• Maria •
Eu não dormi bem. Aqui na base dos Sem-facção é tudo dividido. Nós jantamos enlatados coletivos — eu tentei não pensar nas possíveis doenças que isso traria —, ajudamos a arrumar as coisas e arrumamos cantinhos para dormir. Drew e eu dormimos juntos com Sam, eu no meio, numa tentativa de nos esquentarmos durante a noite fria da cidade. Mesmo com tudo isso, eu não consegui dormir bem.
Tirei breves cochilos durante a madrugada, então assim que os primeiros raios solares se fizeram presentes, eu decidi acordar pra valer.
Me levantei devagar, para não acordar ninguém, e caminhei em silêncio pelo meio de tantos corpos espalhados. Subi as escadas de incêndio e cheguei num vestiário gigante que tinha algumas torneiras quebradas e azulejos fora do lugar. Pelo espelho rachado, pude ver minha cara de acabada. Respirei fundo e lavei o rosto, na intenção de repor as energias para um novo dia.
— Está cedo.
Tomo um susto ao ouvir a voz de Evelyn e vejo seu reflexo no espelho. Ela está atrás de mim.
— Está cedo pra você estar acordada. — Evelyn diz se aproximando com uma muda de roupas pretas numa mão e um par de botinas pretas na outra — Imagino que vocês irão para a Franqueza, se juntar com o que sobrou de sua facção. Não vou me opor à isso. Quero você e seu irmão juntos. — ela respira fundo — Quero que saiba que terão para onde ir, se as coisas derem errado. — me estende as roupas e as botas
— Obrigada. — murmuro pegando
— Use aquele chuveiro ali. — ela aponta para a única cabine com porta, no canto — Se quiser, posso ajudá-la. Na minha sala tem um pente de cabelo e produtos de higiene.
— Sam e Tris também poderão usar?
— Claro. — ela sorri gentil — Sabe onde fica, então, quando acabar aí, é só ir lá.
Dito isso, ela se afasta sem jeito e então se vira para sair. Respiro fundo tomando coragem.
— Por que a Jeanine me tirou de vocês? — ela pára ao me ouvir — Se você já estava oficialmente morta e viria para os Sem-facção, por que me tirar de você?
— Ela achava que tinha chances de Marcus ser seu pai.
— E tem? — ergo uma sobrancelha
— Não. — ela se vira — Absolutamente não. Você é filha do Harry.
— E por que me entregar ao Logan?
— Logan cresceu na Erudição. Sempre foi excelente e assustou à todos quando trocou de facção. — ela fala como se estivesse se lembrando de cada detalhe — A verdade é que Logan nunca se desligou por completo da Erudição. Participava de projetos para a Amizade e, por mais esquisito que isso seja, Jeanine o amava. Ouso dizer que, um dia, foram mais que amigos. Ela te deu para ele, ele te deu amor e então foi se desligando da antiga facção.
— Jeanine o procurou pouco antes dele morrer. Ela queria que ele participasse de algo.
— Da criação dessa simulação que devastou o sistema e aniquilou a Abnegação. Ele se negou, obviamente.
— Esse tempo todo eu achei que Jeanine havia o matado.
— Ela só não o matou porque não chegou primeiro, acredite. Logan sabia demais.
Fiquei em silêncio e me virei de costas, para que ela se tocasse que não queria mais conversar. Deu certo. Ela se virou e saiu do vestiário, deixando-me sozinha ali.
No meio das roupas, vi uma toalha velha e manchada, mas limpa. Tirei minhas roupas da Amizade e as dobrei em cima do mármore da pia. Eu havia gostado desses dias na Amizade, apesar de sentir falta da Audácia. Tudo parecia se encaixar. Já havia até me acostumado a ver Quatro sujo de terra correndo com as crianças.
Entrei na cabine que Evelyn sugeriu e girei o registro do chuveiro, sentindo a água gelada cair sem muita pressão em meu corpo. Lavei meus cabelos com o sabonete que havia ali, mas não me atrevi a passá-lo em meu corpo.
Depois de estar sem sujeira, fechei o chuveiro e me sequei do lado de fora da cabine, vendo meu cabelo extremamente ressecado e embolado, por conta do sabonete. Respirei fundo e vesti as peças íntimas, a calça preta, a blusa de mangas curtas e gola V preta e calcei as botinas pretas. Agora sim eu me sentia da Audácia de novo — não que minhas tatuagens não me lembrassem disso o tempo todo. E, por falar em tatuagens, me lembro da que fiz com Drew, Jessie e Ali. Como será que elas estão?
— Bom dia. — ouço a voz de Tris e a vejo entrar no vestiário junto com Sam. As duas estão com mudas de roupas em suas mãos
— Bom dia. — respondo
— Acordou muito cedo. — Sam murmura — Isso na sua cabeça é um ninho? — desdenha do meu cabelo
— Rá, rá! — rio sem humor — Vou cuidar disso na sala da Evelyn, com o kit de higiene que ela disponibilizou. Tem pra vocês também, então sugiro que andem logo. E só tem uma cabine com porta.
— Eu vou primeiro! — Sam corre, tira a roupa na pressa e entra na cabine
— Eu seguro a toalha pra você ter um pouco de privacidade. — digo para Tris
— Valeu. — ela sorri
— Tudo bem. Cunhadas fazem isso.
Espero Tris se despir e então ela entra em uma das cabines sem porta. Não olho muito para seu corpo, para que ela não se sinta m*l. Estendo a toalha na porta e fico segurando no alto, enquanto ela se banha. O silêncio impera e então eu tento quebrar o clima esquisito.
— Você já sabia? — pergunto
— Quatro me disse pouco antes da segunda fase. — murmura — Mas eu não sabia sobre a mãe de vocês. Me desculpe.
— Tudo bem. Você não tem culpa. — sorrio mesmo sem ela poder ver — O que você espera encontrar na Franqueza?
— Christina, Uriah, Tori. Pessoas antigas que sei que não se juntariam nessa sujeira toda.
— Acha que seu irmão será bem-vindo lá? Sabe como é, né? Ele é um deles.
— Caleb acabou de sair. Disse que não irá com a gente. Tomou seu próprio rumo.
Fico calada. É um alívio saber que aquele obcecado pela Erudição não estará conosco, mas ainda assim é o irmão de Tris, então apenas me calo.
Quando ela termina seu banho, usa da minha toalha para se secar e se veste. Sam faz o mesmo e então vamos para a sala de Evelyn, onde passamos desodorante, penteamos os cabelos e arrumamos pastas de dente.
Assim que retornamos para o galpão principal, vejo Quatro enrolando os colchonetes. Ele já está com outra roupa e seus cabelos molhados denunciam que saiu do banho há pouco tempo.
— Bom dia. — lhe cumprimento
— Bom dia. — apesar da aparência cansada, me dirige um sorriso e beija minha testa — Você está bem?
— Vou ficar. — sorrio para lhe passar tranquilidade
— Drew estava te procurando. — ele aponta para onde meu amigo está — Sairemos em breve.
Confirmo num gesto de cabeça e vou caminhando para perto do loiro gigante que parece conversar com alguém que está de costas para mim. É Ezra.
Eles parecem estar numa conversa séria.
— Bom dia. — os cumprimento
— Ei, Maria! — Ezra sorri e abre os braços, me abraçando com calor
— Eu tava te procurando. — Drew, que também parece ter saído do banho, diz — Escute o que Ezra tem a dizer.
— Eu estou confuso. — diz ao me soltar do abraço — Estou cogitando ficar por aqui.
— O que? — franzo o cenho — Ezra, você é da Audácia.
— Não existe mais Audácia, Maria.
— Você não passou em primeiro lugar pra chegar agora e desistir, não é? Nossa facção precisa da gente.
— Como? — ele me encara
— Depois que consertar toda essa merda que está acontecendo, poderemos viver em paz na facção que nós escolhemos. — Drew diz
— Drew, Maria! — ouço Quatro chamar — Estão prontos? — pergunta alto, para que possamos ouvir
— Tudo pronto. — Drew responde
— Então vamos. Temos um longo caminho pelos escombros da cidade.
— Qual vai ser, Ezra? — olho para meu ex parceiro de caça-bandeiras
— Vou ficar por aqui. — ele respira fundo — Eu sinto muito.
— Tchau, cara. — Drew aperta a mão dele
— Se cuida. — digo um pouco desapontada
— Vocês também. — ele diz — Podem contar comigo, se precisarem.
— Obrigada.
Depois de agradecer, Sam, Tris, Drew, Quatro e eu saímos no sol em busca da sede da Franqueza. Espero que nos recebam bem.
***
— Maria! — ouço alguém gritar
— Ai, meu Deus! — Drew sorri
Eu me viro e vejo Jessie ali. Ela corre pra nos abraçar e eu sorrio aliviada. Ao menos um rosto conhecido.
É reconfortante.
— Eu senti falta das suas falas irritantes. — Drew implica
— Eu preciso falar com vocês. — ela nos olha — Ai, eu fiquei com medo que tivessem pego vocês.
— E a Ali? — pergunto
— Ela... Bom. — ela parece sem jeito
— Jessie, o que tá acontecendo? — Drew franze o cenho
— Quando nós acordamos, estávamos na enfermaria da Franqueza. — Jessie explica — Jeanine espalhou boatos, disse que vocês são os responsáveis pelo ataque.
— O que? — Drew e eu arregalamos os olhos
— Há aqueles que ficaram em dúvidas e tal, mas eu nunca nem pensei nessa possibilidade. — ela diz — Alou! Você é a Maria, a garota que se culpou por bater no Timothy. Ele, em toda a cidade, merecia aquilo.
— Vá para a parte em que a Ali aparece.
— Jogaram pesado na lavagem cerebral e ela achou mais seguro se juntar aos Aliados. — ela diz — É assim que estão chamando os soldados da Audácia que estão com a Erudição.
Segunda maior decepção do dia: minha amiga agora faz parte dos assassinos de Jeanine.
***
— Tris! — Christina a abraça forte, após seu testemunho com o soro da verdade — Você foi bem. Disse a verdade.
— É sua vez. — Quatro diz segurando minha mão — Não tenha medo.
A Franqueza tem uma ferramenta curiosa que faz com que as pessoas sejam francas sempre. Ou seja, soro da verdade.
Assim que chegamos aqui, fomos recebidos com armas e então o líder da facção sugeriu que participássemos de um interrogatório sob a influência desse soro.
Eles me aplicaram uma dolorosa dose, que me fez ficar um pouco fora de órbita.
Fiquei tonta na hora e fui colocada sentada no meio do salão da Franqueza, onde uma balança equilibrada pintada de preto e branco está desenhada no chão. Segurei os braços da cadeira sentindo minha cabeça rodar e as pernas ficarem pesadas.
— Por favor, querida, não resista. Pode ser doloroso.
Ouço alguém dizer, mas não sei dizer quem. Olho para Quatro que está sentado e me olha tentando me tranquilizar.
— Você é Sol de Maria, filha de Logan Prince, correto? — Jack pergunta
— Não. — respondo tendo a visão um pouco menos tremida
— Como não? — ele franze o cenho
— Eu descobri há pouco tempo que... Eu sou filha de Evelyn Johnson. Fruto de uma traição dela ao marido com um homem sem-facção já morto.
Todos parecem se chocar com a informação e eu ouço alguns burburinhos.
Logo todos se calam e Jack continua o interrogatório.
— Então é filha adotiva de Logan.
— Sim.
— É verdade que está envolvida amorosamente com Eric Coulter, ex m****o da Erudição e atual líder da Audácia?
Travo meu maxilar e me agarro à cadeira. Admitir na frente de toda a minha facção e da outra facção que eu me apaixonei por Eric? Isso é demais.
— Responda a pergunta. — ele insiste
— Não. — n**o e sinto uma dor aguda na cabeça
— Não minta, senhorita Prince.
— Eric e eu nos envolvemos, mas não temos mais nenhum contato.
— Quando se envolveram?
— Depois da nossa luta. — vejo a cara de surpresa dos membros da Audácia
— Há quanto tempo não tem contato com Eric?
— A última vez em que o vi, ele estava perseguindo a mim e aos meus amigos, na Amizade. — respondo e, de repente, não sinto mais nada — Ele me cercou na floresta, mas me deixou ir embora. Disse para eu correr.
— Então ele salvou sua vida, mesmo com ordens explícitas para te matar? — Jack franze o cenho — Por que?
— Eu não sei. — o encaro
— Você e Eric se relacionam há, mais ou menos, seis semanas e você não sabia dos planos de destruir a Abnegação?
— Não, eu não sabia! — garanto
— Então você é inocente da acusação de ataque à Abnegação?
— Sim.
— Você o ama?
Travo o maxilar mais uma vez. Isso é muito desconfortável.
Me sinto nua.
— Você ama Eric Coulter?
— Sim. — admito
Ele me olha com piedade e preocupação. Parece temer o que esse sentimento possa fazer comigo.
— Obrigado pela sua honestidade.
— Obrigado pela sua honestidade.
***
— Maria. — ouço alguém me chamar e me viro, vendo Joanne parada ali
— Joanne. — digo surpresa — Achei que estaria com Eric.
— Sei que você acabou de sair do interrogatório, mas a gente pode trocar uma ideia? — ela pergunta — É rápido.
Ainda me sinto um pouco tonta pelo soro, mas aceito conversar com ela. Caminhamos juntas, lado a lado, pelos corredores da Franqueza.
— Eu já sabia sobre Eric e você. — diz — Desde antes disso tudo começar. Acho que antes mesmo dele perceber.
— Perceber o que?
— Que está apaixonado por você.
Fico surpresa com a frase.
— Olha, eu nunca estive apaixonada antes, mas eu acho que alguém apaixonado não age como ele estava agindo. — franzo o cenho
— Eric nunca foi um ser humano acostumado com bons sentimentos, mas isso não sou eu quem deve dizer e sim ele.
— Vai fazer a advogada do d***o? — a olho e ela sorri fraco
— É, acho que vou sim. — concorda — Existe algo bom dentro do Eric, só que está escondido sob toda a mágoa que ele sente. Eric não é mau, Maria. Ele só teve uma vida difícil.
— Difícil como? — franzo o cenho
— Isso ele mesmo te contará, talvez. Eu só queria que você não o odiasse.
— Eu não o odeio. — sou sincera — Só estou confusa. É difícil acreditar que o Eric frio que a Audácia conhece é o mesmo Eric que salvou minha vida umas três vezes.
— Ele só precisa que alguém invista nele. — paramos na porta do dormitório — Eu comecei a investir, mas sozinha, talvez, eu não consiga muita coisa. — respira fundo — Bom, eu vou deixar você descansar.
— Obrigada, Joanne. — murmuro — Vou pensar bem sobre tudo isso.
***
Quando acordo, estou no que foi improvisado como dormitório para a Audácia, deitada na cama de baixo de um beliche. Coço os olhos, ainda os sentindo pesados, mas meu corpo já responde melhor aos estímulos. Me sento na cama prendendo o cabelo e calço as botinas, me levantando e vendo Uriah e Quatro conversando longe de mim, na parede de vidro que mostra a cidade. Me aproximo deles.
— Ei! Olha quem acordou. — Uriah sorri e Quatro se dá conta de que estou perto
— Você está melhor? — Quatro pergunta
— Faminta. — murmuro
— Vá comer alguma coisa. Depois teremos uma reunião com o que sobrou de nós. — ele avisa
— Já viu sua amiga? — Uriah pergunta
— Sim e já estou sabendo sobre Ali. — confirmo — Depois a gente fala. Vou dar uma volta.
Me afasto deles e saio dali, indo em direção a qualquer lugar onde eu possa sentar e pensar um pouco.
Passo pela porta corta-fogo e logo estou nas escadas de emergência. Se bem me lembro, o refeitório fica no térreo. Tenho que descer cinco andares à pé. Desço devagar. Ainda me sinto pesada e zonza.
Ouço barulhos de vidro se quebrando e aperto o passo, logo saindo no térreo, onde vejo guardas da Audácia Azul entrando. Me escondo atrás do balcão da recepção e vou observando-os se espalharem.
Todos os membros da Franqueza estão atingidos e caídos no chão. Não parecem mortos. No lugar de balas, as armas parecem disparar dispositivos que grudam na pele.
— Preciso achar o Quatro. — murmuro
Corri de volta para a escadaria e então, quando estou no terceiro andar, encontro Tris e Uriah descendo. Quase pulo de alegria e alívio.
— Estão bem? — pergunto
— Sim. — respondem juntos
— Por que só a gente está acordado? — Uriah pergunta
— Porque somos divergentes. — Tris responde e vejo que foi atingida pelo dispositivo
— Ninguém me viu. — digo — Não fui atingida.
— Onde ficam as armas? — Tris olha para Uriah
— No térreo.
— Vamos.
— Eu acabei de vir de lá. — resmungo
— E então?
— Está vazio.
— Ótimo. Vamos.
Reviro os olhos e torno a descer as escadas de novo. Quando chegamos no térreo, Uriah nos guia até o depósito de armas.
— Olhe só o que temos aqui.
Meu corpo todo se arrepia ao ouvir essa voz. É ele. Eric está aqui.
Me viro lentamente e o vejo caminhando em minha direção. Está com o traje dos aliados e tem uma pistola em sua mão. Os homens que o acompanham algemam Tris e Uriah e ele fica cara a cara comigo.
— Sentiu saudades, docinho? — sorri diabólico e noto algo diferente em seu olhar. Suas pupilas estão dilatadas — Eu vou algemar você, agora. E não vai ser pra sua diversão.