Eu nunca bati em muiher nenhuma

1385 Palavras
⸻ Tatu narrando: Quando eu vi ela vindo, arrastada pelos vapores, já senti que tinha alguma coisa diferente no ar. A mina era bonita. Bonita de verdade. Não daquele jeito vulgar que tô acostumado a ver no morro. Tinha presença, dignidade. Até com medo, ela vinha de cabeça erguida. Nunca vi nada igual aqui na Cidade de Deus. Patrícia. A irmã do Patrick, aquele zé drogado que já vendeu até a alma. Ele achou que me entregar ela ia quitar dívida. Vacilão. Mas quando eu vi ela… foi como se o morro todo tivesse parado. Falei pra ela sentar. Ela travou. Um dos vapores empurrou e ela caiu sentada na cadeira. Eu perguntei: — Tu que é a irmã do Patrick? Ela só fez que sim. E aí eu soltei, direto, do meu jeito: — Pois agora tu vai trabalhar pra mim, você. Achei que ia abaixar a cabeça. Que ia entender logo como funciona aqui. Mas não. Ela se levantou. O olhar dela queimava. E respondeu com uma firmeza que nem mulher do tráfico tem coragem de usar comigo: — Eu não vou trabalhar pra você. Nem pra você, nem pra ninguém. Ninguém manda em mim. Na hora meu sangue ferveu. O silêncio foi pesado. Ninguém nunca falou assim comigo. Os vapores ficaram em alerta. Gibi me olhou de lado, já sabendo que eu tava no limite. — Repete. — eu falei, andando até ela. — Eu não sou tua propriedade. Ela me desafiou. Na frente dos meus. Do meu morro. Eu nunca bati numa mulher. Nunca precisei. Mas ali… ali eu perdi o controle. O tapa saiu sem pensar. Seco. Alto. O rosto dela virou na hora, e Gibi entrou no meio: — Chefe! Chefe! Segura. Não precisa disso. Vi os olhos dela encherem de lágrima. Não chorou. Só encarou. Com ódio. Com dor. Com tudo misturado. E eu? Fiquei ali. Parado. Com a mão tremendo. Não era de raiva. Era outra coisa que eu ainda não entendi. Ordenei pro vapor: — Leva ela pra uma das casas de cima. Aquela que eu levo as mina de vez em quando. Deixa ela lá. Sem explicação. Sem toque. Sem nada. Só deixa. Eu precisava pensar. Porque ela me tirou do eixo. E ninguém nunca conseguiu fazer isso antes. Porra… Nunca bati em mulher. Nunca. Já fiz muita merda nessa vida, já torturei, já executei traidor, já meti bala em frente de mãe e filho… Mas mulher? Nunca encostei a mão. E hoje… logo nela. Logo na Patrícia. Me tranquei na laje depois que mandei levarem ela pra casa de cima. Acendi um cigarro, mas nem consegui tragar direito. O gosto tava amargo. A mão ainda tremia. Não sei se era raiva… ou arrependimento. Quando ela me desafiou, na frente de todo mundo, foi como se tivesse me dado um soco no meio do peito. Aquela menina tem um olhar que atravessa. Que desarma. E o pior? Eu senti respeito. Senti atração. E senti medo. Medo do que ela pode fazer comigo sem nem encostar um dedo. A p***a do tapa saiu. Seco, no reflexo. Nem pensei. Na hora, parecia que eu precisava mostrar que mando. Que sou o chefe. Que ninguém me afronta. Mas assim que a palma da minha mão encostou no rosto dela… foi como se o mundo travasse. Vi os olhos dela enchendo d’água. Não pediu socorro. Não implorou. Não correu. Só me olhou. Um olhar que me perseguiu até agora. E eu me pergunto: que tipo de homem eu tô virando? Gibi me encarou com um misto de pena e de medo. Ele nunca me viu assim. Porque nem eu me reconheço agora. A Patrícia não é qualquer uma. Não é corpo bonito de esquina, dessas que fazem pose pra ganhar atenção. Ela tem alma. Ela tem força. E eu… eu que me achava invencível, me vi de joelho com um olhar só. Porra, Patrick, seu desgraçado… tu jogou tua irmã na cova dos leões. E eu sou o leão mais faminto desse morro. Mas, pela primeira vez, eu não sei se quero devorar ou proteger. Só sei que, p***a… eu não devia ter batido nela. Agora não sei como vou consertar isso. Se é que dá pra consertar. Levantei da mesa sem falar nada. A rapaziada ainda tava lá embaixo, rindo, fumando, jogando conversa fora, como se nada tivesse acontecido. Mas minha cabeça tava em outro lugar. Já era noite. A favela tava naquele silêncio estranho que só vem depois do caos. Desci pela viela, passei pelos becos, todo mundo me olhando de canto, sem coragem de dizer nada. Eu fui pra casa… mas não consegui ficar lá. Fiquei andando de um lado pro outro. Me sentei. Levantei. Tentei dormir. Impossível. Só tinha uma coisa martelando na minha cabeça: ela. Então voltei. Fui até o barraco onde mandei deixarem ela. Andei devagar. Como se o peso de cada passo me lembrasse do que eu fiz. Tudo apagado. Nenhuma luz acesa. Só o som dos meus passos e um silêncio que me apertava o peito. Subi as escadas com cuidado, cada degrau me cobrando aquilo que nem eu sei como explicar. E aí… Ouvi. Um suspiro. Um choro abafado. Doído. Silencioso, mas fundo. Daqueles que não saem fácil. Me aproximei da porta. Abri devagar, quase arrependido antes mesmo de entrar. E lá estava ela. Encolhida num canto do colchão velho. Joelho abraçado no peito. De costas pra porta. A luz fraca da rua entrando pela janela e desenhando o contorno dela. Não falou nada. Não virou. Mas ela sabia que era eu. E eu? Eu fiquei ali. Parado. Olhando. Sentindo um peso que nem quando enterrei parceiro morto senti. Porque bater de frente com polícia, com rival, com facção inimiga… isso eu encaro. Mas lidar com o que ela me fez sentir… Com o que eu fiz com ela… É outra guerra. E pela primeira vez, eu não sabia se ia sair vencedor. Fiquei um tempo parado na porta, olhando ela encolhida ali, no canto do colchão. A cada segundo, a vontade de falar, de explicar, de desfazer aquele momento maldito aumentava. Mas eu sou Tatu. O chefe. Não sei pedir desculpa. Nem sei conversar com calma. Mesmo assim, entrei. Devagar. Cheguei perto dela. Me abaixei um pouco, tentando achar alguma palavra que não soasse como ordem. — Patrícia… — falei baixo, quase num sussurro. Ela nem se virou. Fingiu que eu não tava ali. Continuou abraçada nos próprios joelhos. Tentei me aproximar mais. Encostar de leve. Mas no momento em que minha mão chegou perto, ela se afastou com tudo, como se eu fosse um bicho selvagem. — Eu tô aqui obrigada! — ela gritou, com a voz embargada de choro e raiva. — Me deixa embora! Eu não fiz nada contigo! Aquilo me bateu como soco. Fiquei sem reação por um segundo. Mas o orgulho… ah, o orgulho falou mais alto. Passei a mão na cabeça, tentando manter o controle, mas minha voz já veio mais dura: — Agora é minha. Teu irmão me vendeu. Peoa de dívida. Silêncio. Ela ficou calada por um instante. O ar do barraco ficou pesado. Como se tudo tivesse parado. E aí… veio. — Eu não sou objeto, não sou moeda de troca, seu desgraçado! — ela se levantou de vez, o rosto marcado de lágrima, mas a postura firme. — Fala baixo comigo não! — rebati, já de pé também. — Tu tá aqui porque o drogado do teu irmão te botou nesse buraco! — E você aceitou! Aceitou uma mulher como pagamento! Que tipo de homem faz isso? — O tipo que manda nessa p***a toda! Que ninguém afronta e que cuida do que é seu! — Eu não sou “sua”! Nunca vou ser! Pode mandar me matar, mas eu não vou baixar a cabeça pra você! O coração batia no meu peito como um tambor. Ela gritava, e eu também. Mas entre cada grito, cada palavra atravessada, tinha algo que queimava mais forte que a raiva: a tensão entre a gente. O olhar dela era faca. O meu, escudo. E por dentro, eu tava um caos. Porque parte de mim queria calar ela com beijo. Outra parte… com bala. Mas no fundo, a única coisa que eu queria mesmo… Era que ela parasse de me odiar.
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