Capítulo 1
Marcela narrando
Cinco anos antes...
Acordo com barulho. O relógio de mesa no criado-mudo marca 5h da manhã. A casa cheira a álcool e sono.
— Marcela — a voz do meu pai atravessa a casa — Marcela, meu café.
Pego o roupão, caminho devagar até a cozinha e o cheiro de bebida e droga me atinge como sempre. Ele está sentado, olhos vermelhos, mãos trêmulas.
— Bom dia — digo, tentando esconder o nó na garganta.
— Anda, sua inútil, eu quero meu café — ele resmunga, sem levantar o olhar.
Faço o café. Minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos, vencida pelo câncer. Desde então a casa foi reduzida a um chão frio: meu pai afundou na bebida, no escapismo, e o dinheiro da aposentadoria evaporava como fumaça. Eu virei quem dava jeito em tudo. Cultivo uma horta pequena no quintal para vender aos vizinhos; o dinheiro não é muito, mas ajuda. Parei de estudar há um ano — a escola ficava longe demais e a necessidade de ajudar era mais urgente.
Troco de roupa no quarto pequeno: calça preta, blusa branca, casaco xadrez. Prendo os cabelos ruivos num r**o frouxo e saio varrendo o quintal, pensando nas contas que nunca fecham. É quando um carro bonito para na frente da casa. Um homem alto desce e tira os óculos escuros. Meu corpo congela.
— Bom dia — digo, com a voz pequena. — Posso ajudar?
O olhar dele percorre meu rosto inteiro, frio e calculista.
— Procuro Mateus — ele pergunta. — Ele mora aqui?
— Sim. Quem é o senhor?
— Roberto Antunes. Trabalhei com seu pai na delegacia.
Meu coração dispara. Mateus devia dinheiro a Roberto havia anos. Agora ele está na porta da nossa casa. Tento convencer a mim mesma que ele pode voltar mais tarde, mas algo em sua postura me diz que não.
— Meu pai está dormindo — respondo, tentando ganhar tempo. — Ele chegou tarde.
Roberto abre o portão sem cerimônia. Eu vejo a arma na cintura quando, sem se importar, ergue a camiseta social. O medo sobe pela garganta.
— Como é seu nome? — ele pergunta, me analisando.
— Marcela.
— Você é parecida com sua mãe — ele diz. — Lembro de você como bebê.
Dois carros chegam de repente. Homens descem com armas. O ar some do meu peito.
— Mateus! — grito quando os homens entram e invadem a casa. Escuto os vozes, a discussão, o som de móveis sendo revirados.
Eles trazem meu pai para o centro da sala, jogam-no no chão. Roberto se aproxima e para atrás de mim, a mão pesada pousada nos meus ombros. Sinto-o como uma sombra.
— Mateus, quanto tempo, meu amigo — diz Roberto, com a voz calma que corta. Meu pai o encara, olhos baços.
— Nós temos uma dívida — Roberto continua. — Cansei das desculpas. A dívida só aumenta.
Meu pai implora, diz que não tem como pagar. Eu me aproximo, querendo proteger, mas sinto as mãos dos homens me segurarem com força.
— A única coisa que eu tenho é essa casa e minha filha — meu pai sussurra.
Roberto me olha como se eu fosse um objeto. O medo vira náusea. — Traga-a — ordena.
— Não! — levanto, tento correr, mas dois homens me agarram. Pânico. Peço, suplico. — Pai, não! Por favor! Não!
Um dos homens aponta uma arma para a cabeça do meu pai; minha voz falha, o choro me quebra. Eles me enforcam em força e me empurram para fora. Vejo meu pai parado na porta, imóvel, a expressão vazia. O carro começa a se afastar e eu grito até que minha garganta seca.
Amarram minhas mãos, me entopem no banco. Tento me soltar, mas não tenho forças contra a frieza dos homens. O frio da madrugada me envolve e, pela primeira vez, sinto que a vida que eu conhecia está terminando ali, no asfalto que nos leva para longe da casa que me viu nascer.
Enquanto o carro some, a imagem do meu pai parado na porta fica gravada na minha pele. Ele não veio comigo. Ele ficou. Não sei se por medo, por rendição, ou por não conseguir mover-se. As lágrimas escorrem, sem som. O cheiro de gasolina e de suor enche o ar. O destino foi fechado por uma dívida que eu nem sabia que existia até aquele momento.
O peito aperta. Eu não entendo ainda o que aconteceu, mas sei que nada será como antes.