43. Luna

1090 Palavras
Acordei com o corpo inteiro dolorido, como se cada músculo tivesse sido puxado, esticado e marcado por dentro e por fora. As costelas doíam, as pernas estavam pesadas e entre as coxas, um misto de ardência e sensibilidade me fazia lembrar a cada movimento o que havia acontecido na noite anterior. Virei de lado com cuidado. Dante ainda dormia, deitado de costas com um braço jogado sobre a cabeça, a respiração profunda e lenta. Parecia exausto. Por um segundo, fiquei apenas olhando para ele. A barba m*l feita, o corte de cabelo já crescendo nas laterais, a cicatriz perto da sobrancelha. Não havia nada nele que passasse uma imagem de calma. Ele era perigo, problema, controle e possessividade. E mesmo assim, ali, largado na minha cama, parecia quase humano. Suspirei e me levantei devagar. Peguei uma roupa simples, amarrei o cabelo de qualquer jeito e fui direto para a cozinha. Preparei um café, mas minha cabeça não parava. Já fazia dias que não saía sozinha de casa. Desde que ele começou com as crises de ciúmes, as ordens, os recados, eu vinha engolindo tudo calada. Mas hoje, eu precisava de um pouco de ar. Olhei para a porta, depois para o quarto onde ele ainda dormia pesado. Peguei a chave, vesti o chinelo e saí andando rápido, antes que meu bom senso gritasse mais alto. Desci a ladeira em passos apressados, fui até a padaria ali perto, comprei pão, um litro de leite e um pouco mussarela. No caminho de volta, senti o peso da culpa me acompanhando. Sabia que ele ia surtar, sabia que o rádio ia apitar a qualquer momento. E foi exatamente o que aconteceu. Antes mesmo de chegar na esquina de casa, ouvi o estouro do rádio na mão de um dos meninos que faziam guarda ali perto. — Cadê ela? — A voz dele, grossa e raivosa. — Subindo a rua, chefe. Voltando agora. O garoto me olhou de canto, meio sem graça, como se soubesse o que ia acontecer quando eu chegasse. Terminei de subir os últimos metros com o coração acelerado, o saco de pão na mão e o arrependimento batendo forte. Quando abri o portão, ele já estava de pé na porta, de bermuda e camiseta, com a cara de quem tinha acordado direto no inferno. — Que p***a foi essa, Luna? — A voz saiu baixa, o que era ainda pior. — Fui comprar pão — tentei manter o tom firme. — E tu achou que podia sair por aí, sozinha, sem me avisar? — Não sou sua prisioneira. — Não — ele deu um passo na minha direção. — Mas também não é livre pra fazer o que quiser. — Você tá me escutando? Eu só fui comprar pão, Dante! Nem dez minutos fora de casa! — Dez minutos é tempo suficiente pra alguém fazer merda. Ele respirou fundo, os olhos cravados em mim, como se quisesse explodir, mas ao mesmo tempo se segurando. — Da próxima vez... você pede — disse, mais baixo, mas sem abrir espaço para discussão. — E se eu não quiser? — rebati, encarando de volta. Ele me puxou de um jeito rápido demais, colando a boca na minha orelha. — Não me faz perder a paciência com você, Luna. Não hoje. Soltou meu braço e virou de costas, voltando para dentro de casa como se a discussão tivesse acabado. Fiquei parada ali por alguns segundos, o peito subindo e descendo, com as mãos tremendo de raiva, mas também com aquele maldito arrepio que só ele conseguia arrancar de mim. Entrei em casa com a cabeça fervendo e os dentes travados. Fechei a porta com mais força do que devia e continuei andando como se não tivesse ninguém me seguindo com os olhos. Passei direto pela sala, sem olhar na direção dele, ignorei o peso da presença dele parado ali, igual uma sombra grudada nas minhas costas. Fui para a cozinha e comecei a guardar as coisas. O leite foi para a geladeira com um empurrão rápido, o saco de pão largado na mesa e a margarina jogada na prateleira com mais raiva do que cuidado. Eu estava explodindo por dentro. Ele que se explodisse também. Peguei a garrafa de café, botei água para ferver, organizei os pratos na mesa, tudo no modo automático, sem falar uma palavra. A Clara apareceu pouco depois, com o cabelo bagunçado e os olhos ainda meio inchados de sono. Veio manhosa, me abraçou por trás e perguntou se tinha pão. — Tem sim, pequena — respondi, forçando um sorriso para ela enquanto ajeitava o prato com mais delicadeza. O clima estava carregado. Eu sentia o olhar dele me queimando a nuca, mas continuei ignorando. Preparei o suco, cortei o pão, passei manteiga. Me concentrei na Clara, nas coisas simples, como se o Dante não estivesse ali. Ele continuava calado, parado na porta da sala com os braços cruzados, respirando fundo como se tentasse conter a explosão que eu sabia que viria. Quando a Clara terminou de comer e foi para a sala pegar as canetinhas, o silêncio na mesa ficou ainda mais denso. Eu sentei, tomei meu café devagar, sem olhar para ele, fingindo que a existência dele não fazia diferença nenhuma para mim. Até que, de repente, ele quebrou o silêncio. — Eu exagerei. Parei no meio do gole. Levantei os olhos com calma, encarando ele como se estivesse tentando entender o que tinha acabado de ouvir. — Hein? Ele respirou fundo e repetiu, com a voz mais baixa e arrastada: — Com você... agora há pouco. Exagerei. Não devia ter falado daquele jeito. Soltei o ar devagar, encostei a xícara na mesa e deixei o silêncio trabalhar por mim por alguns segundos antes de abrir a boca. — Nossa... achei que esse dia nunca fosse chegar. Ele franziu o cenho. — Que dia? — O dia que o dono do morro, o homem mais marrento que eu já conheci, ia me pedir desculpa. Ele bufou, revirando os olhos como se eu estivesse falando besteira. — Não exagera. — Não tô exagerando. Tô só constatando — dei de ombros, mas o sorriso de canto entregou meu gosto de vitória. Ele mexeu o pão nas mãos, mas o olhar não desgrudava de mim. Eu via a luta interna dele, o orgulho mastigado, tudo ali estampado na cara dele. Aproveitei. — Se você quiser continuar seja lá o que a gente tem — comecei, respirando fundo — vai ter que parar com essa mania de querer controlar cada passo meu.
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