Pré-visualização gratuita 01 - Prólogo
A cidade apagou.
Num segundo, tudo sumiu. Luzes, vitrines, postes, faróis... tudo engolido pelo breu repentino, como se o universo tivesse, simplesmente, decidido desligar o interruptor. Parecia que o mundo havia parado de respirar por alguns segundos.
O silêncio que veio depois foi estranho. Aquele tipo de silêncio que precede ou um desastre... ou um milagre.
Meu corpo inteiro ficou alerta. Não só pela escuridão, mas pelos passos rápidos que vinham na direção contrária à minha. Passos pesados, descompassados, quase desesperados.
Logo uma silhueta masculina, alta, tropeçando entre as sombras. O terno desalinhado, o cabelo bagunçado, a respiração descompensada. Olhava pra trás, como quem fugia — ou, talvez, lutasse contra não desabar.
— Que merda... Que merda... — ele rosnou, apertando algo no próprio peito. — Droga...
O som da voz dele entrou por algum lugar entre meus ossos e ficou. Grave, rouca, carregada daquele tipo de desgaste que só a exaustão física e emocional causa.
Por um segundo, nossos olhares se cruzaram. Mesmo na penumbra, eu consegui ver. Os olhos dele, arregalados, perdidos, como se estivessem tentando agarrar qualquer pedaço de realidade antes que tudo desabasse. E, sem entender exatamente por quê, eu me vi fazendo algo que não fazia sentido.
— Vem cá. — Minha mão segurou o braço dele antes que eu pudesse pensar. A pele dele estava quente e tensa. Meu coração disparou quando senti o músculo rígido sob meus dedos. — Vem... aqui... Fica quieto. Só... finge. E tira esse terno.
Ele piscou algumas vezes, como se tentasse entender se aquilo era real. Mas obedeceu. Tiramos o terno e jogamos longe.
— Moça... Me drogaram. Eu... Eu não tô enxergando direito. Tá tudo... Caralho... tá tudo embaçado.
A voz dele falhou, partiu no meio, e eu não sabia se era efeito da droga, da adrenalina ou das duas coisas. Ele não fez perguntas, não quis saber quem eu era, apenas... deixou que eu puxasse e fizesse alguma coisa.
As mãos dele agarraram minha cintura no reflexo de quem precisa se firmar em alguma coisa — ou em alguém. E, quando fez, meu corpo travou.
Não foi medo. Não foi desconforto. Foi... uma descarga elétrica, algo que percorreu minha coluna, subiu pela nuca e desceu pelas pernas, queimando tudo no caminho.
De perto, percebi. O cheiro dele era uma mistura de álcool caro, suor e um perfume amadeirado, absurdamente masculino, que grudou no meu nariz e, sem pedir licença, ativou memórias que eu nem sabia que tinha. Ele pressionou o rosto contra a curva do meu pescoço e respirou fundo. Droga... Aquele simples contato me fez morder o lábio inferior, tentando controlar o arrepio que subiu pelas minhas costas.
Por que eu estava sentindo aquilo? Por quê?
As mãos dele estavam trêmulas, apertando minha cintura como se eu fosse âncora no meio de um oceano revolto.
— Fica... comigo... — ele pediu, ou talvez tenha implorado. A voz era tão rouca, tão baixa, que parecia mais um suspiro quente derramado contra minha pele do que uma frase de fato.
Meu corpo reagiu antes da minha consciência. Levei as mãos até o pescoço dele, sentindo a pele quente, a textura da barba por fazer roçando nas minhas palmas. Segurei firme, apertando de leve, tentando manter ele ali, escondido entre mim e o mundo.
— Fica quietinho, tá legal? — Sussurrei. — Vai ficar tudo bem.
Pessoas passaram correndo. Alguém gritou um nome, mas não entendi direito que nome era. Senti as sombras se movendo, os passos apressados, a tensão.
— Aí. Você viu um cara de terno passando por aqui? — uma voz perguntou, mais longe.
O instinto falou mais alto. Segurei o rosto dele, puxei pro meu pescoço de novo, e respondi, sem pestanejar:
— Não, moço. A gente tá ocupado aqui. Dá pra não atrapalhar?
O corpo dele ficou tão rígido que parecia uma linha de aço tensionada. E foi nesse momento que percebi — percebi de verdade — o quanto ele estava encostado em mim.
As coxas dele roçavam nas minhas. O abdômen firme pressionava meu corpo contra a parede. A respiração dele batia na minha clavícula, quente, irregular, desesperada. E, sem que eu entendesse como, a mão dele subiu, escorregando pela lateral da minha costela, até segurar meu rosto, como se precisasse ter certeza de que eu existia.
— Porra... — ouvi um dos caras resmungar, antes de se afastarem. — Filho da p**a fugiu... Como conseguiu?
Esperei mais alguns segundos. O tempo de ouvir os passos sumirem. Meu coração batia tão forte que, se ele não estava ouvindo, com certeza estava sentindo — porque nossas peles estavam coladas.
Quando abri os olhos... ele ainda estava ali. E ele nos virou, como se o instinto dele falasse mais alto. Minhas costas bateu na parede, mas as mãos dele não saíram da minha cintura, e o rosto dele ainda permanecia escondido em meu pescoço. Não se mexia. Só respirava contra minha pele, enquanto me prensava contra a parede, as mãos segurando meu rosto e minha cintura, como se aquilo fosse a única coisa que fazia sentido no mundo.
— Você... — a voz dele saiu falha, rouca, arranhada, e eu senti a mão dele subindo devagar até tocar minha costela. — Quem... quem é você...?
Engoli em seco. Meus olhos queimavam. Minhas mãos tremiam, agora segurando os antebraços dele. Eu sentia a tensão dos músculos, a força que ele fazia pra se manter de pé.
— Ninguém. — Respondi, minha voz falhando mais do que eu gostaria. — Uma garota feia... insignificante... que você nunca mais vai ver na vida. Quer dizer... nunca mais vai ouvir, né...
Ele balançou a cabeça, meio zonzo, meio indignado, a mão subindo mais, roçando meu queixo. O polegar dele passou, de leve, no meu lábio inferior, e eu juro... juro que minha respiração parou.
Ele encostou a testa na minha. E quando fez... o mundo inteiro pareceu sumir.
— Não... — ele sussurrou. — Não diz isso... — A mão dele segurou minha nuca, o polegar no meu lábio, e eu pude sentir a respiração dele se misturando à minha. — Não é verdade...
Meus olhos se fecharam no reflexo. Porque era informação demais. Calor demais. Toque demais. Tudo, demais. Nunca deixei homem nenhum me tocar assim, e agora...
— Ei... — tentei falar, a voz saindo falha. — O que aconteceu, hein? Em que porcaria você se meteu...? — Segurei o rosto dele, passando as pontas dos dedos pela mandíbula, como se aquilo pudesse ajudar. — Me responde...
— Eu... — Ele arfou, apertando mais minha cintura, como se quisesse me puxar pra dentro dele. — Eu não sei. Investigando coisas que não devia... e acabei... Caralho... — apertou os olhos, como se o mundo inteiro girasse. — Acabei... trombando com as pessoas erradas...
Ajudei ele a se sentar no chão, porque vi que as pernas dele cederiam. Sentei-me ao lado dele, segurei a mão dele e respirei fundo.
— Queria poder... Cuidar de você. Mas eu não posso ficar aqui por muito tempo. — Ele tentava me olhar, mas realmente não conseguia. Parecia que seus olhos não funcionavam.
— Quem é você? Me fala, por favor. — Ele disse, e eu neguei com a cabeça.
— Você não precisa saber.
Era engraçado. Eu não queria que ele soubesse quem eu era, mas ao mesmo tempo... Eu queria. Porque ser tocada por ele causou algo em mim que eu não entendia o que era.
— Não preciso, mas quero. — Ele levou uma das mãos até a lateral do meu pescoço, e colou a testa na minha. Fechei os olhos, sentindo aquela sensação invadir meu corpo mais uma vez.
Deus... O que era aquilo.
— Não. — Eu não podia me distrair. Não, eu tinha planos, sonhos... E isso atrapalharia tudo. — E-e-eu preciso ir. Me desculpa. Espero que você fique bem.
Eu corri pra longe, antes que as luzes voltassem e eu pudesse ver o rosto dele.