Capítulo 02

1413 Palavras
Gabrielle Duarte —Não é preconceito, Gabrielle, é questão de segurança. Não entendo o motivo de você gostar tanto de estar no meio do pessoal da baixada. —meu pai repetia a mesma coisa de sempre na mesa de almoço. —“Pessoal da baixada”, acho que você nasceu lá, não é mesmo? —debochei. Minha mãe olhou com olhos fulminantes e eu voltei a comer. —Nasci, infelizmente, mas sempre fui diferente. Aliás, por que quer tanto ir naquela igreja? Aqui tem tantas. —ele dizia. Sinceramente eu não entendo a implicância dos meus pais com isso, sei que viver aqui é mais seguro, mas as pessoas são iguais, existe maldade e bondade em todos os lugares, não só nos lugares mais ricos. Mas meus pais parecem não entender isso, também entendo que tudo o que eles fazem é pro meu bem, mas eu já tenho dezesseis anos e consigo perceber quando algo não está indo bem, consigo enxergar a maldade das pessoas. Inclusive a deles. —Porque eu me sinto bem em ir lá, pai, estou proibida até de ir a igreja agora? —questionei. —Ainda não. —ele disse. O resto do jantar foi arrastado, parecia um velório em casa, não sei pra quê uma casa gigante sendo que somos apenas nós três, tenho dó da diarista que vem limpar, ela faz tudo sozinha, eu amo dona Mila com todo amor do mundo, ela é incrível, sempre compartilha comigo sobre sua vida na baixada e inclusive foi ela quem indicou a igreja, no momento de uma crise de ansiedade muito forte. Ultimamente ela têm estado bem m*l, a pressão caindo constantemente, sei que ela não tem dinheiro para fazer exames periódicos, o ideal era mandá-la para casa para descansar, mas minha mãe é incapaz de sujar a unha com limpeza. Depois que felizmente engoli o último alimento do prato, corri para meu quarto para organizar as coisas do retiro, meus pais acham que eu vou passar três dias na casa de uma amiga que é filha de um casal de amigos deles, sei que estou mentindo, mas estou buscando uma experiência mais calma e íntima com Deus, ele pode me ajudar a sair disso, talvez. Bem, é o que eu espero. Eu nunca fui muito religiosa, mas dona Mila fala sobre sua igreja e sobre as coisas da igreja para mim e eu fui gostando, comecei a conhecer as coisas e quis adentrar, mesmo escondida do meu pai, que é católico e vai uma vez na vida, somente quando precisa fazer alguma doação e tem que tirar fotos. Meu telefone tocou e era minha amiga e fiel confidente Maria Luiza, ela sabia do meu plano e apoiava todas as minhas burradas, dessa vez não foi diferente, meus pais achavam que eu estava indo na casa dela e os pais dela achavam que íamos na casa de outra amiga. E assim nós levaríamos essa mentira. —Tudo pronto para amanhã? —ela perguntou assim que atendi. —Sim, minha bolsa já está organizada, muito obrigada por me cobrir amiga. —Faço tudo por você, querida. Me pague me tirando desta casa onde eu vivo, por favooor... —ela fez drama. Maria Luiza vive em um ambiente parecido com o meu, com a diferença que ela bate de frente com os pais toda vez, por isso ela é considerada a filha que deu errado entre os irmãos. —Achei que você me tiraria daqui primeiro. Estou decepcionada. —eu respondi e nós rimos. —Ok, quem sair de casa primeiro salva a outra. —ela gargalhou. —Combinado. —confirmei. Passamos alguns minutos na ligação, repassando nossos passos mais uma vez, pensando no que diríamos aos pais caso eles entrassem em contato e não obtivessem desposta. Malu era o oposto de mim, mas dávamos perfeitamente bem dessa forma. Ela é totalmente mais falante e eu não, ela briga e faz confusão por tudo e já eu prefiro resolver tudo na paz, mas as vezes quase sempre ela está lá para tomar minha dores e me salvar. Fui dormir ansiosa, eu não tenho muito costume de viajar sozinha ou mentir para meus pais, desta vez é uma rara exceção e em meu coração eu sinto que tudo isso está certo e vai valer a pena. Estou confiante disso. Quando acordei, passei o café da manhã inteiro calada, para não parecer nervosa e acabar entregando meus planos. —Quando quiser vir embora, me avise que eu peço o motorista para buscar você. —meu pai disse. —Está bem, pai. —respondi. Ele saiu logo depois para o trabalho e eu esperei dar o horário em que Maria Luiza viria me buscar e me levar até a baixada. —Está tudo bem? Parece ansiosa. —minha mãe comentou. —Estou bem, apenas pensando sobre meu futuro. —eu respondi. —Ah, vai ser brilhante querida, você vai ser a melhor pediatra desse estado, seu pai já organizou tudo, a faculdade já está paga e assim que o semestre começar, você vai. —ela disse. Meu coração parou de bater por um momento. Eu sabia dos planos deles de me mandarem ao Canadá, em breve eu faço dezessete anos, meu pai conversou comigo e perguntou onde eu queria cursar medicina, eu respondi que o mais perto de casa possível, mas infelizmente não é a vontade deles e eu nunca tenho voz nessa casa. —O quê? —perguntei num sussurro. —Não é perfeito? Você vai ser a melhor, querida. Confie em nós. —ela beijou minha testa e saiu da sala. Maria Luiza buzinou em seguida, me tirando do transe, peguei minha mochila e saí dali rápido antes de começar a chorar. Mas não consegui aguentar muito, assim que entrei no carro dela, desabei em lágrimas. —Gabi, o que aconteceu? —ela perguntou preocupada. —Meu Deus, eles vão me mandar para fazer faculdade no Canadá, eu disse que não queria, não quero ir pra longe, você sabe que eu quero ficar aqui. —eu respondi cedendo a mais lágrimas que teimavam em cair. —Eu sinto muito, Gabi. Sei que não é o que você queria, mas não podemos fazer nada, você é menor de idade e ainda responde a eles. —ela passou a mão na minha cabeça e fez um cafuné. —Eu sei, estou chorando justamente por isso. —eu respondi. Depois de alguns minutos desabafando, ela me levou até a igreja onde o ônibus já estava aguardando para sair, dona Mila estava na porta recepcionando os jovens e quando me viu, me deu um abraço que me desmontou de novo. —Andou chorando, querida? —ela perguntou. —Depois eu te conto tudo, só quero uma distração agora. —respondi. Fui recepcionada pelo pessoal da igreja, alguns eu já conhecia, outros ainda não, entramos no ônibus e eu sentei na última cadeira. Estava perdida em pensamentos quando dois meninos entraram, um mais novo vinha na frente, procurando seus lugares, o mais velho e mais alto vinha logo atrás. Ele estava com uma bolsa na mão e... Era minha mochila, caramba, eu havia esquecido em algum lugar. —É a minha mochila.—eu disse, apontei para a bolsa em suas mãos e ele veio em minha direção. —Estava na porta da igreja. Aqui. —ele me entregou e virou as costas. Continuei olhando para suas costas, eram largas, ele é moreno claro, cabelos castanho escuro, olhos castanho médio, sua voz era grossa mas muito gentil ao mesmo tempo, ele não me deu tempo de responder e foi sentar no meio do ônibus, ao lado do menino que entrou na frente. Não parei de olhar para ele, mesmo que ele não estivesse perto, em algum momento, acho que ele percebeu, pois virou a cabeça em minha direção e nossos olhos se encontraram. Eu não sabia o que fazer, esbocei um pequeno sorriso mas fiquei com vergonha de sua reação e virei o rosto para a janela do ônibus. Alguns segundos depois quando voltei a olhar, ele já não estava mais olhando para mim. Fomos a viagem até o local cantando músicas e fazendo brincadeiras, contei um total de três vezes em que ele olhou para trás, em uma delas ele estava rindo de uma piada e seu sorriso era bem bonito, tentei afastar esses pensamentos pois eu não tinha ido ali para conhecer um garoto. Estava em busca de uma solução para os meus problemas.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR