Pré-visualização gratuita PROLOGO
Prólogo
Perigo narrando
— Até mais, papai — Joana me abraça forte, o cheirinho de bolo e de cola no cabelo dela. — Queria que você morasse lá comigo.
— Eu moro perto, meu amor — respondo, fazendo cara de quem cede. Ela faz o beiço, pequena encenação que me derrete.
— Vai, Joana, seu coleguinha tá esperando — Malu chama, a porta do carro aberta. Joana me encara mais uma vez, hesita, e entra.
— Sua mãe está chamando, vai lá — digo, firme, mas sem pressa.
— Final de semana você fica comigo, se o papai não tiver compromisso — Malu insiste, tentando tirar do rosto da filha a preocupação que ela sempre carrega quando me olha.
— Promete, papai? — Joana pergunta, olhos grandes, confiando como só uma criança confia.
— Prometo. — Ela aperta a boneca que eu dei, me dá um beijo molhado e some no banco de trás. Malu sai com um sorriso contido.
— Até mais. — Ela acena.
— Tchau. — Eu aceno de volta.
Yuri se aproxima com aquele jeito de quem sempre tem uma provocação pronta.
— Você n**a, mas seus olhos ainda brilham quando vê essa mulher — ele diz, sem se preocupar em ser sutil.
— Tá maluco — respondo, puxando o baseado que ainda cheira a madrugada. Não fumo nem bebo quando a menina está por perto. — Ela é casada com o nosso primo, Rd. Tá tudo certo.
— Só que existe uma história entre vocês — ele insiste. — Uma história que não se apaga. Vocês têm uma filha juntos.
— Somos uma família — eu digo. — Ela escolheu ser feliz com Rd, a gente criou a Joana do jeito que deu. Admiro o que ela é hoje. É mãe, é forte. Eu errei muito com a Malu, e pago por isso todo dia, dentro de mim.
O rádio corta o assunto com uma chamada e Yuri se levanta.
— Preciso resolver uma parada. — Ele se afasta, e a boca volta ao murmúrio de sempre. Eu fico ali, sentado, pés sobre a mesa, olhando a sala vazia daquele comando que foi minha prisão e minha trinchera.
Penso em Maria Luiza — Malu — no jeito como a conheci, no primeiro sorriso, na promessa mudada pelo tempo. Era amor, era vontade de construir. Mas o morro tem fome, pressiona, exige. Eu cedi às pressões e transformei o que era amor em controle. Abusos, tapas, noites que queimaram a pele dela e o pedaço que eu ia virando de homem. Me envergonho quando lembro. Se pudesse voltar atrás, faria diferente: não ergueria a mão, não a humilharia, não permitiria que o medo dominasse a casa.
Flashback — noite de portas fechadas.
Peguei Maria Luiza pelo braço e a arrastei até o meio da sala. Joguei tudo que havia sobre o chão, chutei móveis, gritei. Ela segurava o braço, olhos cheios de lágrimas.
— Tá de s*******m com a minha cara, c*****o? — eu berrei, impotente diante do que me corroía.
— Você me machucou — ela sussurrou, voz trêmula.
— Quem mandou você ir arrumar briga no morro? — me aproximei, com raiva. — Quem mandou, Malu?
— Se você não pegasse essas vagabundas por aí, nada disso teria acontecido — ela gritou. — Você me trancou em casa pra eu não ir ao baile, enquanto você se entregava às mulheres do morro.
Fechei a mão. Tentei respirar. Ela insistiu, cortando as fissuras da minha vergonha. — Me deixa ir embora! — gritou. Dei um tapa que deixou o rosto dela em fogo. Ela passou a mão no rosto, surpresa pelo próprio sangue.
— Vai ser a última vez que você me desafia — falei, jurando que a prendia se preciso fosse.
— Eu te odeio, Perigo! — cuspiu, e o ódio dela me acertou.
Peguei-a pelo pescoço. Ela bateu, lutou, tentou respirar.
— Se me odeia, você deve morrer — murmurei, apertando.
Quando vi que ela estava quase sem ar, larguei-a no chão. Ela caiu, ofegante, tocando o pescoço marcado. Chorou. — Eu não sei como um dia me apaixonei por você — sussurrou.
— Você quis ficar — respondi, com o peso do que eu era.
Fim do flashback.
Abro os olhos. O tédio da cadeira, a luz fria do teto. Mesmo perdoado, mesmo visto como homem que tentou mudar, ainda carrego a culpa. Meu amor por ela não morreu; transformou-se em penitência. Ver o sorriso dela desde que entrou pra família de Rd me lembra que pude ter sido diferente. Foi por amor que eu a deixei ir, acreditando que liberdade seria redenção.
Joana é o que me resta de puro. A menina é o que existe além de tudo que fiz — meu pedaço de remédio. Protegê-la, respeitá-la, amá-la do jeito certo: isso basta para que Malu confie em mim. Quando Maria Luiza casou com Rd e o sorriso dela voltou, entendi o tamanho do estrago que causei.
Agora eu quero outra coisa: comandar o morro, manter o Complexo da Maré forte, e, quem sabe, um dia encontrar uma mulher que eu mereça. Mas sei que, por muito tempo, o que eu desejo e o que mereço serão coisas diferentes. E a sombra do que fiz continua sendo minha companhia mais fiel.