2

1423 Palavras
O despertador tocou, estridente e c***l. Quatro e meia. Ava gemeu baixo, afundando o rosto nos panos úmidos que usava como colchão. O corpo doía. Os músculos pareciam costurados com arame. Mas precisava levantar. Ela forçou os olhos a abrir. A lâmpada no teto piscava, emitindo uma luz pálida e trêmula. A cada manhã, a mesma rotina. A mesma luta para não quebrar de vez. Sentou devagar. O movimento fez os ossos estalarem. Seu corpo, magro demais, ainda mantinha uma curva feminina natural, como se sua beleza insistisse em existir, em meio àquele inferno. Mas beleza, naquele lugar, era uma maldição. Pois despertava a inveja das Alfas e a luxúria dos lobos. A lembrança a atingiu como uma faca: ‘Ela estava limpando um dos quartos do segundo andar, quando um lobo entrou ele a olhou como se quisesse possuí-la , antes que ela pudesse fugir a loba acasalada com ele invadiu o quarto agarrou os cabelos de Ava e começou a gritar que ela era uma v***a oferecida.’ A lembrança a fez estremecer e Ava passou uma mão pelo rosto sujo. O toque encontrou cortes. Hematomas. Cicatrizes que não fechavam. E ela sabia o motivo. Ontem mesmo ela foi arrastada até o escritório do Alfa Vitor e ele forçou por sua garganta a baixo um líquido viscoso e amargo e Ava sabia que era aquilo que estava matando sua loba que a impedia de se transformar. Sem loba, sem cura, sem defesa era assim que ele queria. Suspirou, não tinha tempo para ficar lamentando. Levantou-se, trêmula. Foi até o cano. Girou a válvula. A água caiu, fria, dura como navalha. Ava molhou o rosto e parte do corpo, apenas o suficiente. Os dentes batiam. O frio rasgava. Secou-se como pôde. Pegou o frasco escondido sob os panos e passou o bálsamo sobre os ferimentos mais graves. Mordeu os lábios ao sentir o ardor invadir a pele crua. Vestiu o trapo cinza que chamavam de vestido. Era largo, pesado, escondia tudo. Melhor assim. Qualquer traço de beleza atraía punição. Diante do espelho rachado, prendeu os cabelos vermelhos em um coque apertado. Escondeu o brilho que um dia teve orgulho. Subiu as escadas em silêncio. O casarão dormia. Na cozinha, preparou o café como fazia há sete anos. Pão, carne, frutas, tudo no lugar. As mãos cortavam, mexiam, fritavam, sem pensar. Sabia os movimentos de cor. Era invisível, e invisíveis não cometem erros. Tinha outros ômegas, Ava os escutava conversar, mas eles nunca a incluíram, Ava não os culpava ainda se lembrava: ‘Maria uma omega tinha se compadecido de seus ferimentos e ofereceu parte de sua comida, alguém viu e contou para Alfa Vitor a pobre foi arrastada e espancada até ficar em carne viva’ Por isso até os ômegas a evitavam, geralmente ela não se importava, mas naquele dia se importou, sentiu uma vontade de ser vista de ser incluída, mas se conteve. Ava arrumou a mesa, checou os detalhes. Depois correu de volta ao porão, trocou de roupa. O uniforme escolar estava gasto, as costuras frouxas. Prendeu o cabelo, escondeu os hematomas sob o lenço. Passou a mão sobre a barriga. A ardência estava ali. Funda. Quente. Sabia o que a esperava. Na escola, só desprezo e desejo. Nenhuma defesa. Diante do espelho quebrado, respirou. Algo estava diferente. Quando virou de costas, sentiu. Um calor estranho. Um arrepio. Lá dentro, algo se moveu. Não era medo. Nem dor. Era fúria contida. A loba. Fraca. Silenciosa. Mas viva. O portão da escola apareceu no fim da rua como um corte entre dois mundos. Ava respirou fundo. O estômago revirou. Aquele lugar sempre parecia mais frio que o resto da cidade, como se soubesse que ela estava chegando. Entrou com passos curtos. Livros apertados contra o peito. Três humanos conversavam no banco da frente. Pararam ao vê-la. Silêncio. "Melhor a gente ir." "Ninguém quer confusão." "Ficar perto dela é pedir pra tomar rasteira." Ava não respondeu. Como sempre. Mas, pela primeira vez, pensou: Vão pro inferno. A surpresa veio na hora. O pensamento era dela. Nítido. Cru. Nunca falava. Nunca reagia. Mas agora... sentia raiva. Não queria estar ali. Não queria ser como eles. Não queria pertencer. Passou por um grupo de lobos adolescentes. Encostados no muro. "Até machucada, essa ômega parece feita pra cama." Outro riu. "Já viu quando ela caminha? Implora pra ser marcada." O sangue ferveu. Os dentes travaram. Pela primeira vez, os olhos dela subiram. Não disse nada. Mas o olhar tinha algo novo. Algo que os calou por um segundo. Do outro lado do corredor, as alfas. Três. Sempre elas. Lisa puxou a amiga e apontou: "Olha lá, a cadelinha aleijada." Risadas. Ava abaixou a cabeça. Tarde demais. Mãos puxaram seu cabelo. "Vai se fingir de muda hoje também?" Quase caiu. Mas se firmou. Choraria antes. Mas agora, o que veio foi outra coisa. Raiva. Seca. Dura. Por dentro, se imaginou cravando as unhas no pescoço de Lisa. Imaginou o sangue. O susto. O silêncio. Quase sorriu. Mas o medo segurou. "Devia agradecer por ainda andar", zombou uma delas. "O rosto é bom… mas o cheiro? Cheira a abandono." Mais risos. Ferinos. Dois professores humanos viraram o rosto. Fingiram não ver. No fim do corredor, Bruno — lobo que ela conhecia desde criança — a observava. Era maior agora. Olhava com fome. "Se fosse minha, amansava na marra", disse, baixo. Mas não o bastante. Outro riu. "Ainda tem aquele cheiro de flor podre... mas eu encarava." Ava passou por eles com o corpo em chamas. Imaginou-se agarrando Bruno pelo sexo e arrancando sem pena. O pensamento a assustou. Onde estava essa fúria escondida? Entrou na sala. Ninguém quis sentar ao lado. Um humano colocou a mochila na cadeira vazia. "Tá ocupado", murmurou. Ava foi para o fundo. Sentou, abraçada nos cadernos. Quieta. Mas não tão vazia quanto antes. Por dentro, estava cheia. Cheia de vozes, imagens, vontades. A professora chamou nomes. "Ela ainda tá viva por quê?", sussurrou alguém. "Porque o Gael tem pena", respondeu outra. "Ou t***o", riram. Ava fechou os olhos. Não desejava sumir. Desejava reagir. Que a loba tomasse o controle. Que aquele calor no estômago virasse força. Mas o calor era fraco. Um sussurro. Uma fagulha. Mesmo assim… era mais do que nada. Ela encostou a testa nos cadernos. E desejou, pela primeira vez, que o dia acabasse logo… Antes que ela fizesse algo de que se arrependesse. Quando o último sinal tocou, Ava sentiu os ombros relaxarem. Ela sabia que não estava segura. Bastava um olhar torto, um tropeço, e tudo desmoronaria. Mas por enquanto… podia respirar. Recolheu os cadernos e os abraçou contra o peito, saindo da sala com passos curtos e cabeça baixa. Passou por alunos que conversavam e riam, como se vivessem em outro mundo. Um mundo onde ela nunca existiu, mas que hoje uma voz em sua mente dizia que eles não eram mesmo dignos dela. Ava chacoalhou a cabeça tentando afastar esses pensamentos perigosos para alguém que não podia se defender. Tudo ia bem. Até que não foi mais. No instante em que pisou no alto da escadaria do estacionamento, sentiu o empurrão. O chão desapareceu sob seus pés. Rolou. Um, dois, três degraus. Sentiu o joelho rasgar, o cotovelo bater seco, o ombro se torcer. Os cadernos voaram, folhas se espalhando no ar como uma explosão silenciosa de vergonha. Uma onda quente percorreu suas veias. Sua loba. Por um segundo, ela rugiu por dentro. Queria sair. Reagir. Rasgar. Mas sumiu tão rápido quanto surgiu. Fraca. Como sempre. O impacto final veio com o chão frio. Ava ficou ali, sem ar, tentando entender se ainda estava inteira. Então vieram as risadas. Risadas, assobios, zombarias. Ninguém correu para ajudá-la. Os ômegas desviavam o olhar. Sabiam o que significava estender a mão. “Se você defender a filha dos traidores, será tratado como um deles.” “Ohh, desculpa, lixinho.” A voz melosa ecoou acima dela. “Eu não te vi.” Lisa. Sempre ela. “m*l te toquei e você já rolou feito um saco de lixo”, Lisa riu. As amigas gargalharam junto. Ava apertou os punhos contra o chão. Os ossos latejavam. O gosto de sangue escorria pela língua. Queria gritar. Queria se transformar, quebrar tudo, arrancar os risos da boca de Lisa. Mas não podia. Ela não se transformava. Levantou-se com esforço, ignorando a dor, a vergonha, o sangue. Não disse uma palavra. Caminhou o mais rápido que pôde, sem olhar para trás. Ela nunca olhava, mas dessa vez sentiu que se olhasse revidaria.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR