41. Dante

1142 Palavras
As coisas estavam confusas, mais do que eu queria admitir, mais do que eu sabia lidar. Nunca fui o tipo de homem que se apega, nunca tive paciência para criar vínculo com ninguém. Desde moleque aprendi que sentir é uma merda que só atrapalha, que qualquer fraqueza vira brecha. E brecha, num lugar como esse, significa morrer. Mas ali estava eu, sentado no sofá da casa dela, com a cabeça ainda meio zonza da febre e com uma vontade incontrolável de não sair dali. O cheiro da casa, o barulho da TV com o desenho da menina, a voz da Luna vindo da cozinha reclamando de alguma coisa com o gás ou com o açúcar... Tudo aquilo estava me deixando estranho. Olhei para o lado e vi a Clara sentada no chão da sala, com as perninhas cruzadas, colorindo um desenho torto de um cachorro. Ela cantava baixinho enquanto pintava, toda concentrada. Respirei fundo e fechei os olhos por uns segundos. Era só o efeito da febre, só podia ser isso. Mas então ouvi a porta do quarto abrir. Levantei o olhar e dei de cara com a Luna saindo. Ela estava de short, um daqueles de algodão curto demais, e uma blusa velha caída no ombro, mostrando parte da alça do sutiã. O cabelo preso de qualquer jeito, a pele ainda com aquele brilho de quem tinha acabado de tomar banho. Quando ela passou pela sala, com a mão mexendo no cabelo, pronta para sair, alguma coisa dentro de mim travou. — Vai aonde? — perguntei, com a voz mais grossa do que eu queria. Ela parou no meio da sala, olhou para mim com uma sobrancelha arqueada. — Levar o lixo lá fora. Por quê? — Assim? — Assim como? — ela abriu os braços, como se não entendesse. — Desse jeito... com essa roupa. Ela bufou e revirou os olhos. — Ah, pelo amor de Deus, Dante. Eu vou na lixeira. Daqui a pouco volto. Ela pegou o saco de lixo, bateu a porta e saiu. Meu maxilar travou. Ridículo. Ridículo eu estar irritado por isso, por uma roupa, por um lixo, por ela pisar na calçada com a p***a de um short que mostrava mais do que eu gostava. Me levantei com dificuldade, o corpo ainda pesado, mas a cabeça fervendo. Fui até a porta e fiquei ali, só observando ela andando até a lixeira. Dois moleques do outro lado da rua, encostados num muro, olharam. Um deles riu, falou alguma coisa baixinho para o outro. Meu sangue ferveu na hora. Ela voltou, passou por mim como se nada tivesse acontecido. Voltei para o sofá, mas minha cabeça não estava mais ali. Fiquei só com aquela imagem dos moleques olhando ela, a blusa caindo no ombro, o short curto demais... E o gosto amargo da ideia de que, cedo ou tarde, ela ia começar a achar que podia sair por aí, que podia olhar para outro homem... Ou pior, que outro homem podia olhar para ela. Fiquei largado no sofá, com a cabeça latejando, mas com o corpo já começando a reagir. A febre estava baixando, a respiração mais leve, as dores diminuindo. E mesmo assim, continuei ali. Deveria ter levantado, deveria ter ido embora. Já tinha passado da hora de sair daquela casa e colocar distância entre eu e essa mulher que me tirava do eixo. Fiquei repetindo para mim mesmo que assim que o café acabasse, eu ia levantar, pegar minhas coisas e sumir. "Hoje eu saio, hoje eu sumo, hoje eu volto pro mundo que eu sei viver..." Mentira. Uma mentira descarada que eu mesmo contava, mas nem eu acreditava mais. Enquanto ela mexia nas panelas, falando com a Clara sobre o desenho, o que eu fazia? Ficava ali deitado, escutando a voz dela, observando o jeito que ela prendia o cabelo, o modo como ajeitava o short quando ele subia nas coxas. Quando ela virou de costas, se abaixando para pegar alguma coisa no armário de baixo, eu precisei fechar os olhos para não surtar. Respirei fundo, mas foi inútil. A cabeça só girava em torno dela. Quando ela finalmente terminou o café, a Clara correu para a mesa, e ela ficou ali, toda distraída, enchendo o copo de achocolatado da menina, como se fosse o momento mais normal do mundo. — Vou passar na rua depois... preciso comprar sabão em pó — comentou, pegando um pão para ela. — Não vai sair — falei antes mesmo de pensar. Ela virou na hora. — Hein? — Não vai sair. Tá ouvindo? Fica em casa. O olhar que ela me lançou foi de puro deboche. — Você tá achando que manda em mim agora? Levantei do sofá, o corpo ainda fraco, mas a raiva me deixando de pé. — Não é questão de mandar, p***a. É questão de segurança. Esse morro é meu. Eu sei o que acontece aqui melhor do que você. Ela cruzou os braços. — Desde quando você se importa tanto assim com o sabão em pó que eu compro? — Não tem a ver com sabão! Tem a ver com o que você veste! Com o jeito que te olham! Com a merda toda que acontece aqui fora quando você pisa o pé na rua daquele jeito! A voz saiu mais alta do que eu queria. A Clara se assustou, olhou para gente com os olhos arregalados. Luna respirou fundo, fechou os olhos por um segundo como se estivesse se segurando para não gritar de volta. — Eu não sou sua mulher, Dante — ela disse baixo, mas firme. — E você não é meu dono. — Não... — falei, caminhando até ela, parando tão perto que eu podia sentir o cheiro do café que ela tinha acabado de tomar. — Mas você é minha. Quer queira, quer não. Ela travou, engoliu seco. Ficou parada, me encarando com aquele olhar de quem queria bater na minha cara, mas que também tremia de um jeito que eu já conhecia bem demais. Virei de costas antes que fizesse alguma besteira. Peguei o rádio que estava no canto da sala e chamei um dos meninos. — Alguém traz o que ela precisa. Sabão, açúcar, o que for. E deixa na porta. Desliguei antes de ouvir a resposta. Quando olhei de novo, ela ainda estava ali, quietinha, mordendo o lábio, os olhos brilhando, como se quisesse gritar, mas ao mesmo tempo como se já soubesse que, dali em diante, eu não ia dar mais espaço para ela me dizer "não". Levantei da mesa com a cabeça fervendo. O rádio tinha acabado de apitar, um dos meninos me chamando. Coisa da boca, nada que eles soubessem resolver sem mim. Fui até a porta, peguei a camiseta pendurada na cadeira e comecei a vestir. — Onde você pensa que vai? — a voz dela veio rápida, cortante.
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