Pré-visualização gratuita Capítulo 01 - Testamento
Cloe Aguilar
21/02| Valência, ES
Levei a mão lentamente até o vaso de cerâmica à minha frente, sentindo os dedos tremerem levemente. Imagino que seja porque se trata de uma obra de Manises do século XV — e meu corpo parece entender que qualquer deslize seria fatal.
Passei a manhã inteira trancada nesta sala, limpando cada centímetro da peça com um cuidado quase cirúrgico. O único som que me fazia companhia era o da minha própria respiração e o eco dos passos das pessoas caminhando pela rua El Carmen. Fui chamada por um dos museus para restaurar esse artefato, que estava em estado crítico. E quando se trata de milagres na restauração, minha família tem certa fama.
Agora, já pela tarde, eu apenas finalizava a pintura, mantendo fielmente o design original. Graças a Deus, estava quase terminando, e minhas costas vibravam de alegria só de pensar nisso. Finalmente, dei a última pincelada no vaso.
Um sorriso orgulhoso surgiu em meus lábios quando me afastei para contemplar minha mais nova conquista com mais precisão. Foi quando ouvi a porta se abrir.
— ¡Increíble! — exclamou Javier, atrás de mim.
Virei-me, orgulhosa. Javier é um grande amigo, diretor e curador de alguns museus de El Carmen. Sempre acaba me chamando para restaurar artefatos problemáticos.
— Às vezes, eu juro que você não é deste planeta, minha amiga — disse ele, enquanto eu me levantava e limpava as mãos no avental.
— Talvez eu não seja — brinquei, arrancando-lhe um sorriso.
— Em breve vou te chamar de novo. Uma nova peça chegará em duas semanas, direto do Canadá — falou, e eu assenti.
— Estarei à disposição. Mas agora, deixando o trabalho de lado... como você está, amigo?
Comecei a guardar meus pincéis na maleta.
— Estou indo... na medida do possível — Javier suspirou, a voz mais baixa.
Fazia cerca de duas semanas que seu noivado com Antoine havia terminado. Não sabia exatamente o motivo, mas era óbvio que ele ainda estava sofrendo com isso.
— Sabe que pode contar comigo, não sabe? — perguntei, e ele sorriu.
— Claro que sei.
Conversamos mais um pouco sobre as novidades da semana enquanto eu organizava minhas coisas, pronta para ir para casa. Saímos da sala juntos, e Javier me acompanhou até a porta de entrada do museu, que já estava fechado para visitas.
— Tenha uma boa noite, querida — disse ele, com um sorriso breve.
— Você também!
Comecei a caminhar rumo à minha casa, que ficava a poucas ruas dali — o que me permitia ir a pé e admirar cada canto de Valência no trajeto. As ruas de El Carmen são um espetáculo de arte: desde as casas históricas, vibrantes e coloridas, até os grafites que contam histórias humanas nas paredes. Sem contar as pessoas... cada uma parece carregar um pedacinho desse lugar consigo.
Só de pensar nisso, um sorriso involuntário se formou nos meus lábios. Mas ele logo se desfez quando passei em frente a um edifício. Moderno demais para o bairro. As letras gritantes na fachada me fizeram revirar os olhos.
“Salazar & Vidal”
Engoli o desprezo. Aquele prédio era só mais um da coleção dos Salazar — uma família que representa tudo o que a minha luta tenta impedir. Por anos, meu pai e eles travaram batalhas em construções históricas. Enquanto nós queríamos restaurar, eles queriam demolir para erguer algo novo e “moderno”.
Às vezes vencíamos. Outras, não.
Essas brigas custaram caro. Nossa família faliu. Nosso sobrenome, antes respeitado, virou quase um fantasma em Valência. Hoje, vivemos à base de oportunidades como a de hoje — restaurar peças por contrato. Por sorte, minha mãe é uma professora renomada na universidade, no curso de Geografia e História. Graças a ela, nossa queda não foi total.
Meus pensamentos foram interrompidos ao notar um carro diferente parado em frente à minha casa. Apressei os passos e entrei, encontrando meus pais na sala de estar, sentados com um homem elegante, de terno impecável e uma pasta nas mãos.
— Boa noite — anunciei.
Eles se viraram para mim, e minha mãe sorriu.
— Aí está ela — disse, apontando para mim.
O homem se levantou e veio até mim, estendendo a mão.
— Senhorita Aguilar. Me chamo Ernesto Santanori, advogado do seu falecido tio-avô, Luis Aguilar.
Pisquei, surpresa. Olhei para meu pai, que parecia perdido nos próprios pensamentos. Sabia que Luis era irmão do meu avô, um parente distante, com quem meu pai teve pouco contato.
— E vim tratar do testamento dele — concluiu o advogado, me fazendo arquear a sobrancelha.
O que nós tínhamos a ver com isso?
Assenti, meio desconfiada, e me sentei ao lado dele no sofá.
— Como sabem, seu tio-avô era dono de inúmeras propriedades, o que o tornou um homem poderoso e influente. Luis, no entanto, não deixou filhos — começou ele. — Em seu testamento, alguns nomes foram mencionados. Entre eles, o seu, Cloe.
Arqueei a sobrancelha, confusa. Nunca tivemos proximidade. Em 27 anos de vida, acho que vi esse homem duas vezes.
Por que ele deixaria algo para mim?
— Do que se trata? — perguntei, indo direto ao ponto.
Ele abriu a pasta, puxou um papel e começou a ler.
— “Eu, Luis Javier Aguilar, em pleno g**o de minhas faculdades mentais, instituo como minha única e universal herdeira minha sobrinha-neta, Cloe Aguilar. Lego a ela a totalidade de meu patrimônio, o qual compreende todos os meus bens, ativos financeiros, participações societárias e propriedades imobiliárias, incluindo, mas não se limitando aos meus imóveis em Madrid, Barcelona e Valência…”
Por sorte eu estava sentada, porque certamente teria desabado no chão com essa bomba.
O advogado continuou listando alguns dos bens que agora, supostamente, seriam meus. Olhei para meus pais, que pareciam tão surpresos quanto eu.
— Bom… — ele fez uma pausa, me encarando — Mas seu tio-avô impôs uma condição.
Claro. Estava fácil demais.
— Qual condição? — meu pai perguntou.
O advogado retomou a leitura.
— “Entretanto, para que todos esses bens passem a ser dela, ela precisará se casar — especificamente e unicamente — com Damian Salazar, mantendo o casamento por, no mínimo, um ano.”
— Não! Nunca! — meu pai exclamou, furioso, levantando-se de repente.
Damian Salazar. O maldito herdeiro da família Salazar. Atualmente à frente da empresa da família, desde que o pai adoeceu. E, honestamente, parecia ainda mais frio e implacável do que ele.
— Francisco… — minha mãe se levantou também, tentando acalmá-lo com uma mão no braço.
— Minha filha não vai se envolver com aquela família. Nunca!
Meu coração ainda batia acelerado com todas aquelas informações. Eu desprezava Damian — e sabia que o sentimento era recíproco. Nas poucas vezes que nos vimos, m*l conseguimos trocar duas palavras sem um tom de desprezo mútuo.
— E da mesma forma que eu não quero esse casamento, ele também nunca aceitaria casar comigo. — comentei, quebrando o silêncio tenso que pairava no ar.
— Na verdade… o senhor Salazar já está ciente da cláusula. E está disposto a cumprir o casamento por um ano. — o advogado respondeu, me pegando totalmente desprevenida.
Como assim ele aceitou? Sem sequer me consultar?
— O quê? — meu pai quase gritou — Ele aceitou? Por quê?
— Isso eu não posso informar — disse o advogado, com a típica neutralidade de quem vive lidando com heranças e brigas de família. — Apenas posso afirmar que ele está de acordo com os termos do testamento e disposto a assinar o contrato de casamento.
— Que termos exatamente? — perguntei, tentando manter a calma.
Ele voltou a olhar para os papéis à sua frente.
— Precisam morar juntos, na mesma casa, especificamente na casa do seu tio avô aqui em Valência. O casamento deve ser público, sem segredos ou acordos discretos. Os dois devem ser fiéis um ao outro. E, como já dito, deve durar pelo menos um ano.
Era isso. A cada nova cláusula, a situação parecia um pesadelo mais absurdo.
E infelizmente, era tudo real.