O cansaço já tava estampado na minha cara. Depois de um dia inteiro na padaria, com calor, cliente m*l-humorado e minha chefe pegando no meu pé, tudo o que eu queria era um banho gelado e o Ryan no meu colo.
Peguei ele com a Rayssa assim que cheguei. Ele abriu os bracinhos, todo manhoso.
— Ô meu amor... a dindinha tava com saudade. — Apertei ele contra mim, sentindo aquele cheirinho de bebê misturado com talco e leite.
Rayssa, que estava de avental sujo de pó de unha, espiou pela cortina que dividia o estúdio da sala. A cliente dela tava de costas, de fone no ouvido, assistindo alguma coisa no celular.
— E aí... dormiu tarde ontem, hein? — Ela disse no tom mais malicioso possível, mas baixinho, só pra mim escutar.
— Nem começa... — Dei um sorriso de canto, passando a mão nas costas do Ryan que já deitava a cabeça no meu ombro. — Tô moída até agora.
— E o... projeto de problema? — Ela arqueou a sobrancelha, ajeitando as ferramentas na mesinha dela, mas sem olhar direto pra mim.
— Qual deles? — Fiz graça.
— O da calçada... o que fica te olhando como se quisesse te trancar dentro de um quarto escuro. — Ela riu baixinho, olhando de relance pra porta da sala, só pra garantir que a cliente não tava prestando atenção.
— Ah... esse mesmo. — Suspirei, balançando o Ryan devagar pra ele não acordar de vez. — Ele tá com umas ideias... acho que o álcool deu uma soltada na língua dele.
— Hum... soltada na língua é? — Rayssa soltou uma risadinha, pegando um esmalte da prateleira. — Só cuidado pra não deixar ele soltar outras coisas por aí também.
— Aff... para com isso, Ray! — Tentei disfarçar o sorriso, mas não deu. — Foi só conversa fiada. Ele gosta de brincar comigo, tu sabe como ele é.
—Sei... sei muito bem. — Ela se virou pra cliente, começando a lixar uma unha, mas ainda me olhou por cima do ombro. — Só não finge que você não gosta também.
Fingi que não ouvi. Beijei o topo da cabeça do Ryan, fingindo que tava focada só nele. Mas lá no fundo... o sorriso bobo no meu rosto me entregava.
Enquanto a Rayssa continuava mexendo nas unhas da cliente, eu já tava quase pegando no sono ali mesmo, no sofá da sala, com o Ryan no colo. Mas aí ouvi o barulho de uma moto parando na frente de casa.
Nem precisei olhar pela janela pra saber de quem era. Dois segundos depois, escuto a voz grossa dele na porta.
— Ô... bora? — Nathan apareceu encostado no batente da porta do salão, de boné virado pra trás, corrente no pescoço e aquele sorriso de canto que ele sabia usar muito bem quando queria me desestabilizar.
Eu levantei a cabeça devagar, segurando o Ryan com uma mão só e olhando pra ele com deboche.
— Ué... e bandido agora não trabalha mais não? — Cruzei a perna, com aquele ar de falsa superioridade só pra provocar.
Ele riu, daquele jeito arrastado, como se não tivesse pressa de responder.
— Trabalho o dia inteiro... mas sempre sobra um tempinho pra buscar minha cria. — Ele me olhou de cima a baixo, com aquele olhar demorado, quase descarado. — Bora ou vai ficar me enrolando?
Rayssa, por trás da cliente, disfarçou a risada, abaixando a cabeça.
— Cria? Desde quando? — Perguntei, me levantando com o Ryan no colo, só pra provocar mais.
— Desde sempre. — Ele deu de ombros, me lançando aquele olhar de quem sabia que tava me deixando sem graça. — Agora anda, antes que eu mude de ideia e te jogue na garupa sem perguntar.
Fiz cara de ofendida, mas meu coração já tava acelerado.
— Espera só eu pegar a bolsa. — Falei, fingindo desdém, mas andando rápido antes que eu mesma perdesse a pose.
Antes de sair, Rayssa só lançou:
— Se comporta, hein, Loreninha...
Fingi que não ouvi. Mas pela cara do Nathan... ele tinha ouvido, sim.
Coloquei o Ryan com cuidado no berço, ajeitando a cobertinha em cima dele. Ele já tava com aquele soninho pesado de tarde, o corpo quente e a respiração lenta. Passei a mão de leve na testa dele, com aquele carinho automático que a gente cria quando ama demais alguém.
— Dorme bem, meu amor... — Sussurrei, dando um beijo na bochecha dele.
Fiquei parada um tempo ali, olhando pra ele, com o peito meio apertado. Ainda tava com a cabeça cheia de coisa... O genitor dele querendo aparecer agora, do nada, depois de sumir tanto tempo. Ainda por cima querendo tirar o menino de mim e da Rayssa, como se fosse um pai presente... Só de lembrar, já me dava vontade de quebrar alguma coisa.
Respirei fundo, tentando deixar essa raiva de lado, e peguei a minha bolsa.
Quando voltei pra sala, o Nathan já tava do lado de fora, mexendo no celular, encostado na moto. A camisa preta grudando no corpo, deixando à mostra a tatuagem que ele tinha na lateral do pescoço.
Dei uma ajeitada rápida no cabelo, só pra garantir que não tava tão descabelada.
— Pronta? — Ele levantou o olhar, guardando o celular no bolso.
— Tô. — Respondi, me aproximando.
Assim que sentei na garupa, ele segurou minha perna pra me ajudar a firmar. O toque dele foi rápido, mas suficiente pra deixar minha pele queimando por uns bons segundos.
Segurei na lateral da cintura dele, com os dedos meio trêmulos, mas disfarcei.
O motor da moto roncou e partimos. A brisa quente da tarde batia no meu rosto, e eu fui aproveitando o vento pra esfriar um pouco a cabeça... mas a verdade era que eu já tava ficando quente por outros motivos.
Depois de uns minutos rodando, ele parou numa rua um pouco afastada da nossa, perto de uma pracinha onde a gente sempre ia quando era moleque.
Ele desligou a moto e virou pra mim.
— Desce aí, vamos dar um rolé rápido. — Disse no tom dele, meio mandão, meio preguiçoso. Desci, ajeitando a saia que subiu um pouco com a viagem, e caminhei ao lado dele.
— Posso fazer uma pergunta? — Falei, cruzando os braços enquanto a gente ia andando.
— Já tá fazendo, né. — Ele riu, com aquele ar de deboche natural.
— Por que que você tá tão presente ultimamente? — Disparei de uma vez, antes que eu desistisse de perguntar.
Ele parou de andar por um segundo e me olhou. Aquele olhar que parecia te despir sem nem encostar.
— Como assim? — Ele fez que não entendeu, mas eu conhecia aquele jeitinho dele de querer ganhar tempo pra pensar na resposta.
— Ah, Nathan... Para. — Revirei os olhos. — Antes tu quase não aparecia. Agora é carona, pizzaria, boteco... visita na porta do salão... Tá me perseguindo, é?
Ele soltou uma risada curta, mas não respondeu logo.
— Tô cuidando. — Ele falou, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
— Cuidando? Desde quando eu virei sua responsabilidade? — Cruzei os braços, parando na frente dele.
Ele deu mais um passo e ficou perto o bastante pra me fazer engolir seco.
— Desde sempre, ué. — A voz dele baixou um tom. — E agora que você tá querendo brincar com uns caras que não valem nada aí na rua... achei melhor ficar mais de olho.
— Meu Deus... — Suspirei, rindo sem humor. — Agora você virou fiscal da minha vida? Tá de sacanagem...
— Tô, não. — Ele sorriu de canto, mas tinha alguma coisa no olhar dele... uma mistura de ciúme com provocação. — E se continuar me testando, eu vou ter que começar a agir de verdade.
— Aí é você que tá se iludindo. — Fingi deboche, mas a verdade é que meu coração já tava descompassado. Ele riu de novo, como se já soubesse disso.
— Bora? — Ele apontou com a cabeça na direção da moto. Segui atrás dele, bufando, mas por dentro... o frio na barriga não passava.
Quando montei de novo na garupa, senti as mãos dele segurando firme minhas coxas pra me ajeitar melhor. Meu corpo inteiro reagiu.
E a minha cabeça... só conseguia pensar numa coisa:
Se o Nathan já tava desse jeito... imagina o dia que o Kauê resolver começar a brincar também. Sim... eu espero que isso aconteça!
Assim que cheguei em casa, a primeira coisa que fiz foi me encostar na porta e soltar um suspiro profundo. Eu tava com a cabeça um caos. Sabe quando o corpo tá cansado, mas a mente não para de rodar? Então... Era eu naquele momento.
Tirei os tênis jogando de qualquer jeito perto da porta e fui direto pro meu quarto. A casa tava silenciosa, só com o barulho distante da TV do quarto da mãe.
Joguei a bolsa em cima da cômoda e fui pro espelho. Olhei meu reflexo... E a minha cara me entregava toda.
Bochechas ainda meio coradas, o cabelo bagunçado do vento da moto, a boca... Meu Deus, a minha boca ainda parecia quente de tanto que eu mordi ela tentando me controlar naquela garupa.
Eu fechei os olhos por um segundo, respirando fundo. Só que antes que eu pudesse me jogar na cama e fingir que nada daquilo tava acontecendo, escuto a voz da minha mãe vindo do corredor.
— Lorena? — Ela bateu de leve na porta, abrindo logo em seguida, como sempre fazia. Me virei rápido, fingindo que tava apenas mexendo nas coisas da minha bolsa.
— Oi, mãe... — Tentei soar o mais casual possível. Ela me olhou de cima a baixo, cruzou os braços e arqueou uma sobrancelha.
— Que cara é essa? — Perguntou, com aquele tom de quem já tava desconfiada de alguma coisa.
— Que cara o quê, mãe... — Dei uma risadinha sem graça. — Só tô cansada, o dia foi puxado. Minha mãe continuou me encarando, daquele jeito que só mãe sabe fazer.
— Uhum... Sei... Cansada, mas com essa cara de quem tá com a cabeça cheia de pensamento indecente.
— Mãe! — Quase gritei, levando a mão ao rosto pra esconder o sorriso nervoso. — Pelo amor de Deus, não viaja!
— Ah, não tô viajando não, minha filha. Eu te conheço. — soltou uma risadinha, indo até minha cama e sentando na ponta. — Esse olhar perdido aí, essa bochecha vermelha... Pode me contar. Foi o Kauê ou o Nathan?
— Mãe! — Falei de novo, agora já rindo de nervoso. — Para com isso!
— Eu só perguntei... — Deu de ombros, rindo também. — Mas tudo bem. Quando você quiser desabafar, você sabe onde me achar.
Ela se levantou, deu um tapinha no meu ombro e saiu do quarto como se nada tivesse acontecido.
Fiquei parada ali, olhando pra porta aberta, com o coração acelerado. Me joguei na cama de barriga pra cima, encarando o teto.
Meu pensamento? Uma confusão só.
Nathan e aquela mania de me provocar... Kauê com aquele jeito bruto e ciumento...
E eu? Presa no meio dos dois, sem saber o que eu queria de verdade... Só sabia que... queria alguma coisa.
Suspirei mais uma vez, fechando os olhos.
Amanhã era outro dia... E eu tinha certeza que o problema só ia crescer.