos que você não está aqui por preocupação maternal. A máscara some como mágica. Ela se senta com elegância, cruzando as pernas devagar. Mesmo de luto, está impecável — cabelo platinado milimetricamente no lugar, vestido preto Chanel que provavelmente vale mais que o carro de um delegado. — Tudo bem. Vamos discutir os números. — Sua mesada continua. O fundo fiduciário de Rebecca permanece intacto. Isso é inegociável. Sento-me atrás da mesa, já antecipando cada palavra daquela mulher. — E a minha posição na sociedade? Claro. O essencial. Que figura patética ela é — mais preocupada em manter convites para bailes beneficentes do que em salvar a filha de um destino que ela mesma suportou por conveniência. — Será garantida pelo casamento da sua filha comigo — minha voz baixa, mas cortante. — Mas ouça com atenção: se você fizer qualquer coisa que perturbe Rebecca durante essa transição... sua mesada e seu lugar entre as damas da sociedade vão evaporar. E não vão voltar nunca mais. Ela entende. O aviso crava fundo. Katherine se levanta com compostura, alisando o vestido, os olhos percorrendo meu escritório até se fixarem em uma foto virada sobre a mesa. Um sorriso cínico curva seus lábios. — Seu pai, Giuseppe, sempre soube lidar com situações delicadas — diz com falsa leveza. — Especialmente envolvendo meninas. Uma sombra me atravessa antes que eu consiga esconder. — Meu pai não é relevante para essa conversa. — Não? — O sorriso dela se expande, venenoso. — Ele estava tão... envolvido no seu casamento com Letícia . Pausa. — Só lembre disso, Marco: Rebecca não é Letícia . Sua primeira esposa — que Deus a tenha — foi uma perfeita donna Mancini. Uma perda trágica. O nome dela me atinge como uma faca bem afiada. Minha mão aperta a beirada da mesa com tanta força que a madeira range. — Saia. Katherine obedece sem protestar, o salto alto ecoando como disparos enquanto desaparece pelo corredor. Fico ali, estático, com as mãos tremendo. Letícia . Mesmo depois de uma década, o nome dela ainda sangra. Ainda pesa. Katherine sabe o que está fazendo. Ela quer me lembrar que falhei. Que protegi m*l. Que arrastei alguém que amava direto para a morte. Que talvez eu esteja fazendo tudo de novo. Respiro fundo. Forço a mente a voltar ao presente. Abro o feed de segurança no meu laptop. Rebecca está em seu estúdio. Refugiada em sua arte. Ela parece pequena entre as telas e tintas, mas há algo no movimento de seus pincéis — uma fúria contida, uma dor que se transforma em forma e cor. O quadro que começa a ganhar vida é escuro, mais do que seu habitual. Tons de preto, azul profundo, pinceladas agressivas, contornos duros onde antes havia suavidade. Ela está lidando com seu trauma da única forma que sabe. E eu... estou observando de longe. De novo. Como sempre. Mas desta vez, não posso protegê-la das sombras. Porque dessa vez... Eu sou a sombra. Meu peito se aperta ao observá-la. Mesmo através das imagens de baixa resolução das câmeras de segurança, consigo ver a tensão em seus ombros, a maneira como ela ataca a tela como se ela mesma tivesse cometido alguma injustiça contra ela. Está usando uma de suas camisas largas de pintura, o cabelo escuro bagunçado no topo da cabeça, completamente alheia à própria beleza. Quão vulnerável. Meu telefone vibra com uma mensagem de Dário . "Reunião hoje à noite. As outras famílias querem garantias sobre a transição de poder." Mais um rumor — esse, vindo do meu chefe de segurança: "Nicolai Greco foi visto perto do estúdio da Srta. Maranzano." Último zumbido, de um número desconhecido: "Você não pôde proteger Letícia . Não vai conseguir protegê-la também." A tela do laptop estala sob minha mão, formando teias de aranha onde meus dedos pressionam com força desmedida. Raiva e medo guerreiam em meu peito, tornando o simples ato de respirar uma luta. Eles vêm de todos os lados — a família Greco, os outros chefões, e quem quer que tenha enviado aquela mensagem anônima. E Rebecca está sentada em seu estúdio, pintando sua escuridão, completamente alheia à quantidade de sombras que se acumulam ao seu redor. Pego o celular, forçando a voz a permanecer firme: — Daniel, mande um carro buscar Rebecca. Traga-a para o complexo imediatamente. Uma pausa, lembrando-me da proximidade de Nicolai com o estúdio dela: — E se Nicolai Greco chegar a quinze metros dela, mate-o. Meus pés me levam até o cofre particular quase por instinto. A combinação é uma memória sádica— aniversário da Letícia . Porque aparentemente sou masoquista. Lá dentro, ao lado de pilhas de dinheiro e documentos confidenciais, repousa uma pequena caixa de veludo. Mesmo depois de uma década, ainda hesito em tocá-la. O anel era da minha avó — uma esmeralda impecável cercada por diamantes. Um símbolo do poder dos Mancini, passado de geração em geração. Dei-o a Letícia uma vez, observando seus olhos brilharem quando o deslizei em seu dedo. Aqueles mesmos olhos estavam vazios e sem vida quando encontrei seu corpo. Seu sangue manchava a pedra com um tom mais escuro de verde. Já o limpei e restaurei, mas às vezes juro que ainda consigo ver as manchas. Ainda sinto o calor pegajoso do sangue dela enquanto embalava seu corpo destroçado. A esmeralda brilha para mim agora, inocente como uma serpente no Éden. Será que a mesma maldição será lançada sobre o destino de Rebecca? A porta do meu escritório se escancara, interrompendo meus pensamentos sombrios. Luíza entra furiosa — minha filha de dezessete anos, irradiando fúria em jeans de grife e uma jaqueta de couro curta. Ela é tanto minha filha que chega a doer — o mesmo cabelo preto, os mesmos olhos azul-acinzentados, a mesma incapacidade de esconder o que sente. — Diga que não é verdade — ela exige, com a voz embargada. — Diga que você não vai se casar com Beca Maranzano. — Luíza . — Ela é pouco mais velha que eu! — A mágoa em sua voz é como facadas no meu estômago. — Quantos anos ela tem? Vinte e dois? Você está falando sério agora? Você me deu uma bronca por eu ter conversado com uma caloura na festa da Juliana, mas você pode se casar com uma? — Isso é diferente. — Como? — Ela anda de um lado para o outro no escritório como um animal enjaulado. — Como é diferente? Porque é uma questão de poder? Porque você precisa controlar o território Maranzano agora que Alessandro morreu? — Cuidado com o tom. — Meu aviso sai mais áspero do que eu gostaria, enquanto a raiva escoa de mim como água quente. — Você não entende as complexidades de… — Ah, eu entendo perfeitamente. — Sua risada é amarga, cortante. — Eu entendo que menos de dois dias depois da morte do pai dela, você está forçando uma garota quase da minha idade a se casar com você. Que classe, pai. Fazendo jus ao nome Mancini. — Não se trata de… — Ela sabe sobre a mamãe? — A pergunta atinge como uma bala. E Luíza sabe disso. Seus olhos brilham com o golpe. — Ela sabe o que aconteceu com ela? Ou você vai manter Beca no escuro como mantém todo mundo? — Chega! — Minha voz ecoa pelo escritório, fazendo até minha filha feroz recuar. A culpa me invade no mesmo instante — detesto usar minha voz de don com ela. Mais baixo, acrescento: — O que está feito, está feito. Rebecca será sua madrasta, e você a tratará com respeito. — Minha madrasta? — ela grita, sem qualquer pretensão de contenção. — Ela é só cinco anos mais velha que eu, pai! Somos literalmente da mesma geração! Mas, claro, vamos fingir que isso é normal. Vamos fingir que você não está usando ela como usa todo mundo. — Eu disse que chega. — Minha voz agora é baixa, perigosa. Luíza está cruzando uma linha — e eu não vou tolerar isso. — Você não tem ideia do que eu fiz para manter esta família segura. Do que ainda estou fazendo. — Família? — Sua voz falha ao pronunciar a palavra, seus olhos brilhando de mágoa e fúria. — É assim que chamamos agora? Porque, do meu ponto de vista, vocês só sabem repetir o mesmo padrão. Outra esposa jovem. Outro jogo de poder... — Sua mãe fez as escolhas dela — interrompo, com o controle por um fio. Falar de Letícia ainda é como engolir vidro. — A situação da Rebecca é diferente. Luíza zomba, cruzando os braços sobre o peito. — Certo. Porque dessa vez você está forçando ela a isso. Suas palavras transbordam veneno. — Pelo menos a mamãe te amava. Eu não sou burra. Beca provavelmente tem medo de você. Mas acho que isso não importa, contanto que você consiga seu precioso território, certo? A acusação me atinge como um soco no estômago. Porque ela tem razão — Rebecca tem medo de mim. Mas o medo pode mantê-la viva quando o amor não conseguiu salvar Letícia. — Essa discussão acabou. — Contorno a mesa, tentando diminuir a distância entre nós. — Eu sei que é difícil... — Difícil? — Ela se afasta do meu toque. — Você está virando a nossa vida de cabeça para baixo por uma garota que provavelmente nunca esteve nesta casa. Que talvez nem saiba que eu existo, além de ser ‘a filha do Marco’. E agora? A gente tem que brincar de família feliz enquanto a cidade inteira assiste? — Tudo o que faço é por essa família. Por você. — Não. — Os olhos dela estão puros gelo agora, tão parecidos com os da mãe que chega a doer olhar para eles. — Tudo o que você faz é por poder. Por controle. E Beca é só a sua mais nova vítima. Ela sai do escritório antes que eu possa responder, me deixando sozinho com a caixinha do anel... e meus demônios. A verdade em suas acusações queima mais do que qualquer ferimento à bala. Porque ela está certa — estou usando Rebecca. E o fato de ser para protegê-la não torna a manipulação menos c***l. Do lado de fora da janela, nuvens de tempestade se acumulam sobre Manhattan, transformando o sol da manhã em uma penumbra apocalíptica. Relâmpagos tremem ao longe, prometendo violência. A cidade que passei a vida controlando parece estranha agora. Ameaçadora. Cada sombra pode esconder um inimigo. Cada janela, a mira de um atirador. Em três dias, enterrarei meu melhor amigo. E me casarei com a filha dele. Nada será como antes. A caixa do anel pesa em minha mão, carregada de história, culpa e sangue. A esmeralda reflete a pouca luz que resta, lançando um fogo esverdeado sobre a mesa. Letícia usou esse anel por anos antes de morrer. Agora, ele adornará o dedo de Rebecca — marcando-a como protegida... e condenada. Penso em como ela parecia jovem em seu estúdio essa manhã. Tinta nos dedos. Escuridão fluindo de seu pincel. Tanto talento. Tanta vida. Tudo o que Letícia era — e tudo o que ela não era. Onde Letícia era delicada, Rebecca é aço sob a seda. Onde Letícia aceitou o nosso mundo, Rebecca luta contra ele. E onde Letícia um dia me amou... Rebecca... Cristo. Não tenho o direito de pensar nela assim. Não tenho o direito de notar como seus olhos brilham quando está brava, como suas mãos se movem quando fala de arte, como ela ilumina um ambiente só por existir. Ela é filha do Alessandro. Uma responsabilidade. Mas também é a mulher que assombra meus sonhos há mais tempo do que estou pronto para admitir. O trovão estronda no céu, fazendo as janelas chacoalharem. A tempestade está quase aqui. Assim como as ameaças — o interesse sádico de Nicolai Greco, a ambição m*l disfarçada de Dário , as outras famílias à espreita de qualquer sinal de fraqueza. Todos estarão no funeral. Todos estarão no casamento. Avaliando Rebecca, medindo meus movimentos, procurando rachaduras. A esmeralda brilha para mim em seu ninho de veludo e, por um momento, juro que vejo o sangue de Letícia novamente. Minhas mãos tremem ao fechar a caixa. Não pude protegê-la. Não pude salvá-la desse mundo. Agora Rebecca usará o mesmo anel. Enfrentará os mesmos perigos. Circunstâncias diferentes. A mesma maldição. — Vou fazer melhor dessa vez — sussurro na escuridão crescente. As palavras podem ser para Alessandro, para Letícia, para a própria Rebecca... Ou talvez sejam só mais uma mentira que conto a mim mesmo. A chuva finalmente desaba, açoitando as janelas como acusações. Três dias. Três dias até que eu faça Rebecca minha. Três dias até que eu a prenda à minha escuridão. Tudo em nome de mantê-la segura. Que Deus nos ajude. Guardo a caixa do anel no bolso do terno, e seu peso me lembra, a cada passo, o que está em jogo. Lá fora, a tempestade ruge. E em algum lugar dessa cidade, meus inimigos se movem. Mas que venham. Que testem minha determinação. Minha proteção. Minha reivindicação. Já perdi uma esposa por causa deles. Eles terão que me matar antes de levarem outra. Meu telefone vibra — mais uma mensagem sobre os preparativos do funeral, do casamento, os mil detalhes que unem uma vida à outra. Ignoro. Na breve iluminação de um raio, meu reflexo surge na janela — um homem no fio da navalha entre o dever e o desejo, entre a proteção e a posse. O monstro que Rebecca teme. E o homem que queimaria o mundo para mantê-la segura.
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