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Julia narrando
Fazia quase um ano que eu havia deixado a Rocinha. Um ano desde que vi minha vida se transformar, ser despedaçada e arruinada.
Se eu soubesse que aquele dia seria a última vez que veria minha mãe, teria dito que a amava, que a perdoava. Se soubesse que nunca mais veria Pedro Henrique, teria insistido para que ele fugisse comigo.
Muita coisa mudou desde então. Quando cheguei aos Estados Unidos, descobri que estava grávida. No início, achei que seria o fim, mas logo entendi que meu filho era, na verdade, o meu recomeço.
Cresci na Rocinha. Minha mãe, Fernanda, era o braço direito do morro. Meu pai, Antonio, aparecia de vez em quando. Na infância, convivi com meu irmão Kaio, que abusava de mim quando minha mãe não estava por perto. Contei para meu pai, criei coragem de revelar o que ele fazia, e depois disso nunca mais o vi… até que voltou para nossas vidas como policial.
Meu pai morreu alguns anos depois. Minha mãe, já amarga, tornou-se ainda mais dura e controladora. Foi nesse meio que me aproximei de Pedro Henrique, o subchefe do morro, o PH. A gente se apaixonou e manteve um romance secreto — se minha mãe descobrisse, me mandaria para longe. Planejamos casar, ter filhos, viver uma vida juntos. Mas, na hora da fuga, PH desistiu e escolheu ficar no morro. Horas depois, tudo desmoronou: soube da morte dele, da minha mãe e de Maria Luiza.
Malu tinha sido minha única amiga. No fim, descobri que ela era manipulada por Kaio… e que era minha irmã por parte de pai. Talvez por isso a conexão tão forte entre nós. Perdi até isso.
Eu daria tudo para ter minha vida de volta, mas agora não posso abrir mão do meu filho.
Foi em um navio, sem rumo certo, que conheci Maiara. Ela se tornou meu apoio e descobriu comigo a gravidez. Hoje é madrinha do meu filho, Pedro Henrique — um bebê cheio de saúde, idêntico ao pai.
— Minha mãe está vindo para cá — disse Maiara, de repente.
— Você não parece feliz com isso — comentei. — Faz tanto tempo que não se veem.
— Pois é… mas é estranho. Do nada, ela querer me visitar agora. — Ela olhou para meu filho e sorriu. — Ele é tão lindo dormindo.
— Ainda bem que é calminho — respondi rindo. — Assim consigo estudar. Mas tenho medo de o dinheiro acabar e eu não conseguir trabalho.
— Fica tranquila, você ainda tem bastante. E, se faltar, eu estou aqui. Você não está sozinha.
— Às vezes me sinto um peso na sua vida… eu e o PH.
— Para com isso. — Ela sorriu. — Você é como da minha família. E o meu afilhado é tudo para mim. Prefiro mil vezes ter vocês do que a minha mãe por perto.
Sorri de volta, grata por ter alguém como ela ao meu lado.
De volta ao morro da Rocinha
Não foi fácil me acostumar a uma nova vida: país diferente, pessoas diferentes, uma rotina completamente nova. Aprender a andar sozinha, enfrentar o mundo sem meus antigos apoios. Eu não superei. Apenas aprendi a conviver com a dor de não ter me despedido de ninguém.
Meu filho resmungou e fechei o notebook. Caminhei até ele e sorri ao ver aquelas covinhas tão parecidas com as do pai.
— Ah, PH… queria que você estivesse aqui para ver nosso filho — sussurrei, enquanto uma lágrima escorria.
PH narrando
Ver Maria Luiza chorar me fez lembrar de Julia. Imaginar como ela se sentiu ao receber a notícia da nossa falsa morte. Eu me arrependo. Me arrependo de ter aprovado o plano do RD, de deixar que o mundo acreditasse que estávamos mortos.
Julia ficou sozinha, perdida em algum lugar do mundo. Eu tentei achá-la, mas não havia registros, nenhum rastro.
Olhei para RD, que observava Maria Luiza ajoelhada do lado de fora. A cena era dolorosa demais. Era a prova viva do nosso fracasso.
Em pouco mais de um ano, perdemos demais. Erramos demais. Fomos engolidos pelo ego, pela necessidade de ter tudo. E, no fim, ficamos sem nada.
Eu perdi a mulher que amava. A única. Perdi por acreditar que meu mundo era a Rocinha, que precisava dela para sobreviver. Mas a verdade é que a Rocinha só tinha um destino para mim: a morte. Como aconteceu com Fernanda, JK, Ana… cedo ou tarde, todos caímos. Se não aqui fora, seria na cadeia.
Olhei para RD. Ele também sabia: nosso retorno ao morro era cheio de incertezas. O plano poderia dar errado, alguém poderia nos descobrir, mais pessoas poderiam morrer. Mas não havia volta.
Voltávamos mais fortes e mais fracos ao mesmo tempo. Cheios de certezas e de dúvidas.
Eu retornaria à Rocinha com um único sentimento: fracasso.
Porque, naquele momento, vida ou morte eram a mesma coisa — ambas significavam fracassar.