Pré-visualização gratuita CAPÍTULO 1
Eu sempre achei que a minha vida tivesse um ritmo próprio, mais lento do que eu gostaria. Uma espécie de trilha sonora interna que toca no fundo, enquanto tudo lá fora parece apressado demais. É por isso que começo os meus dias com cuidado, observando o teto antes de levantar, como se houvesse alguma resposta escondida entre as pequenas rachaduras da pintura. Nunca encontro, mas continuo procurando. Vai que um dia.
A escola é sempre a primeira parada, o lugar onde eu finjo ser alguém que não sou, enquanto o resto das pessoas também estão ocupados demais fingindo ter uma vida perfeita. A verdade é que ninguém ali tem muita certeza de nada, mas todos atuamos como se tivéssemos. Acho que é por isso que gosto do teatro. Não pelo palco em si, mas pela honestidade escondida nele: é o único lugar em que mentir se parece com dizer a verdade.
No caminho até o colégio, observo as mesmas árvores, os mesmos muros rabiscados com nomes de casais que provavelmente já terminaram, e o mesmo silêncio desconfortável dentro do ônibus. A rotina era tão previsível que me dava quase uma sensação de segurança. Quase.
Chego cedo, como sempre. Não sei exatamente por quê. Talvez seja o hábito, talvez porque gosto do corredor ainda vazio, onde o eco dos meus passos parecem maior do que eu. Coloco as mãos nos bolsos e deixo os meus pensamentos se arrastarem preguiçosamente — até ouvir o meu nome.
— Júlia! — É a Clara, meu ponto de apoio diário e também a prova viva de que o universo gosta de ironias. Ela é leve demais para ser minha amiga. Parece flutuar. Eu, por outro lado, caminho com o peso de mil preocupações inventadas.
— Você tá com uma cara péssima hoje. Dormiu m*l? — Ela encosta ao meu lado, mordendo uma barra de cereal que eu juro que ela vive repetindo desde o ensino fundamental.
— Eu sempre durmo m*l — respondo, desviando o olhar para o pátio que começa a encher. — Mas obrigada por notar.
Clara ri, daquele jeito irritantemente doce.
— É que você costuma esconder melhor.
Eu reviro os olhos, mas acabo sorrindo. Clara tem esse efeito: faz parecer que o mundo está menos inclinado a desabar a qualquer momento.
As aulas passam arrastadas. Matemática, literatura, história… tudo misturado numa sopa morna de explicações que entram e saem da minha cabeça sem pedir licença. O professor fala, os alunos fingem ouvir, e eu faço anotações que jamais vou reler. Pelo menos até o ensaio da tarde. Teatro é o único momento que não parece desperdício.
Quando chego na sala de ensaio, o cheiro de tinta de cenário e pó acumulado me abraçam como um velho conhecido. Gosto desse ambiente decadente. Tem personalidade. E talvez seja porque, de certa forma, me reconheço nele.
— Finalmente — diz Rodrigo, o diretor improvisado do grupo, sempre dramático demais para sua própria saúde mental. — Achei que você tivesse fugido.
— Fugi sim — respondo. — Mas percebi que a vida não melhora lá fora.
Ele sorri satisfeito e começa a distribuir as marcações. Enquanto repasso falas, sinto aquele cansaço confortável, uma exaustão mental que faz sentido, diferente daquela que carrego o resto do dia.
Quando o ensaio termina, eu corro direto para o estágio. Uma pequena editora de bairro, cheia de pilhas de livros desorganizados e cheiro de café queimado. O salário é quase simbólico, mas ficar rodeada de palavras me dá a falsa impressão de que eu tenho algum controle sobre a vida. Ler e organizar histórias alheias é mais fácil do que lidar com a minha.
Na editora, passo horas revisando textos, enviando e-mails, ouvindo o barulho constante da impressora que insiste em engasgar quando estou com pressa. Às vezes, meu chefe me pede opinião sobre capas ou sinopses. Ele jura que confia no meu “olhar crítico”, mas acho que ele só quer alguém jovem o suficiente para saber o que está na moda. Ainda assim, é agradável. Uma pausa do caos.
Saio quase no fim da tarde, com a cabeça doendo e o coração pesando mais do que deveria. Meu namorado me manda mensagem perguntando se nos veremos mais tarde. Digo que talvez. O “talvez” já virou parte natural do nosso vocabulário. Ele finge que não percebe; eu finjo que está tudo bem.
Sigo para o quiosque, o meu ponto de fuga no fim do dia. Um lugar simples na praia, com mesas de madeira e cheiro de sal misturado com fritura. É onde eu e meus amigos costumamos nos reunir. Não pelo quiosque, mas pela sensação de que o tempo desacelera ali, como se o mar tivesse esse poder. Sento na mesa de sempre, jogo a mochila no banco e observo o céu começando a mudar de cor.
Clara chega alguns minutos depois, trazendo também o Pedro, que está sempre rindo de coisas que eu não considero engraçadas.
— O que foi? — pergunta Clara, percebendo o meu humor amargo.
— Só o dia sendo dia — respondo. — Não é nada.
Ela sabe que é uma mentira, mas não insiste. Gosto disso nela.
Passamos quase uma hora falando de coisas banais: provas, fofocas, memes, reclamações sobre professores. É confortável. Um tipo de normalidade que não pesa. Até que o celular vibra no meu bolso.
É o Caio.
Onde você está?
Traz pão quando vier pra casa.
O Levi tá aqui.
A mensagem final me faz travar por um segundo.
E lá estava ele. No meio da minha noite tranquila e pacata, o elemento capaz de tirar o meu humor do eixo com uma facilidade irritante. Não consigo explicar o que me incomoda tanto em Levi. Talvez seja o jeito dele de existir, silencioso, organizado, impecável sem esforço. Parece que nasceu sabendo o que está fazendo, enquanto eu... eu tô aqui, tropeçando em mim mesma.
O fato de ele ser o melhor amigo do meu irmão só torna tudo pior. Subitamente, o ar do quiosque parece mais pesado.
— Problemas? — pergunta Clara.
— O de sempre.
Ela sabe decodificar meu “de sempre”. Significa Levi. Significa que a minha paz acaba quando ele entra em cena, mesmo à distância.
— Vai pra casa? — ela insiste.
— Vou. Antes que fique tarde.
Me despeço e começo a caminhar devagar pela calçada iluminada pelos últimos tons alaranjados do dia. O vento da praia esfria os meus pensamentos, mas não o suficiente. Minha mente já está ocupada demais imaginando Levi na minha sala, sentado, falando pouco, olhando demais. Ele sempre olha como se estivesse analisando alguma coisa que eu não vejo.
Quando chego no portão de casa, respiro fundo. Ouço vozes vindas lá de dentro, Caio falando alto, rindo, e aquele tom mais baixo, quase suave, que só pode ser do Levi. Sinto uma pontada de irritação. Irritação por quê? Nem eu sei.
Entro.
A sala está com a luz acesa, e os dois estão jogados no sofá, rindo de alguma coisa i****a na televisão. Caio me olha primeiro.
— Finalmente! — ele diz. — Trouxe o pão?
Levanto a sacola como prova e jogo no balcão da cozinha.
E então, inevitavelmente, o meu olhar encontra o dele.
Levi.
Sentado de forma relaxada, mas não desleixada. Como sempre. Camiseta escura, expressão tranquila demais para alguém que provoca tanto caos dentro de mim. Ele apenas me observa. Não como quem julga. Não como quem deseja. Mas como quem... entende. E isso me irrita profundamente.
— Oi, Júlia — ele diz, simples, direto. A voz baixa, firme, sem esforço.
Eu só aceno, tentando parecer indiferente. Mas por dentro, a minha mente está gritando: por que você precisa ser assim? Por que tudo em você parece tão… resolvido?
— Dia cheio? — Levi pergunta, ainda me olhando daquele jeito calmo que me dá vontade de derrubar algo só pra desestabilizar a paz dele.
— Sempre — respondo, seca demais. Percebo isso quando Caio franze a testa.
Levi apenas sorri de canto. Um sorriso minúsculo, quase imperceptível, mas que parece saber mais do que deveria.
E é aí que o incômodo se instala de verdade.
Eu termino de guardar as minhas coisas, tentando fingir que a presença dele não afeta nada. Mas afeta. Afeta como se tivesse sido projetado para isso. E enquanto subo as escadas rumo ao meu quarto, sinto o olhar dele me acompanhar. Não de forma invasiva. Apenas... presente demais.
E eu odeio o fato de perceber.
Fecho a porta do meu quarto com cuidado, como se isso fosse suficiente para manter os meus pensamentos contidos. Não é. Eles continuam circulando, teimosos, como mosquitos presos numa lâmpada.
O problema não é Levi estar na sala. O problema é o que a presença dele faz com o ar, com o silêncio, comigo. Parece que cada respiração dele desloca alguma coisa dentro de mim, e não necessariamente para um lugar bom.
Jogo a mochila no canto, tiro os tênis e deito na cama. Meus olhos se ajustam ao escuro, e por um momento eu só fico ali, ouvindo as risadas abafadas vindas do andar de baixo. Eles dois têm um jeito fácil de existir juntos. Sempre tiveram. Caio confia nele mais do que em qualquer outro amigo. Mas eu… eu nunca consegui simplesmente aceitar Levi como uma peça neutra no cenário da casa.
Talvez eu quisesse ser tão simples de ler quanto ele parece ser. Talvez me irrite esse contraste permanente entre o meu caos interno e a aparente ordem dele. Talvez eu só esteja cansada. Ou talvez, no fundo, eu tenha medo de admitir que a irritação é só uma defesa barata. Uma cortina de fumaça para esconder outra coisa.
Reviro o rosto no travesseiro, tentando afastar esses pensamentos. Não funciona.
— Júlia? — a voz de Caio ecoa fraca do corredor. — Vamos comer.
Demoro uns segundos antes de responder:
— Já vou.
Desço devagar, respirando mais fundo do que o necessário, como se eu fosse uma atriz se preparando para entrar em cena. Talvez seja isso mesmo. Às vezes, convivência familiar é puro teatro.
Quando chego na cozinha, encontro os dois preparando sanduíches improvisados. Caio sempre espalha uma bagunça absurda quando tenta cozinhar qualquer coisa: pão aberto pela metade, queijo respingado no balcão, uma faca perdida sabe-se lá onde. Levi, por outro lado, organiza tudo em pequenas fileiras, como se tivesse um mapa mental da mesa. Ele finaliza um dos sanduíches com uma concentração quase cirúrgica, sem perceber, ou sem fazer questão de mostrar que percebe, que eu entrei.
Caio, obviamente, nota.
— Ué, achei que você fosse estar de mau humor — ele diz, rindo.
— Eu nunca estou de mau humor — digo, séria.
Os dois fazem a mesma cara de descrença, como se tivéssemos ensaiado aquilo. Levi levanta uma sobrancelha, mas não comenta nada. Claro. Ele nunca comenta nada. Atua na sutileza, como se sequer precisasse se esforçar para isso.
Ele empurra um prato na minha direção.
— Fiz esse aqui pra você. Sem cebola. — Ele fala de forma simples, direta. Quase inocente.
Mas aquilo me acerta de um jeito estranho. Ele não deveria lembrar como eu gosto dos meus sanduíches. Não deveria notar detalhes tão pequenos. Eu nem sei se Caio lembra disso.
Meu corpo reage antes da minha mente.
— Eu faço o meu — digo, talvez rápido demais.
Levi recua o prato com um movimento lento, indiferente. Ou fingidamente indiferente. E, claro, isso só irrita ainda mais.
Caio nos observa de um jeito confuso, mas decide ignorar. Ele não enxerga nada. Para ele, eu e Levi somos duas linhas perfeitamente paralelas. Ele não vê os pontos de atrito, talvez porque nenhum deles é explícito o bastante para virar evidência.
Comemos em silêncio. Um silêncio normal para eles, mas insuportável para mim.
Depois, Caio anuncia:
— Vou tomar banho. Já volto.
E é nesse momento, exatamente nesse, que o universo decide que a minha paciência já estava boa demais para uma terça-feira qualquer. Porque agora estou… sozinha. Com Levi. Na cozinha. A pessoa que desencadeia metade dos meus pensamentos irritantes.
Ele recolhe os pratos, coloca um no escorredor, enxuga outro com calma. Tudo nele é calma. Como se o tempo funcionasse de forma diferente quando ele está por perto. Sem pressa, sem hesitação. Movimentos limpos, precisos… irritantemente elegantes.
Eu tento passar despercebida, mas claro que não funciona. Ele percebe tudo. A maneira como cruzo os braços, olho pro lado, a rigidez artificial do meu tronco.
— Você teve um dia r**m? — ele pergunta, ainda com aquele tom que soa mais como constatação do que curiosidade.
Reviro os olhos. Por dentro, e talvez por fora também.
— Tive um dia como qualquer outro.
— E isso significa r**m? — Ele não está rindo, mas eu sinto o sorriso escondido na pergunta.
— Isso significa que não é da sua conta.
Um silêncio fino se estende entre nós, como um fio prestes a arrebentar.
Ele finalmente se vira para mim. Encosta os dedos na borda da pia, inclina levemente a cabeça.
— Não estou tentando invadir nada, Júlia. É só… você não parece bem.
A frase me faz querer rir. Ou gritar. Ou as duas coisas.
— Eu nunca “pareço bem” pra você, né? — digo num tom que sai mais ácido do que eu planejei.
Ele pisca, lentamente. Não recua. Não se defende. Apenas observa, como sempre.
— Não foi isso que eu disse.
— Mas é o que você pensa — disparo. — Você acha que eu sou esse emaranhado de caos que vive em crise existencial enquanto você fica aí, perfeito, equilibrado, organizadinho. Deve ser fácil olhar pros outros de cima, né?
Ele franze levemente a sobrancelha. Uma reação mínima, mas que parece um terremoto vindo dele.
— Júlia… isso é o que você acha de mim. Não o que eu penso de você.
O coração dá um tropeço i****a dentro do peito. Odeio quando o meu corpo reage como se tivesse vontade própria.
— Tanto faz — murmuro. — Nem devia estar te explicando nada. Eu só não gosto da forma como você… existe. Pronto.
E aí, como se não bastasse, o destino decide aprontar.
Quando viro para sair, na tentativa infantil de fugir do constrangimento crescente, o meu cotovelo esbarra no copo que estava na beirada da mesa. Ele cai. O som de vidro batendo no chão ecoa pela cozinha como um tiro. A água se espalha rápido.
A parte constrangedora não é o copo quebrar. Não mesmo.
É o que acontece depois.
Porque quando eu me abaixo para pegar os pedaços, Levi se abaixa também. Ao mesmo tempo. E meu joelho esbarra no dele, minha mão encosta na dele, e por algum motivo i****a o meu rosto se aproxima demais do dele.
Por um segundo, um segundo traiçoeiro, parecemos presos no mesmo espaço, compartilhando uma respiração só. A cozinha, o barulho lá fora, tudo some. Existe só esse silêncio que não faz sentido, cheio demais, tenso demais.
Ele fala primeiro, com a voz baixa, tão baixa que eu sinto antes de ouvir:
— Cuidado. Você vai se cortar.
Eu recuo como se tivesse encostado em fogo. A vergonha sobe tão rápido que sinto o rosto esquentar inteiro. Me levanto desajeitada, quase tropeçando, enquanto ele recolhe os restos do copo como se nada tivesse acontecido. Como se meu momento ridículo não tivesse sido um evento digno de cinema mudo.
— Eu… eu cuido disso — gaguejo, o que é ainda pior.
— Já estou cuidando — ele responde, simples, sem provocação. E isso só me constrange ainda mais.
Caio volta exatamente nesse momento, como se tivesse sido convocado por alguma força sobrenatural para interromper a minha humilhação pessoal.
— O que aconteceu aqui? — ele pergunta, olhando para nós dois.
— Nada — respondo rápido demais.
— O copo caiu — Levi diz, calmamente. — Só isso.
A naturalidade dele irrita. A minha vergonha, maior ainda.
Caio não percebe nada de estranho. Claro que não. Ele pega um pedaço de pão, come sem pensar e muda de assunto. O mundo dele é simples. O meu, não.
Eu subo pro meu quarto outra vez, quase correndo. Quando fecho a porta, sinto o meu coração batendo forte demais, de raiva de mim mesma.
Raiva por esbarrar.
Raiva por corar.
Raiva por parecer vulnerável.
Raiva por ele notar.
Raiva por ele não fazer nada sobre isso.
E, principalmente, raiva por algo ainda pior:
Por um instante mínimo, minúsculo, silencioso, eu não quis me afastar.
E isso… isso é o tipo de verdade que eu não sei como engolir.