A noite tinha sido estranhamente calma, mas a paz aqui nunca dura muito. Já estava deitada, quase pegando no sono, quando ouvi o barulho no portão. Um bater de palma rápido e seco, seguido por uma voz rouca chamando meu nome. Conhecia aquele som antes mesmo de meu cérebro entender o que era.
Levantei com o coração batendo na garganta, os pés descalços no chão frio. Abri a porta devagar e dei de cara com ele.
Dante.
O canto da boca sangrando, o supercílio aberto, a camiseta manchada de sangue e poeira. Ele parecia ter saído direto do meio de uma guerra, e provavelmente tinha.
— Que p***a foi que aconteceu? — soltei, antes mesmo de pensar.
Ele ignorou a pergunta, passou por mim e entrou na sala como se a casa fosse dele. Sentou no sofá com um suspiro pesado, a cabeça encostada, os olhos fechados por um segundo.
— Me traz um pano. E álcool.
Fechei a porta, xingando ele mentalmente, mas já correndo pro banheiro. Voltei com um pano limpo, algodão e um vidro quase vazio de álcool. Sabia que não era hora de questionar.
Sentei na beirada da mesa, na frente dele, e comecei a limpar o corte acima da sobrancelha. Minha mão tremia um pouco, mas ele não reclamou. Só ficou ali, me encarando, como se eu fosse um ponto de luz no meio da escuridão dele.
— Você não vai no hospital? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ele deu uma risada baixa, sem graça.
— Não posso.
Fiquei quieta. Sabia o motivo. Homem como ele não aparece em pronto-socorro com ferimento de briga de rua.
Enquanto eu passava o algodão com álcool, ele respirava fundo, os olhos fixos no meu rosto.
— Tá doendo? — perguntei, quase no automático.
— Só quando você some.
Fingi que não ouvi, mas minhas mãos tremeram de novo. Continuei cuidando dos cortes, limpando o sangue do canto da boca dele. Quando terminei, ele ainda estava me olhando, com aquele jeito que parecia querer atravessar minha pele.
— Você não vai embora, né? — perguntei, já sabendo a resposta.
Ele encostou a cabeça no sofá e fechou os olhos.
— Não hoje.
Deixei ele ali e voltei pro quarto, mas o sono não veio. Fiquei deitada, ouvindo cada movimento seu na sala, cada respiração. Até que, em algum momento, adormeci.
(…)
Na manhã seguinte, acordei com o cheiro de café fresco invadindo a casa. Levantei com o corpo pesado, arrastei os pés até a cozinha e parei na porta. Ele estava lá, de pé, sem camisa, esquentando água no fogão como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Clara já estava sentada à mesa, comendo pão com manteiga e falando sem parar.
— Ele fez café, mãe! E pediu pro moço da venda trazer leite, e pão, e até bolo!
Dante me olhou por cima do ombro, com um meio sorriso que dizia mais do que qualquer palavra. Virei as costas e fui pro banheiro me lavar, tentando ignorar o nó que se formava no meu estômago.
Depois do café, ele foi até a sala, pegou o celular e começou a fazer ligações. Falava baixo, mas dava pra entender que era coisa da boca. Alguém tinha desrespeitado as ordens dele, e ele não ia deixar barato.
Por volta das dez horas, escutei o ronco de moto chegando. Quando olhei pela janela, vi dois vapores encostando no portão. Fiquei gelada.
Dante pegou a chave de casa, desceu e ficou conversando com eles do lado de fora por uns minutos. Quando voltou, sua expressão era fechada, decidida.
— Agora tá resolvido — disse, simples assim.
— O quê?
— Dei o recado. Ninguém mais vai te olhar torto na rua. E se olhar... vai ter consequência.
Meu sangue parou.
— Que recado, Dante?
Ele passou por mim, pegou a carteira em cima da mesa e guardou no bolso.
— Só fiz o que tinha que fazer. Agora todo mundo sabe. Você é minha.
Tentei falar, protestar, mas as palavras não saíram. Ele saiu pela porta com a mesma calma de sempre, como se não tivesse acabado de me marcar pra vida.
Passei o resto da manhã entre a raiva e um medo que grudava nos ossos.
Na hora de levar a Clara na escola, ele apareceu de novo. Estava encostado no carro, de braços cruzados, como se aquele fosse seu lugar natural.
Quando me viu, apontou com a cabeça pra porta do carro.
— Hoje eu levo vocês.
Não discuti. Clara ficou radiante.
No caminho até a escola, ela encheu ele de perguntas, e ele respondeu com sons curtos, mas sem grosseria.
— Aonde você tá levando a gente? — perguntei, alarmada.
Ele riu baixo.
— Vamos sair um pouco.
Fomos parar num shopping do outro lado da cidade. Um lugar que eu só conhecia de ouvir falar. Tinha de tudo: brinquedos, praça de alimentação, lojas com preços que eu nem ousava sonhar.
Dante estacionou, desceu com a Clara no colo, natural, como se fosse algo que fazia todo dia.
Passeamos. Ele deixou ela escolher uma boneca, depois a levou pra comer batata frita e tomar refrigerante. E eu... segui os dois, com a cabeça girando, sem saber o que pensar.
Clara ria, contava coisas, e ele ouvia com uma paciência que eu nunca tinha visto nele.
E foi assim.
O dono do morro, a ex-prostituta e uma criança de sete anos, andando juntos no shopping como se fossem uma família normal.
E o pior, ou o melhor, é que, por algumas horas, quase parecia que éramos.