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753 Palavras
Capítulo 1 Marcela narrando Cinco anos antes... Acordo com barulho. O relógio de mesa no criado-mudo marca 5h da manhã. A casa cheira a álcool e sono. — Marcela — a voz do meu pai atravessa a casa — Marcela, meu café. Pego o roupão, caminho devagar até a cozinha e o cheiro de bebida e droga me atinge como sempre. Ele está sentado, olhos vermelhos, mãos trêmulas. — Bom dia — digo, tentando esconder o nó na garganta. — Anda, sua inútil, eu quero meu café — ele resmunga, sem levantar o olhar. Faço o café. Minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos, vencida pelo câncer. Desde então a casa foi reduzida a um chão frio: meu pai afundou na bebida, no escapismo, e o dinheiro da aposentadoria evaporava como fumaça. Eu virei quem dava jeito em tudo. Cultivo uma horta pequena no quintal para vender aos vizinhos; o dinheiro não é muito, mas ajuda. Parei de estudar há um ano — a escola ficava longe demais e a necessidade de ajudar era mais urgente. Troco de roupa no quarto pequeno: calça preta, blusa branca, casaco xadrez. Prendo os cabelos ruivos num r**o frouxo e saio varrendo o quintal, pensando nas contas que nunca fecham. É quando um carro bonito para na frente da casa. Um homem alto desce e tira os óculos escuros. Meu corpo congela. — Bom dia — digo, com a voz pequena. — Posso ajudar? O olhar dele percorre meu rosto inteiro, frio e calculista. — Procuro Mateus — ele pergunta. — Ele mora aqui? — Sim. Quem é o senhor? — Roberto Antunes. Trabalhei com seu pai na delegacia. Meu coração dispara. Mateus devia dinheiro a Roberto havia anos. Agora ele está na porta da nossa casa. Tento convencer a mim mesma que ele pode voltar mais tarde, mas algo em sua postura me diz que não. — Meu pai está dormindo — respondo, tentando ganhar tempo. — Ele chegou tarde. Roberto abre o portão sem cerimônia. Eu vejo a arma na cintura quando, sem se importar, ergue a camiseta social. O medo sobe pela garganta. — Como é seu nome? — ele pergunta, me analisando. — Marcela. — Você é parecida com sua mãe — ele diz. — Lembro de você como bebê. Dois carros chegam de repente. Homens descem com armas. O ar some do meu peito. — Mateus! — grito quando os homens entram e invadem a casa. Escuto os vozes, a discussão, o som de móveis sendo revirados. Eles trazem meu pai para o centro da sala, jogam-no no chão. Roberto se aproxima e para atrás de mim, a mão pesada pousada nos meus ombros. Sinto-o como uma sombra. — Mateus, quanto tempo, meu amigo — diz Roberto, com a voz calma que corta. Meu pai o encara, olhos baços. — Nós temos uma dívida — Roberto continua. — Cansei das desculpas. A dívida só aumenta. Meu pai implora, diz que não tem como pagar. Eu me aproximo, querendo proteger, mas sinto as mãos dos homens me segurarem com força. — A única coisa que eu tenho é essa casa e minha filha — meu pai sussurra. Roberto me olha como se eu fosse um objeto. O medo vira náusea. — Traga-a — ordena. — Não! — levanto, tento correr, mas dois homens me agarram. Pânico. Peço, suplico. — Pai, não! Por favor! Não! Um dos homens aponta uma arma para a cabeça do meu pai; minha voz falha, o choro me quebra. Eles me enforcam em força e me empurram para fora. Vejo meu pai parado na porta, imóvel, a expressão vazia. O carro começa a se afastar e eu grito até que minha garganta seca. Amarram minhas mãos, me entopem no banco. Tento me soltar, mas não tenho forças contra a frieza dos homens. O frio da madrugada me envolve e, pela primeira vez, sinto que a vida que eu conhecia está terminando ali, no asfalto que nos leva para longe da casa que me viu nascer. Enquanto o carro some, a imagem do meu pai parado na porta fica gravada na minha pele. Ele não veio comigo. Ele ficou. Não sei se por medo, por rendição, ou por não conseguir mover-se. As lágrimas escorrem, sem som. O cheiro de gasolina e de suor enche o ar. O destino foi fechado por uma dívida que eu nem sabia que existia até aquele momento. O peito aperta. Eu não entendo ainda o que aconteceu, mas sei que nada será como antes.
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