Capítulo 5

2334 Palavras
Beca A tela diante de mim sangra em vermelho e preto, minhas pinceladas se tornando mais violentas a cada minuto. Respingos de tinta mancham meus jeans mais velhos e meu suéter oversized favorito, mas não me importo. Estou no meu estúdio desde o amanhecer, tentando me perder na minha arte. Mas nem mesmo aqui — no meu santuário perfumado de terebintina, banhado por luz natural — consigo escapar da realidade. O funeral do meu pai é amanhã. Meu casamento — meu Deus, meu casamento — acontece no dia seguinte. Casamento. A palavra me dá náuseas. Minha mão treme, lançando um traço carmesim pela tela como uma ferida aberta. Não era para ser assim. Nos meus sonhos, meu pai me levaria até o altar da Catedral de São Patrício, radiante de orgulho em seu melhor terno. Os bancos estariam cheios de familiares e amigos, a luz do sol atravessando os vitrais e tingindo o mármore em tons de arco-íris. Meu noivo — um rosto desconhecido, mas cheio de ternura — me esperaria no altar, com os olhos brilhando de amor enquanto eu me aproximava em meu vestido branco perfeito. Em vez disso, caminharei sozinha. Meu pai morto, descansa frio em seu caixão, e meu noivo será Marco Mancini. A ideia me embrulha o estômago. Ele estará lá, impecável em um de seus ternos pretos sob medida, os olhos azul-aço cravados em mim com aquela expressão de culpa e posse que me arrepia até os ossos. Não haverá amor. Nem alegria. Apenas poder, política... e uma proteção que eu nunca pedi. Lágrimas turvam minha visão enquanto as lembranças do meu pai me inundam. Seu sorriso quando fui aceita no programa de artes da Columbia. O jeito como ele se sentava no meu estúdio por horas, observando em silêncio, sem nunca tentar me moldar à sua imagem. — Você é uma artista, minha Beca, — ele dizia, com a voz carregada de orgulho. — Você cria beleza em um mundo que precisa desesperadamente dela. Deus, como eu o amava. O adorava, de verdade. Mesmo sabendo quem ele era — o que ele fazia —, nunca deixei de vê-lo como meu herói. Ele fez de tudo para me manter longe do seu mundo, para me oferecer a vida normal que ele nunca teve. E agora, ironicamente, aqui estou eu... sendo empurrada diretamente para o centro daquilo de que ele tentou me proteger. Meu telefone vibra pela centésima vez. Giselle, minha melhor amiga, não para de mandar mensagens desde que contei sobre o acordo. O aperto em meu peito cresce ao lembrar do choque no rosto dela quando finalmente admiti o que aconteceu com meu pai. Ela ficou pálida, mas não fugiu. Em vez disso, apertou minhas mãos e começou a planejar nossa fuga. Você não pode se casar com ele! dizia sua última mensagem. Podemos fugir. Tenho contatos. Podemos desaparecer. Minha mão treme enquanto digito. Eles nos encontrariam, E. Sempre encontram. Giselle sempre foi meu farol de normalidade desde o primeiro ano. A única pessoa que me via apenas como Beca, a estudante de arte com tinta nas unhas e um coração faminto de cor — não como Rebecca Maranzano, filha de um dos homens mais poderosos de Nova York. Tentei com todas as forças manter meus dois mundos separados. Mas agora eles colidem com violência, e temo que ela seja engolida no processo. Volto à pintura e encaro a coisa sombria que está emergindo na tela. Professor Matias ficaria chocado. Já se foram minhas paisagens urbanas serenas e estudos de luz delicados. Essa obra grita com tons crus e traços agressivos — grades, asas quebradas, pactos selados com sangue, promessas que apertam como correntes. Talvez eu a use como tese. Casamento Arranjado a Óleo. A ideia me arranca uma risada amarga. Uma batida na porta me faz sobressaltar, e meu pincel cai com um estalo no chão manchado. — Estamos fechados! — grito, mesmo sabendo que a galeria não abre desde a morte do meu pai. O humor n***o da frase evapora quando uma voz masculina me responde do outro lado: — Srta. Maranzano. Reconheço o tom. Um dos homens de Marco — o vi no hospital. — O Sr. Mancini enviou um carro. A senhorita precisa vir conosco agora. — Estou trabalhando, — digo com firmeza, mesmo com o coração disparado. Quem ele pensa que é, mandando seus homens me buscar como se eu fosse um pacote? Só porque aceitei esse casamento, não significa que sou dele. Ainda não. Abaixo-me para pegar o pincel. — Diga ao Sr. Mancini... — Nicolai Greco foi visto na área. — A voz do homem se torna mais grave. — Por favor, senhorita. Não complique. Meu sangue gela. O nome é uma sentença. O pincel escorrega dos meus dedos, agora dormentes. Caminho até a janela, e os SUVs pretos enfileirados na rua me encaram de volta. Marco não está arriscando seu investimento. — Deixe-me arrumar minhas coisas, — murmuro, orgulhosa por manter a voz firme enquanto mando uma mensagem rápida para Giselle. Meus dedos tremem enquanto tento manter os movimentos automáticos, normais, mas nada está normal. Meu celular vibra: Beca, não! Não vá com eles. Estou a cinco minutos daí. Meus dedos pairam sobre as teclas. Giselle — doce e feroz — sempre pronta para lutar por mim. Mas isso... isso não é uma briga que ela pode vencer. Fique longe, respondo. É muito perigoso, E. Explico depois. Confie em mim. Estou enfiando os pincéis na bolsa quando noto um movimento do lado de fora. Um homem parado do outro lado da rua observa o estúdio com olhos predatórios. Bonito de um jeito c***l — terno caro, cabelo escuro, mandíbula marcada. Mas seus olhos... seus olhos são como os de um tubarão. Vazios. Famintos. Mesmo sem nunca tê-lo visto, eu sei. Nicolai Greco. Nossos olhares se cruzam através do vidro. Ele sorri. E é o tipo de sorriso que pertence a um homem que gosta de destruir coisas bonitas. — Senhorita Maranzano, — o guarda ao meu lado está tenso. — Precisamos ir. Pego minha bolsa, as mãos trêmulas quase a deixando cair. O homem — enorme, com cicatrizes nos nós dos dedos e cabelo grisalho — me guia pela saída dos fundos. Mais homens aparecem, me cercando como uma muralha silenciosa. O ar do outono me atinge com o cheiro de escapamento, chuva e medo. Cada buzina me faz estremecer. Cada sombra se transforma em ameaça. E no fundo, sei: estou entrando em um novo mundo. Um mundo onde a arte não é refúgio. É disfarce. Eles me empurram para dentro de um SUV que já me espera, os bancos de couro frios contra minha calça jeans manchada de tinta. O interior exala aquele cheiro inconfundível de carro novo — couro caro e um leve toque metálico de bronze que me embrulha o estômago. Assim que a porta se fecha com um estalo surdo, ouço gritos vindos da rua. — Dirija — ordena o guarda, e o veículo se afasta suavemente do meio-fio. Através dos vidros escurecidos, vejo Nicolai Greco observando nossa partida, o telefone pressionado contra o ouvido. Há uma ameaça casual em sua postura, um veneno frio na forma como seus olhos acompanham cada movimento nosso. Sinto a bile subir pela garganta. A isso eu estaria condenada se não tivesse concordado em me casar com Marco. Foi disso que meu pai morreu tentando me proteger. — Para onde estamos indo? — pergunto, mesmo já sabendo a resposta. — O complexo — responde o guarda. — Ordens do Sr. Mancini. Claro. O complexo Mancini — minha prisão disfarçada de palácio. Fecho os olhos e as lembranças invadem, cortantes como vidro. Não vou lá desde os doze anos, quando ainda acreditava que o mundo do meu pai era seguro. Na época, a propriedade parecia saída de um conto de fadas: jardins impecáveis, fontes de mármore e esculturas clássicas que eu adorava desenhar. Lembro da obsessão em capturar a luz nos rostos de pedra, o traço suave de cada músculo esculpido, o fascínio pela simetria dos jardins italianos, com suas linhas de visão perfeitas. Agora me pergunto quantas dessas linhas foram criadas para segurança, não para beleza. O carro serpenteia por Manhattan, seguindo um trajeto deliberadamente tortuoso — uma medida de precaução. Passamos pelas vitrines elegantes da Madison Avenue, pelo Upper East Side, onde o dinheiro antigo repousa sob fachadas neoclássicas, depois cruzamos a ponte que marca o fim da cidade e o início do território silencioso das propriedades privadas. A cada quilômetro, me afasto mais da vida que construí, dos meus quadros, da liberdade que lutei tanto para manter. Meu telefone vibra no colo. É uma última mensagem, antes de perdermos o sinal. Minha mãe. Sério, querida? Marco Mancini? Bem... poderia ser pior. Pelo menos ele é rico. Precisamos te vestir de acordo — esse visual boêmio não combina com uma princesa da máfia. Lágrimas ardem, mas me recuso a deixá-las cair. Meu pai ainda nem foi enterrado e ela já está pensando em vestidos e aparências. Mas essa é Katherine Maranzano — sempre obcecada com status e escadas sociais, não importa quantas almas precise pisar para subir. Ela nunca entendeu por que eu escolhia tinta em vez de batom, por que preferia o cheiro de esmalte ao de perfume francês, por que trocava coquetéis beneficentes por noites em estúdios apertados com música alta e liberdade. "Você poderia ser tão bonita", ela suspirava, decepcionada, observando meu cabelo desgrenhado e minhas roupas gastas. "Se ao menos se esforçasse." Como se beleza fosse a única moeda que importasse. Como se eu pudesse criar algo verdadeiro em roupas Chanel, com as mãos presas em luvas de seda. Desligo. Olho para fora e vejo a cidade desaparecer no retrovisor. Nova York — minha musa barulhenta e indomável — se torna apenas uma silhueta, engolida pela distância. Em seu lugar surgem os subúrbios milionários: ruas impecáveis, muros altos, mansões que mais parecem fortalezas. Cada uma delas guarda segredos. A que me espera guarda o maior deles. Quase uma hora depois, os portões de ferro se abrem com um chiado grave, revelando o brasão da família Mancini. Meu estômago se contrai. O complexo está ainda mais grandioso do que eu lembrava — uma imensa villa em pedra clara, três andares de uma elegância antiga e perigosa. A segurança é discreta, mas onipresente. Rosas escalam os muros, suas últimas flores do outono tingindo a fachada de vermelho-sangue. Fontes dançam no pátio circular, e a luz do fim da tarde transforma a água em cintilações de vidro estilhaçado. É lindo. É sufocante. É a minha cela. Na escadaria da frente, Marco me espera. Seus ombros largos estão rígidos sob o paletó escuro. Ele parece esculpido ali — uma figura de poder que não precisa se mover para comandar o ambiente. Há algo traiçoeiro na forma como meu coração acelera. Seu magnetismo é real, como um campo gravitacional do qual não consigo escapar. Ao lado dele, uma garota que só pode ser sua filha. Luíza Mancini. Ela é linda de um jeito preciso e caro — cabelo escuro como verniz, maquiagem perfeita, roupas que gritam alta costura. Ela tem os olhos de Marco... e neles, vejo puro ódio. — Bem-vinda ao lar — diz Marco, abrindo a porta do carro e estendendo a mão. Recuso o gesto e desço sozinha. — Essa não é minha casa. — Agora é — diz ele, com a voz mais baixa, quase gentil. Há algo em seu tom que faz meu estômago revirar. Odeio que meu corpo ainda reaja a ele. Odeio mais ainda não conseguir evitar. — Nicolai fez contato? — pergunta ele. — Estava vigiando meu estúdio. Algo muda nos olhos de Marco — uma faísca de fúria. Ele se vira para um dos homens, soltando ordens rápidas em italiano. A língua sai de sua boca como seda sobre lâmina. Sua mandíbula se contrai. Forço-me a desviar o olhar. — Amanhã vamos buscar suas coisas no apartamento — diz ele, voltando para mim. — Por enquanto, Maria vai te mostrar seu quarto. Uma pausa. Meu peito aperta. — Nosso quarto. — Prefiro ficar num quarto de hóspedes — digo rápido demais. As palavras ardem, junto com o rubor que sobe ao meu rosto. — Impossível. — A firmeza em sua voz não deixa espaço para contestação. — As aparências importam, especialmente agora. As outras famílias estarão observando... qualquer sinal de fraqueza pode ser fatal. — Deus te livre de parecer fraco — interrompe Luíza , com veneno escorrendo da voz. — Tenho certeza de que Beca entende tudo sobre aparências. Não é, futura madrasta? — Luíza — adverte Marco, cortante. — O quê? Só estou dando as boas-vindas. Devo te chamar de Mamãe Beca? — O sorriso dela é afiado como vidro. — Mas talvez não deva se acomodar muito. As esposas do papai... costumam ter acidentes infelizes. O quê? — Chega! — O rugido de Marco ecoa pelos degraus de mármore. — Luíza , para o seu quarto. Agora. Ela ergue o queixo, vira nos calcanhares e desaparece pela entrada. Deixando perguntas em brasa em minha mente. Esposas? No plural? Acidentes? Marco se vira para mim. — Rebecca — sua voz agora mais baixa, mas firme. — Precisamos conversar. Olho para ele — para o homem que será meu marido em menos de quarenta e oito horas — e um calafrio desce por minha espinha. Ele guarda segredos em seus olhos azul-aço, segredos que nenhum quadro jamais conseguiria capturar. — Sim — murmuro. — Acho que precisamos, sim. Um vento frio balança as trepadeiras floridas, espalhando o perfume das rosas e a colônia dele pelo ar. Atrás de nós, os portões de ferro se fecham com um som que parece definitivo. Como um ponto final. Não há como voltar. Nova York ficou para trás. Meu pai também. Tudo o que me resta agora é descobrir que tipo de mulher serei ness e novo mundo. E se vou sobreviver à mulher que preciso me tornar.
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