Na trilha da floresta, o silêncio era mais generoso.
A maioria dos estudantes pegava carona ou seguia pela estrada asfaltada. Ava virava à esquerda, atravessava a cerca torta e seguia sozinha por entre as árvores. O mato batia nas pernas. Os galhos riscavam seus braços. Mas ali, ninguém a empurrava escada abaixo. Ninguém a chamava de lixo.
Parou por um instante. O som abafado das folhas sob seus pés, o cheiro da terra úmida, o calor leve do sol filtrado pelas copas — tudo isso fazia seu peito afrouxar, por segundos.
Ava respirou fundo. Fechou os olhos.
Em outra vida, tinha corrido por ali. Era pequena, descalça, e acreditava que a floresta era sua amiga. Em outra vida… acreditava que também era uma loba.
Agora, só restava a sombra da fera dentro dela. Uma presença muda, contida, humilhada. Mas às vezes, como naquele dia, alguma coisa esquentava por dentro. Uma fagulha. Quase nada.
Ela apertou os braços ao redor do próprio corpo. A memória do empurrão ainda queimava. A vergonha grudada no sangue.
As árvores sussurravam ao vento. Ava desejou poder desaparecer nelas. Desejou não sentir mais medo. Desejou… que a loba acordasse de vez.
“Por favor…” — sussurrou.
Mas não veio resposta.
Quando o som de risadas estourou à frente, Ava congelou. Eram vozes femininas. Passos leves. E então, o nome: Lisa.
O estômago revirou.
Ela se escondeu atrás de uma árvore grossa, encolhida, segurando a respiração. Espiou. Lisa estava parada perto da saída da trilha, mexendo no celular, rodeada pelas amigas. Os cabelos loiros caíam em ondas perfeitas. As outras imitavam seu riso como cadelas bajuladoras.
Ava recuou, encostando as costas no tronco.
O corpo reagia por instinto — batimentos acelerados, mãos suadas, os joelhos querendo ceder. Já tinha aprendido: Lisa não precisava dizer nada para fazer sua vida um inferno. Bastava olhar, Ava costumava achar que Lisa tinha sido trocada na maternidade pois seus pais Gama Pedro e Elisa eram os únicos que a tratavam com dignidade e até certo carinho no bando.
Ava sentiu o sangue ferver. O mesmo calor de antes. O mesmo arrepio que vinha com a fúria.
Olhou para Lisa mais uma vez. E, por um segundo, imaginou-se avançando, arranhando aquele rosto, puxando aqueles cabelos tão perfeitos quanto falsos. A imagem a assustou. E a fez sorrir por dentro.
Ava nunca tinha revidado.
Mas a vontade estava crescendo.
Esperou até que o grupo se afastasse, depois seguiu, pisando firme, embora a perna ainda doesse da queda. As palavras de Lisa ainda ecoavam em sua mente.
“Saco de lixo.”
Mas agora… soavam diferentes. Mais distantes. Quase… pequenas. E pela primeira vez em anos Ava se perguntou
“O que Gael faria se estivesse aqui?”
Enquanto isso longe dali, a vida de Gael não foi só flores, quando chegou no Reino ele constantemente tinha pesadelos:
‘Onde o sangue da mãe escorria pelo chão.
Gael não conseguia se mover. A camisa encharcada, o cheiro de ferro no ar, o pai desacordado.
Ava arrastada para longe. Três lobos segurando seus braços. Um deles cuspiu:
“Filha de traidora.”
Depois disso, silêncio.’
E ele acordava suado assustado e com lágrimas que preferia esconder.
No Bando Real, ninguém falava seu nome. Ninguém olhava nos olhos dele.
Na segunda noite, Gael ficou de pé. Olhos abertos até o dia nascer. Não chorou. Nem comeu. O lobo dentro dele só rugia.
Na terceira noite, o Supremo Alfa o chamou. Não houve consolo.
“Se quiser sobreviver, lute”
E ele lutou.
Quebrou o nariz na primeira queda. Vomitou sangue no primeiro treino. Levantou sem dizer uma palavra.
Semanas depois, derrotava garotos mais velhos com um só golpe. Seu corpo mudava. Mais forte. Mais rápido. Seus olhos viravam aço toda vez que tocava o chão da arena.
Não perguntava. Só obedecia.
Foi aí que Sofi apareceu.
Sobrinha do Supremo. Teimosa. Curiosa. Insistente.
“Você nunca sorri?”
Ele fingiu que não ouviu.
Ela voltou no dia seguinte.
“Já tentou não agir como um animal selvagem?”
Gael continuou andando.
“Você não é tão assustador quanto pensa.”
Ela falava. Ele não. Mas escutava.
Um dia, ela sentou ao lado dele no campo.
“Se eu ficar em silêncio, você fica também?”
Ele não respondeu.
Ela sorriu. Ficou.
E voltou no dia seguinte.
No treino, Heron apareceu do nada. Um olhar e a luta começou. Sem palavras. Vinte minutos de força bruta. Nenhum dos dois cedeu.
No fim, Heron estendeu a mão.
Gael hesitou.
Aceitou.
Depois disso, treinavam juntos. Se protegiam sem precisar combinar. Heron falava pouco. Mas dizia o suficiente.
O Supremo observava de longe. Em silêncio.
Os outros também.
Gael dava ordens sem querer. E todos obedeciam.
Heron notou primeiro.
“Eles seguem você” — disse num treino.
Gael desviou o olhar.
“E eu também seguiria”— completou Heron com sinceridade
Foi quando o Supremo olhou para Heron.
Heron assentiu.
Já sabiam.
Gael não era só um guerreiro.
Era o futuro rei.
Mas isso não podia ser dito. Seu nome e seu poder precisavam ficar em segredo até que ele estivesse pronto.
Não falaram mais sobre isso.
Oficialmente, Heron era o herdeiro. O nome público. O escudo visível.
Mas Gael… já era o rei.
E Sofi?
Estava sempre ali.
Ela ria, zombava, irritava. Mas nunca o deixava. E ele começou a esperar por ela. A ouvir o som da voz dela antes de dormir.
Um dia, ela encostou o rosto no ombro dele.
“Você me ouve, né?”
“Sempre.”
Foi a primeira resposta.
E a mais perigosa.
Porque, às vezes, ele acordava no meio da noite. Suado. Coração acelerado. A boca sussurrando um nome que não devia:
“Ava…”
O nome que ninguém dizia. Que devia ter sido apagado.
Mas não para ele.
Ela voltava nos sonhos.
Sempre com medo. Sempre pedindo.
E ele… sempre indo embora.
Gael enterrava o rosto nas mãos.
Sofi era luz. Era o presente.
Mas Ava era a dor.
E dor não desaparece.
Ela fica. E sangra.
E foi assim que os sete anos se passaram para Gael.
Gael estava parado diante da janela de seu quarto. Ele podia ouvir os sons dos guerreiros treinando no pátio abaixo. Mas sua mente estava distante.
Sofi havia partido.
Ela foi enviada em uma expedição para conhecer outros bandos ao redor do mundo, algo que já era esperado. Ela tinha vinte anos e ainda não havia encontrado seu companheiro. Como a tradição exigia, deveria viajar, conhecer novas alcateias e ver se seu destino estava em algum lugar distante.
Gael não queria admitir, mas estava decepcionado.
Ele sabia que Sofi não era sua companheira. Todo lobo encontrava sua alma gêmea ao completar dezesseis anos, e ele já tinha dezessete. Porem, por mais que desejasse, Sofi nunca lhe despertara aquele chamado primal que os verdadeiros companheiros sentiam. Até mesmo Vulcano, seu lobo interior, gostava de Sofi, mas sempre garantiu a ele que não eram destinados um ao outro.
E era nesses momentos que o pavor tomava conta de Gael.
Porque sempre que tentava imaginar sua companheira, um rosto surgia em sua mente.
Ava.
A lembrança dela o perseguia como um fantasma.
Mas ele se recusava a acreditar que a Deusa da Lua poderia ser tão c***l ao ponto de torná-la sua companheira.
Afinal, Ava era filha de traidores. Seu pai e sua mãe haviam assassinado sua mãe e deixado seu pai, Alfa João, em um coma tão profundo que, mesmo depois de sete anos, ele ainda não havia despertado. Ele não podia aceitar que seu destino estivesse atado àquela garota.
Ele cerrou os punhos, sentindo as unhas crescerem levemente e se cravarem em sua pele. Sua respiração ficou pesada enquanto lembranças antigas tomavam conta de sua mente.
Ava.
Ele se lembrava de seus cabelos vermelhos caindo em cachos sobre os ombros, de seus olhos verdes brilhando com inocência, de como ela ria sempre que ele resmungava que ela era uma sombra inconveniente.
E então, tudo mudou.
Gael apertou os olhos, afastando a lembrança. Ele odiava pensar nisso. Odiava lembrar da dor. Odiava que Ava ainda ocupasse qualquer espaço em sua mente, mesmo depois de tudo.
Seu lobo, Vulcano, rosnou dentro dele.
“E se ela for nossa companheira?”
Gael se recusava a responder.
Ele não podia permitir que isso fosse verdade.