Pré-visualização gratuita Prólogo
Abril de 1507
O veleiro propulsionava-se com o subsídio de um conglomerado de velas, confeccionadas a partir de um tecido com corte, no qual as proporções denotavam hórrida apropriação. Apoiadas em mastros e controladas por um agrupamento de cabos conhecidos como cordoalha, o que adjetivava a armadoria.
Ali do convés, Vitória, sozinha, colocava-se a apreciar a complexidade do veleiro enquanto despedaçava a flor que fora entregue a ela durante o embarcar na semana anterior (uma jasmim como forma de cortesia do navio para ajudar com o m*l cheiro que a maioria dos tripulantes exalava). Seu cabelo revoava com o vento, simbolizando a literal liberdade. Poder-se-ia saber se uma dama era comprometida ou não pelo modo como usava o penteado; as moças solteiras decidiam por deixar as madeixas soltas, enquanto as casadas optavam por prendê-las.
Às vezes, Vitória as prendia propositalmente quando queria ser lembrada de seu estado de espirito. Mas o penteado que usava, assim como sua vida, era decidido pela rainha conforme a ocasião.
Naquela singela manhã, no entanto, Vitória vestiu seu melhor traje (um vestido longo e espesso), soltou os cabelos, sobrepusera um manto com capuz e escapuliu as escondidas de sua cabine.
Desde que deixara às pressas o castelo em Portugal, alguns dias antes, ela havia lutado para ter um momento sozinha, para tentar organizar seus pensamentos. Pois ainda estava processando o que estava acontecendo.
A morte de seu pai e a morte de sua irmã mais velha foram lástimas que ela não foi capaz de instaurar uma organização em sua cabeça. Principalmente em um meio repleto de aglomeração: onde o tumulto e o caos reinavam mais que a própria rainha Elisabella I. E este foi o fator decisório que a fez apelar a essa conduta. O aceitável disso era que sua mãe controladora não dera por sua falta.
Até agora.
— Vossa alteza?
Ela virou-se para deparar-se com Rainer, conselheiro do trono, parado atrás dela.
Ele usava uma vestimenta feita a partir de algum tecido oriental. E, pela expressão em seu rosto, não parecia nem um pouco satisfeito com a presença dela naquela parte do veleiro tão cedo.
O sol ainda estava nascendo no horizonte, projetando uma resplandescência alaranjada sobre as águas bonançosas do mar.
— Rainer? — Vitória estreitou os olhos. — O que você faz aqui?
Ele aproximou-se.
— Com todo o respeito, alteza, acho que sou eu quem deveria fazer essa pergunta.
O som do navio rasgando o mar era aberrante. O leme propelia a embarcação vertiginosa.
— Eu, é, hum, estava prestes a voltar à meu repartimento. Vim apenas ver o que poderia estar circulando pelo convés essa manhã — revelou Vitória.
— Além de piolhos, pulgas e doenças? — Rainer ironizou. — Ladroes, certamente.
— Mamãe mandou você?
Ele assentiu.
Vitória arquejou e tornou a olhar para o mar, desviando o olhar do conselheiro.
— Não a julgue — pediu ele, com gentileza, ao notar a face de desdém dela. — Vossa alteza sabe sobre os perigos de velejar em uma caravela?
— Deixe-me adivinhar: ser escoltada?
Ele sorriu.
— Essa é a vantagem — brincou.
Ela se forçou a sorrir da piada.
Mas, destarte, não conseguiu deter sua boca a falar:
— Eu passei a vida sendo escoltada no palácio, de onde jamais saí até embarcar nesse navio. — Vitória fez uma expressão de amargura. — Não vou deixar de aproveitar essa liberdade. Não foi por isso que não trouxemos guardas a bordo? — Ela olhou com melancolia para Rainer. — O objetivo da viagem não era tentar ser uma pessoa comum?
— Acontece que, mesmo que finja, vossa alteza não é uma pessoa comum. — Rainer se aproximou e disse num tom de voz diminuto. — Você é uma princesa.
A expressão dela se suavizou. Apesar disso sua mão continuou firmada no batente.
Ele prosseguiu:
— A terceira na linha de sucessão ao trono de Portugal. — Olhou ao redor para verificar se alguém o havia escutado. — Apesar, é claro, de estar passeando em um veleiro. Mas querendo ou não, há pessoas que não veem dessa forma. — Ela ficou cabisbaixo. — Olham para a senhora e enxergam apenas uma herdeira da realeza desprotegida, que se sequestrada, valerá como moeda de troca. A senhora é uma adolescente e, mais, uma garota.
Vitória disse por cima do ombro:
— Eu sei me cuidar muito bem sozinha.
— Não haja como uma criança.
— Então pare de me tratar como tal! — vociferou ela, quase sem querer. Após notar o quanto soou grosseira, preferiu se abster do direito a fala.
Depois disto, o silêncio pairou entre os dois.
Rainer colocou a mão no bolso da vestimenta e se deslocou até ficar ao lado da princesa.
Ele olhou para a direção que os olhos de Vitória estavam fixos, para além do mar, no horizonte.
— Vossa alteza sentirá saudades de casa? — indagou ele, cuidadosamente, como se não quisesse que a pergunta ofendesse ela de alguma forma.
Vitória suspirou longamente. Em seguida, ainda olhando para o mar, pronunciou-se.
— O problema não é esse. Afinal que passarinho sente falta da gaiola quando é solto? — Tentou, em vão, sorrir. — Eu cresci atrás daqueles muros — Não desgrudou em momento algum os olhos do panorama a sua frente, como se conseguisse enxergar, além da vastidão daquela água, a suspensão de pedra o castelo. — É que, depois de tudo o que aconteceu, meu maior desejo era sair dali, mas, agora que consegui, não estou me sentindo da forma como imaginei que estaria. E meu confinamento não ajuda.
— Eu entendo. Imagino o quanto deva ser entediante ficar enclausurada em sua repartição, porém, por mais opressora que seja obedecer essa regra, faz parte do protocolo, e, como já lhe foi dito antes, todo cuidado é pouco para sua segurança.
— Este navio inteiro não é seguro. Estive observando pouco, mas percebi em uma rápida passada de olhos que ele está caindo aos pedaços... — Ela apontou ao redor.
A falta de segurança se dava de maneira exclusiva pela má conservação da embarcação, pois apresentava péssimo estado, com seus cascos apodrecidos. Em geral, ultimamente, a cada três navios que partiam de Portugal, quatro afundavam. Bastava apenas olhar no em torno para saber o motivo.
Vitória conseguia ouvir o ranger da madeira sob a pressão do vento nas velas.
Sem mencionar, inclusive, o fato de que poderiam, a qualquer momento, sofrer um ataque de piratas ou, pior, uma doença contagiosa poderia se alastrar pelo navegante. A ausência de saneamento era exorbitante ali. Sendo assim, Vitória achava um exagero da parte de sua mãe se preocupar com algo extremamente trivial quando, na verdade, existiam coisas piores com que devesse se preocupar.
— ...Terei sorte se for morta por um marujo interesseiro antes do veleiro afundar — Vitória exibiu um gracioso sorriso.
Porém Rainer não manifestou o mesmo humor de sua piada.
— Amaldiçoada seja suas palavras, ó criança tola. Bata na madeira três vezes — disse ele, sério. — Nossa boca tem poder — ele martelou com o punho uma das vigas da armadoria. —, a mesma boca que abençoa, pode, também, amaldiçoar.
Ela deu de ombros.
— Não acredito em superstições.
— Aconselho a parar de conviver com seu irmão — observou ele. — Está cada dia mais parecida com ele.
— Apesar disso, você não o repreende, por que ele é homem. — revelou ela. — Isso quer dizer que ele pode fazer o que quiser — completou, de maneira triste.
— Na verdade, — Rainer cruzou os braços atrás do corpo. — ele não ouve ninguém e, além disso, se dissermos a ele para não fazer determinada coisa, ele a faz propositalmente. Então preferimos evitar certas situações que irão agravar algo, entendeu? Isso não quer dizer que ele faz o que quiser apenas por ser um garoto.
Aquela petulância não passava de uma birra para permanecer ali fora.
— Não. Quer dizer que ele faz o que quiser por que sabe que ninguém se importa. Por falar nele... — ela mudou o assunto. — Como ele está? — Ela não queria levar adiante aquela conversa justamente por que sabia onde ela iria dar. Entretanto, uma parte sua, na verdade, queria realmente saber de seu irmão.
A última vez que Vitória vira Dom Paulo II, seu irmão mais velho e príncipe, fora durante o jantar na noite anterior.
— Dormindo. Coisa que vossa alteza deveria estar fazendo.
Dormir estava fora de cogitação para ela, mas, pelo tom de Rainer, para ele não.
Vitória não almejava retornar a sua cabine. Ela queria continuar ali, de pé no convés, com o vento esvoaçando seu cabelo, ao mesmo tempo em que observava os pelicanos branco-acinzentados pairando no céu. Mas, trazendo seu olhar de volta, viu, nos olhos abespinhados de Rainer, que seu desejo, pela primeira vez como princesa, não seria acatado.
Como eu poderia me livrar de Rainer? perguntou-se ela.
Se bem conhecia o conselheiro, Vitória sabia que ele não sairia do convés se não a levasse junto.
— Estamos nos aproximando do Porto de Marselha — destacou Rainer. — Vamos voltar para a guarita...
Vendo a hesitação em seu rosto, ele indagou:
— O que de fato a aflige?
Ela suspirou:
— Ontem a noite — começou. —, despertei com algo frio tocando a ponta dos meus dedos. Ergui a cabeça lentamente e me dei conta de que meu repartimento estava inundado, a água já media a altura de minha cama, vazando de um buraco na parede, grande demais para eu conseguir tapar. Percebi, então, no mesmo instante, que o veleiro estava afundando. Dava de ouvir os gritos de clamor dos navegantes. E, por medo, eu não conseguia sair do lugar. O pequeno repartimento aos poucos ficou submerso e eu mergulhada na escuridão da água. A falta de ar fazia-me debater-me em agonia. Até que acordei, em um sobressalto, de um pesadelo r**m. Minha repartição permanecia seca e arejada, exceto pelos cobertores da cama, que umedeceram devido eu ter urinado neles.
Silêncio.
— Correu-me agora no lago onde afogo as memórias, a marcante data em que vossa alteza zarpou de seu aposento real, ainda pequena, usando cobertores na janela como se fossem cordas. Após alguns minutos, ao notar sua ausência, seus pais notificaram os cavaleiros, que, por seguinte, iniciaram as buscas nas redondezas, e a encontraram, um tempo depois, desacordada no interior de um dos lagos que circula o castelo. Ao vê-la, desmaiada, adentrando, molhada, o palácio, nos braços de um dos guardas, seus pais supuseram que a senhora estava morta. Porém, enfim, feito uma compressão em seu peito, a vossa alteza tossiu e expeliu toda a água ingerida, pelas foças nasais. Depois disso a senhora passou a ter pavor de quantidades d'água. Até mesmo uma mísera possa de lama a deixava acanhada. Em minha sincera opinião, seus temores de infância, depois de anos inertes, ressurgiram. Temos de providenciar uma oração por um padre. Foi isso que a ajudou há anos atrás e creio que isso a ajudará novamente.
Vitória anuiu.
— Mas, enquanto isso — prosseguiu ele. —, retorne a sua repartição, imediatamente!
— Espera! — Vitória colocou uma das mãos sobre a boca.
Rainer ficou visivelmente confuso.
— Veja se não é Maria se debruçando sobre a polpa... — ela apontou para um lugar distante.
Rainer disse:
— Oh, céus! — Então ele se afastou com uma movimentação ligeira.
Vitória suspendeu o capuz e correu para o interior do navio, sorrindo em comemoração ao sucesso de sua falcatrua. Ela desceu por uma escada de madeira, alcançou, mais a frente, um corredor. As poucas tochas acesas nas paredes irradiavam faíscas de fogo. Olhou para trás e percebeu que conseguira despistar o conselheiro.
Foi quando trouxe seu olhar de volta, percebendo, atônita, que entrara em um desconhecido reduto. Onde ela estava?
Com seu espaço reduzido ao repartimento e ao convés, aquela parte do navio ainda era inexplorada para a princesa.
Uma parte do veleiro inacessível, cuja qual parecia a masmorra do castelo em Portugal.
As paredes eram cavernosas.
Vitória escutou de repente: vozes de lamentos e choro.
Por algum motivo, ela seguiu os sons e foi conduzida até um espaço escuro no interior do navio, onde eram guardados os barris de pólvora, caixas de madeiras e outros utensílios de precisão.
Além dos ratos correndo pelos cantos, havia pessoas ali.
Vitória aproximou-se um pouco mais para perto, protegida pela escuridão do recinto que ocultava sua presença.
Foi exatamente então que presenciou o que jamais deveria ter testemunhado.
Vitória sentiu o vômito vir a garganta, mas, antes de regozijar, o engoliu. Por conta disso, recuou até a porta e saiu dali.
Como podiam permitir que uma barbárie como essa acontecesse?
Ela não podia estar mais errada. A podridão da caravana não estava apenas no navio, mas como, também, nos tripulantes a bordo.