A notícia caiu como uma bomba enquanto ela terminava de secar o cabelo.
— Ele quem?! — Liz perguntou, com a escova na mão e um olho pintado de roxo e o outro ainda nu.
— O Hariel, ué. Filho da Aurora. Lembra dele, né? — respondeu Malu, como se estivesse falando que a geladeira chegou.
— "Lembra dele", mãe? Você tá falando do garoto que botou ketchup no meu vestido no Natal de 2015!
— Aquilo foi um acidente.
— Ah, claro. Como se a cara de deboche dele fosse parte do acidente. — Liz girou nos calcanhares. — E ele vai morar aqui?
— Só por um tempo. Vai estudar no Rio. Vai ficar com o seu avô, ora. Qual o problema?
— O problema, mãe, é que eu gosto da minha paz! Da minha privacidade! Do meu banheiro sem fio dental de primo ruralista enfiado na saboneteira!
— Primeiro: Hariel não é ruralista. Ele é de sítio, mas é cabeça aberta. Segundo: você exagera tudo. Terceiro: a casa é do Treva, não é sua. E quarto: ele é da família.
Liz cruzou os braços.
— E da próxima vez que vocês forem me avisar que minha infância infernal tá vindo morar comigo, por favor, deem um aviso prévio, tá bom?
Malu nem respondeu. Só ergueu uma sobrancelha e saiu do quarto. Liz encarou o espelho por um segundo. Já sabia que não ia ganhar essa discussão.
Família é isso mesmo, Elizabeth, aprende a dividir espaço, ecoava a voz do Kauê na memória dela.
Mas ninguém mandou esse povo ser tão agregador. "Vem morar com a gente, primo querido!" Como se ela tivesse coração de tia-avó de novela das seis.
Bufou, puxou o delineador e terminou o segundo olho com a concentração de quem tava indo pra uma guerra. Porque, de certa forma, era.
No presente, Liz estava dentro do carro do avô, com o ar-condicionado soprando um ar quente e o rádio tocando um samba antigo que ela nem sabia de quem era. Pés pra cima no painel, celular na mão, e o humor entre "péssimo" e "aceitável se ninguém falar comigo".
O vô Treva e a mãe tinham descido pra buscar o Hariel na rodoviária, e ela ficou ali esperando, de cara amarrada e olho arregalado em toda criatura que se aproximava demais do carro.
— Só o que me faltava era esse primo chegar com cheiro de mato e querer sentar na mesa de domingo como se nada — resmungou pra si mesma.
O pior é que ela lembrava dele.
Não só das tretas, das provocações e das brigas homéricas nos encontros de família. Mas também daquele jeito calado, dos olhos atentos demais, das respostas afiadas que ele soltava quando ela achava que tava ganhando a discussão.
Eles tinham sido rivais de infância no melhor estilo: guerra fria entre primos. Nada físico — só ironia, competição e pequenas sabotagens que quase sempre acabavam com algum adulto gritando "CHEGA!" no meio da festa.
A verdade, que ela jamais admitiria em voz alta, era que Hariel tinha crescido bonito. Ela tinha visto umas fotos. Aquele cabelo desalinhado de propósito, a barba rala, os olhos de quem lê poesia e milita em comentários de i********:.
— Ótimo — murmurou. — Além de insuportável, agora é gostoso. Que delícia.
Mexeu no celular, rolando o feed sem prestar atenção.
Tentou se distrair, mas a cabeça insistia em imaginar a chegada dele. Será que ele ia vir de chinelo? Com camiseta da UF? Cheirando a capim-limão?
Ela deu uma risada curta.
— Se ele me chamar de "prima" com aquele tom irônico de sempre, eu juro que jogo a mala dele no barranco.
E foi aí que ouviu vozes. Treva primeiro, rindo alto. Depois Malu. E então...
Hariel.
Liz se ajeitou no banco, sem perceber. O coração deu uma batida mais forte, irritante, como quem diz: reparou, né? Reparei, inferno.
Ela suspirou fundo, preparando a cara de "tanto faz" que vinha treinando no espelho desde que soube da notícia.
A guerra tava prestes a recomeçar.
Só que agora, os dois tinham idade suficiente pra saber que o campo de batalha era outro. E muito mais perigoso.
O porta-malas se abriu com um estalo seco. Liz fingiu estar muito concentrada no celular, mas os olhos seguiram pelas laterais da tela, atentos como uma felina entediada.
Hariel apareceu carregando uma mochila nas costas e uma mala surrada nas mãos. Estava mais alto do que ela lembrava. Mais largo também. O cabelo crescido, meio bagunçado, combinava perfeitamente com a camisa branca amassada e a calça jeans de quem tinha passado horas socado num ônibus sem reclinar o banco.
Ele jogou a mala no porta-malas como quem já conhecia o carro. Malu foi logo abraçando ele de lado, dizendo que ele estava igualzinho ao pai, e Treva só ria, batendo nas costas do neto com aquele orgulho de quem criou meio mundo no colo.
Liz continuava fingindo que não via nada. Mas aí veio a voz.
— E aí, Liz. Quanto tempo. Ainda me odeia ou deu uma trégua?
Ela virou o rosto devagar, como se não tivesse a menor pressa, e encarou ele com um olhar que podia matar plantas à distância.
— Depende. Ainda joga travesseiro com fecho de zíper nas pessoas?
Hariel riu. Aquela risada calma, debochada, que ela lembrava bem demais. A risada que dava vontade de bater e beijar ao mesmo tempo — não que ela fosse admitir nenhuma das duas vontades.
— Só em quem merece — ele respondeu, e abriu a porta de trás do carro.
Treva entrou no volante ainda rindo. Malu ajeitou a bolsa no colo e virou-se para frente, falando com os dois jovens como se fosse uma professora de jardim:
— Nada de brigar, hein? Quero paz nessa casa. Olha que vocês já têm idade pra deixar essas bobeiras de infância de lado.
— Claro, tia. Sou um homem pacífico agora — disse Hariel, sentando no banco e puxando o cinto.
— Liz? — Malu perguntou. Ela sorriu sem mostrar os dentes.
— Paz total. Desde que ninguém mexa na minha prateleira de shampoo e na minha gaveta de calcinha.
Treva ligou o carro.
No caminho, Liz tentou focar no celular, mas era difícil. Hariel parecia ter se especializado em ocupar espaço com naturalidade — o jeito de sentar, de encostar o braço na porta, de puxar assunto com o avô, como se já morasse ali fazia meses.
Ela cruzou os braços. Essa convivência ia ser um inferno. Um inferno bonito, cheiroso e com sotaque mineiro.
E o pior? Ela já tava começando a suar antes mesmo de chegar em casa.
O carro virou a esquina e subiu devagar a ladeira onde a casa dos Rocha ficava, no alto do morro. A fachada simples, com o portão sempre um pouco aberto e a varanda ocupada por vasos de plantas e brinquedos da Alice, parecia mais apertada do que Liz lembrava.
Talvez fosse a presença do Hariel que tornasse tudo menor. Ou o fato de que, de agora em diante, ela ia dividir aquele espaço com ele.
Treva buzinou duas vezes, e o portão rangeu antes mesmo de alguém aparecer.
— Chegamo — anunciou ele, desligando o carro.
Hariel desceu primeiro, esticando o corpo como quem se libertava de uma prisão. Respirou fundo, como se estivesse absorvendo o ar quente do Rio com prazer. Liz, por outro lado, bateu a porta com força desnecessária.
Kauê apareceu no portão com um sorriso aberto e o olhar de quem já sabia da bomba antes dela explodir.
— Opa! Se não é o mineirinho mais enrolado do Brasil! Vem cá, rapaz! — Hariel largou a mochila no chão e foi recebido com um abraço apertado do tio. — Tô parecendo teu pai, né? — Kauê perguntou, rindo, enquanto o analisava de cima a baixo.
— Um pouco, mas com menos cabelo branco — devolveu Hariel, sorrindo.
— Ih, já chegou querendo apanhar — comentou Liz, passando pelos dois com a bolsa dela no ombro.
— Também senti sua falta, prima — ele disse, sem nem virar. Antes que ela retrucasse, a voz de Alice cortou o ar:
— É ele?! É o primo do sítio?
A garota surgiu descalça, de camiseta larga e cabelo preso em um coque torto, descendo as escadas como se fosse um cometa.
— Eu sabia que era hoje! Yan disse que não era, mas eu sabia! — Alice correu até Hariel e deu um abraço nas cintura dele antes que ele pudesse sequer se abaixar.
— Ei, calma! Tô sem armadura — disse ele, rindo.
— Alice! Vai devagar! — gritou Yan lá de dentro, surgindo logo depois, com o uniforme da escola amassado e o fone ainda pendurado no pescoço. — E aí, primo. Bem-vindo ao caos.
Hariel deu um soquinho no ombro do Yan, que respondeu com aquele ar meio blasé de quem finge não se impressionar com nada.
— Tá todo mundo maior, velho. Que isso? Vocês tão botando fermento na comida?
— Na comida e na vida — disse Kauê, fechando o portão atrás deles. — Bora entrar, o almoço tá quase pronto. E sim, Hariel, tem feijão tropeiro. Sua tia se superou.
Liz revirou os olhos. A última coisa que ela queria era um almoço em família comemorando a chegada do "primo queridinho".
Hariel pegou a mala e a mochila, subindo os degraus com Alice colada no braço dele como um chaveiro.
— Tu vai dormir onde? No quarto do Yan?
— Que nada — respondeu Kauê. — Vai ficar no quartinho da frente, o da parede azul. Tá tudo arrumadinho. Liz ajudou, inclusive. — ela parou no meio da escada.
— Eu só emprestei a cortina, e foi sob protesto. — Hariel sorriu. Aquele sorriso de canto de boca que dava vontade de mandar ele voltar pro ônibus.
— Ficou bonito. Vou dormir com estilo.
Liz bufou e entrou para o quarto, decidida a esquecer a existência dele por pelo menos duas horas. Mas sabia que era perda de tempo. O cheiro de comida no ar, o burburinho da casa, a risada dele no fundo — tudo já tava se enfiando nos cantos onde a paz dela costumava morar.
E a guerra, oficialmente, tinha começado.