3 - Hariel

2136 Palavras
A primeira coisa que bateu foi o cheiro. Mistura de tempero forte, panela no fogo e aquele perfume suave de casa cheia que ele não sentia tinha anos. A segunda coisa foi o barulho. Risadas, passos, gritos de "pega o copo pra mim" e som de talher batendo em prato — Hariel ainda nem tinha entrado direito e já estava sendo engolido pelo caos afetuoso da família. Largou a mala no canto e seguiu o fluxo, com a Alice ainda pendurada no braço, tagarelando sobre uma apresentação de dança que ele teria obrigação moral de assistir no colégio dela. Yan desapareceu num segundo, dizendo que ia "resolver uma parada", o que provavelmente significava cochilar antes do almoço. Kauê o guiou até o quartinho da frente, aquele com a parede azul e a janela que dava pra rua. O colchão era simples, mas limpo, os lençóis esticadinhos, e uma cortina de tecido leve balançava com a brisa. Hariel reconheceu o pano de leve — era da Liz. Tinha aquele desenho geométrico brega que ela achava estiloso. — Valeu, tio. Já tá melhor que meu quarto lá no sítio. — Se quiser trocar o ventilador, fala comigo. Esse aí é barulhento, parece que tá tossindo — disse Kauê, rindo. — Fica à vontade. Aqui é casa. Hariel assentiu, ainda meio anestesiado com a mudança. O Rio tinha cheiro diferente. Ritmo diferente. O céu era mais perto, e a cidade parecia gritar mesmo quando tava em silêncio. Era uma bagunça bonita. E agora, era onde ele ia viver. Deixou a mochila na cama e foi até o banheiro lavar o rosto. Quando se olhou no espelho, quase não se reconheceu. Barba por fazer, olheiras da viagem, olhos atentos demais. Parecia mais velho do que se sentia. E então, sem querer, pensou na Liz. Ela tava diferente. Mais mulher, mais afiada, mais... perigosa. Aquela ironia toda ainda estava lá, mas agora tinha um brilho diferente nos olhos dela. Um brilho que deixava o sangue dele meio quente, meio irritado. — Se ela me encarar daquele jeito mais uma vez, juro que vou sonhar com isso — murmurou pra si mesmo. Mas nem teve tempo de alimentar muito o pensamento. Malu gritou da cozinha: — Hariel, vem lavar a mão! O almoço tá na mesa! — Tô indo! — respirou fundo. Era só o começo. Só um almoço. Mas ali, naquela casa apertada e barulhenta, com a prima mais insuportavelmente interessante do mundo sentada do outro lado da mesa... Ele sabia que não ia ser só nada. Era o primeiro dia de um campo minado. E ele nem sabia se queria evitar as explosões. Hariel desceu pra cozinha com passos leves, meio como quem pisa em território inimigo e tenta não ativar nenhuma armadilha. O cheiro do feijão tropeiro atingiu em cheio a memória. Ele lembrou da Aurora, dias antes da viagem, tentando empurrar um prato de legumes pra ele, dizendo que "comida de cidade grande" era leve, mais saudável. E do pai, parado na porta da cozinha, falando que cidade grande não é desculpa pra virar o****o. — E, pelo amor de Deus, Hariel — Guilherme dissera, com o cenho franzido — não se mete com coisa errada. Nem amizade torta, nem trampo estranho. E se arrumar confusão com mulher, lembra que você carrega o nome de uma família que sobreviveu demais pra ser desrespeitada. Na hora, ele só riu, prometeu que ia se comportar, deu um abraço nos pais e um beijo na testa da irmãzinha Flora, que disse que ia guardar uma pedra especial pra ele "levar pro Rio e afastar energia r**m". Agora, enquanto se aproximava da mesa da cozinha, percebeu que talvez tivesse que usar a tal pedra antes do esperado. — Opa! — disse, entrando. — O cheiro tá me lembrando os almoços no sítio. Kauê sorriu com orgulho, sentado à ponta da mesa, com Alice do lado e uma colher já apontando pro arroz. — A gente sabe cozinhar, ora essa. Tá pensando o quê? — Achei que ia ter tofu e suco detox — Hariel provocou, se sentando de frente pra Liz, que ergueu os olhos do prato com uma sobrancelha arqueada. — Só se for na sua dieta de sítio — ela retrucou, sem perder o ritmo de encher o prato. Yan, que estava ao lado dela, bufou de leve, sorrindo com os cantos da boca. — Se vocês dois brigarem no almoço, eu juro que jogo farinha nos dois — disse Alice, com seriedade e o dedo em riste. — Ninguém vai brigar, né? — disse Malu, servindo um pedaço de linguiça no prato do Hariel. — Família reunida, comida boa, clima tranquilo... — Clima tranquilo? — Liz murmurou, pegando uma farofa como quem pega munição. — Só falta a trilha sonora de Casos de Família — completou Hariel. Kauê bateu a palma da mão na mesa, rindo alto. — Pronto. Esses dois vão se matar antes do mês acabar. — Ou se casar — disse Yan, num tom seco. A mesa congelou por um segundo. Até a colher da Alice parou no ar. Liz girou lentamente o rosto pro irmão. — Que que você falou? — Nada — respondeu ele, dando de ombros. — Só pensando alto. Tem tensão aí. O povo estuda cinema, eu aprendo a ler roteiro. Hariel soltou uma risada curta, abafando com um gole de suco. Liz, por sua vez, voltou ao prato como quem decide ignorar por educação — mas os ombros estavam tensos, e o maxilar dela mexia devagar demais. Malu, sempre mediadora, resolveu mudar o rumo da conversa. — E aí, Hariel, já sabe como vai ser sua rotina? Quando começam as aulas? — Semana que vem. Ainda tenho que resolver a papelada da matrícula presencial, mas já tá tudo certo. Vou estudar Comunicação Social. — Quer ser jornalista? — Kauê perguntou, interessado. — Não sei ainda. Gosto de escrever, gosto de entender como as coisas funcionam. Talvez publicidade. Talvez audiovisual. Tô aberto. — Aberto demais, esse menino — Liz murmurou. — Melhor do que viver trancada no próprio quarto fingindo que o mundo lá fora não existe — ele respondeu, sem olhar. Malu bateu com o garfo na mesa. — Chega. — Alice ergueu a mão, teatral: — Posso falar uma coisa? — Fala, amor — respondeu Kauê. — A Liz gosta do Hariel. — a colher do Hariel caiu dentro do feijão com um ploc barulhento. Liz largou os talheres e virou pra irmã: — Alice, por que você faz isso? — Porque é verdade — respondeu, com a convicção de quem não sabe o peso da frase que acabou de soltar. — Você só briga com quem você quer atenção. — Ah, que ótimo. Psicóloga agora — Liz murmurou. Hariel só riu, se levantando com o prato na mão. — Acho que vou repetir. A comida tá boa demais pra essa tensão emocional gratuita. Ele caminhou até o fogão, serviu mais um pouco de arroz e tropeiro, e, enquanto virava de volta, cruzou o olhar com Liz. Ela ainda tinha aquele brilho nos olhos. Não era raiva. Era faísca. E Hariel sabia bem reconhecer quando um fósforo já tava aceso. Ela tava pronta pra incendiar. E, de um jeito que ele jamais admitiria nem sob tortura, ele queria ver até onde esse fogo ia queimar. Horas depois, a casa, que mais cedo parecia uma feira, agora estava mergulhada num silêncio preguiçoso de fim de tarde. Um ventilador zumbia de leve na sala, misturado ao som distante de um jogo de futebol vindo da TV de algum vizinho. O cheiro da comida ainda pairava no ar, mas mais suave, misturado com sabonete e sol batendo no azulejo do corredor. Hariel estava na varanda dos fundos, sentado na rede, com um livro aberto no colo — mas sem ler. Estava ali mais pelo sossego do que por qualquer capítulo. Ainda não tinha se acostumado com o calor abafado do Rio, com o ritmo acelerado da casa, com o fato de agora dividir parede com gente que falava alto, comia junto e comentava a vida dos outros como quem comenta novela. No sítio, o barulho mais comum era o das galinhas. Aqui era buzina, riso, grito, panela. Mas o que realmente deixava ele inquieto tinha nome. Elizabeth. Desde o almoço, não parava de pensar no jeito que ela o olhou. Não foi só raiva. Tinha alguma coisa ali. Um desafio. Um jogo que ainda não tinha começado direito, mas que ele sabia que ia ser longo. Levantou da rede, deixou o livro virado na mureta e entrou na cozinha. Abriu a geladeira, pegou um copo d'água, e foi aí que escutou passos. Reconheceria aquele andar em qualquer lugar. — Já acabou o teatrinho da família feliz? — Liz apareceu na porta da cozinha, com o cabelo preso num coque torto e um short que parecia mais curto do que ele lembrava. Hariel virou de leve, encostando no balcão. — Já, sim. Agora começa o reality show: Primos em Confinamento. Ela bufou, pegando uma maçã da fruteira. — Só espero que a produção me dê um quarto individual. Já basta o drama de ter que ver sua cara todo dia. — Achei que você gostasse de drama. Lembro bem das suas crises quando alguém cortava seu cabelo torto. — Isso foi uma vez, e eu tinha dez anos! — E chorou como se tivessem tirado sua alma com a tesoura. Ela girou nos calcanhares e começou a andar de volta pro corredor. Hariel seguiu, encostando no batente da porta da sala, vendo ela se jogar no sofá com a maçã na mão, como se a casa inteira fosse território dela. De certa forma, era. — Você vai ficar quanto tempo aqui, afinal? — ela perguntou sem olhar. — O tempo que durar a faculdade. Ou até você me expulsar com uma faca de cozinha. — Tô considerando isso. — Mas aí vai ter que inventar uma desculpa pros meus pais. Vai dizer o quê? Que eu fui atacado por um bicho selvagem no Rio? Ela mordeu a maçã com força, rindo de canto de boca. — Não subestima minha criatividade. — e então silêncio. Ele ficou observando o jeito como ela se encaixava no sofá. Como mesmo brava, ela parecia confortável ali. Como o cabelo dela era cheio de vida e o olhar cheio de fogo. Sempre foi assim, desde pequenos. Liz era fogo. Era grito. Era movimento. E ele sempre foi o oposto — observador, calado, ácido só quando precisava. — Por que você me odeia tanto, hein? — ele perguntou de repente. Ela parou de mastigar. — Eu não te odeio. — Não parece. — Eu só acho você... insuportável. — Tá. E por quê? — ela encarou. — Porque você me tira do sério. Desde sempre. Porque você tem essa cara de "tô acima disso tudo" que dá vontade de dar um tapa. Porque você sempre sabe o que dizer pra irritar. Porque você não responde gritando, você responde sorrindo, e isso me dá nos nervos. — Uau — ele respondeu, encostando no sofá, com um meio sorriso. — Achei que eu era só seu primo chato. Mas parece que deixei uma marca. — Uma cicatriz, talvez. — E você acha que não me irritava também? Você era mandona. Esnobe. Aquela criança que queria ser adulta aos oito anos. Que corrigia meu português na frente dos outros. — Porque você falava "pra mim fazer", Hariel! — E você falava "absolutamente necessário" com sete anos. Quem fala assim, Liz? Ela mordeu a maçã de novo, encarando ele. Não tinha mais raiva no olhar. Era outra coisa. Uma espécie de curiosidade inquieta. Como se estivesse tentando decifrar o que ele virou, e sem sucesso. — Você tá diferente — ela disse, finalmente. — Você também. Silêncio de novo. Um silêncio estranho, que não era desconfortável. Só carregado demais. Ela largou a maçã no pratinho do centro da sala, cruzou os braços e se afundou mais no sofá. — Só pra deixar claro: não tô aqui pra fazer as pazes. — Eu também não. Mas se quiser trégua, é só pedir. — Hariel... — Liz... — Você continua um i****a. — E você continua linda, infelizmente. — Liz arregalou os olhos por um segundo, surpresa. Ele riu, virou as costas e foi saindo da sala. — Tá vendo? — ela gritou. — É disso que eu tô falando! — Do quê? — ele disse, já no corredor. — Dessa sua mania de jogar e sair andando. Isso é manipulação emocional! — É charme mineiro — respondeu, sem olhar pra trás. Liz ficou ali, no sofá, de braços cruzados e coração acelerado, odiando o fato de que, pela primeira vez em muito tempo, ela não tinha resposta pronta. E isso, vindo dele, era absolutamente imperdoável.
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