6 - Nathan

1926 Palavras
Desde que voltei a colar mais na casa da minha vó, parece que tudo ao meu redor tem o mesmo nome: Lorena. Ela sempre foi o xodó da velha. Desde piveta, grudada na gente. Eu e o Kauê zoava, chamava de sombra, de pentelha, de qualquer coisa que afastasse ela. Só que agora... Agora é diferente. E é isso que tá me tirando do sério. Encostado na varanda da laje de casa, cigarro entre os dedos, olho pro céu já escurecendo enquanto tento entender desde quando eu comecei a reparar nela desse jeito. Ela cresceu, virou mulher... E pior: virou mulher com sangue quente. Dessas que tem língua afiada, que te enfrenta no olhar e ainda por cima te faz rir no meio da raiva. Puxei a fumaça fundo e deixei sair devagar pela boca. O problema? É que eu sei o que tem por trás dessa marra toda. Ela tenta bancar a durona, mas eu sei que se eu encostar do jeito certo, ela desarma. Igual ontem. Ela fingiu que não, mas eu senti o jeito que ela colou no meu corpo naquela carona. A perna roçando na minha, a respiração descompassada no meu pescoço... E o olhar? Se eu não tivesse freado ali perto da casa dela, eu tinha feito besteira. Mas eu tô jogando no tempo... Observando. Kauê já percebeu também, tenho certeza. Ele não é burro. Vive de olho nela. Se faz de irmãozão, mas na primeira oportunidade tá colando nela igual tekbond. E o pior... Eu tô começando a gostar dessa disputa velada. A diferença entre eu e ele? Eu não disfarço. O celular vibrou no bolso. Peguei pra olhar: mensagem da velha. "Traz um refrigerante pra cá. A janta tá saindo." Sorri de canto. Jantar de dona Simone era quase uma ordem de comparecimento. Todo mundo que cresceu ali, sabe. Se ela chama, a gente vai. Terminei o cigarro, dei uma última olhada pro morro de cima e desci pra pegar o refri na birosca da esquina. Quando cheguei, ela já tava arrumando a mesa, e adivinha quem tava de short curto, camiseta larga, com a cara mais inocente do mundo, andando pela cozinha como se não soubesse que tava chamando minha atenção? Ela mesma: Lorena. — E aí, magrela... — Falei só pra provocar, jogando o refrigerante em cima da pia. — Acordou pra vida, foi? Ela virou na minha direção, com aquele olhar atravessado que ela sempre faz quando quer bancar a difícil. — Pelo menos eu acordo, né? Você parece que vive em coma. — Respondeu, jogando o pano de prato no ombro e rebolando de leve enquanto mexia nos talheres. Dei um sorriso de canto. Amei a resposta. Juro que por um segundo eu tive vontade de atravessar a cozinha e puxar ela pela cintura. Só pra ver se ela ia ter coragem de continuar de boca dura com a minha mão na nuca dela. Mas me controlei. Por enquanto. O Kauê chegou logo depois, daquele jeito espalhafatoso de sempre. A energia dele era diferente da minha... Onde eu sou mais calado, ele chega gritando, rindo alto, querendo ser o centro. A janta rolou com conversa fiada, risada e o Ryan no colo de um e de outro, do jeito que sempre foi. Mas só eu reparei que toda vez que a mão dela encostava na minha, ela prendia a respiração. E eu... gostando disso tudo. No final da noite, quando ia embora, deixei só um recado antes de sair pela porta. — Qualquer hora dessas a gente vai ter uma conversa séria, Lorena... Cê sabe disso, né? Ela me olhou de lado, com um sorriso nervoso no canto da boca. E eu desci os becos do morro, com a certeza de que o problema... tava só começando. Por isso fui caçar outra pra acalmar a mente. O corpo da mina por baixo de mim tremia. Ela gemia no meu ouvido, arranhava minhas costas, pedia mais. Tudo no automático. Era pra eu estar ali, curtindo... Me entregando. Fazendo o que sempre fiz. Só que minha mente... tava em outro lugar. Ou melhor: em outra pessoa. Fechei os olhos com força, tentando apagar aquela imagem da cabeça. Mas era impossível. Desde o jantar na casa da minha vó, ela não saía da minha mente. A forma como me respondeu atravessado... Como o short subia na coxa toda vez que ela se abaixava... O jeito que os cabelos dela caíam pro lado quando ria debochada. Mordi os lábios da garota embaixo de mim, puxei o pescoço dela com mais força. Precisava me distrair, focar no presente. Mas era inútil. O cheiro dela parecia grudado em mim. A lembrança de como ela se mexeu na cozinha... de como ela olhou quando eu soltei aquele "Qualquer hora dessas a gente vai ter uma conversa séria"... Como se ela tivesse imaginado mil coisas com aquela frase. E eu queria que tivesse imaginado mesmo. — Tá gostando, Rei? — a menina perguntou no meu ouvido, com a voz manhosa. Fingi que sim. Segurei a cintura dela com força, bati mais forte só pra ela parar de falar. Eu podia estar ali com qualquer uma. E nos últimos meses, era isso que eu fazia... Pegava uma, largava, no outro dia era outra. As mesmas bocas, os mesmos gemidos repetidos. Só que nenhuma... Nenhuma fazia meu peito apertar de raiva quando eu via conversando com outros caras. Nenhuma me deixava com esse gosto de ciúme amargo quando o Kauê puxava ela pra brincar. E muito menos... nenhuma fazia eu perder o sono pensando se ela já tinha dado pra alguém. Se ela já tinha sido de outro. Meu orgulho não admitia, mas era verdade. Terminei o que tinha que terminar. Levantei da cama com pressa, comecei a pegar minhas coisas jogadas no chão e amarrei a camisinha colocando ela no bolsa pra dá um fim depois. — Ué... Já vai? — a mina perguntou, ainda deitada, jogando o cabelo pro lado, como se merecesse explicação. — Tenho coisa pra resolver. — respondi curto, já fechando o zíper da calça. Ela bufou, claro. Achava que ia ter carinho depois. Coitada. Peguei o celular no bolso e antes de sair, abri o i********: por reflexo. Lorena online. Story novo: ela com a Rayssa na praça, rindo, cabelo preso, blusa colada. E quem tava ali no fundo do vídeo? Um dos vapores do morro. O sangue subiu na hora. Soltei um palavrão baixinho, respirei fundo e saí batendo a porta atrás de mim. Se ela achava que ia ficar brincando com minha cabeça assim... Estava muito enganada. O jogo ia virar. Do meu jeito. E se ela fosse esperta... Ia começar a perceber isso. Antes que eu perdesse a pouca paciência que ainda me restava. Desci do beco acelerado, com o boné cobrindo metade do rosto e a cabeça fervendo. Nem era o calor que tava me deixando suando daquele jeito. Era ela. Sempre ela. Passei na laje de um parceiro, troquei umas ideias, disfarcei a raiva. Mas toda hora o celular apitava, notificação de story, foto, risadinha, vídeo bobo. Lorena aparecendo como se não tivesse ninguém de olho. Como se eu não tivesse. A praça tava cheia. Molecada com som ligado, uns conhecidos jogando dominó, outros nas motos roncando motor pra chamar atenção das novinhas. E ela... tava ali. Sentada com a Rayssa numa das mesas perto do trailer de hambúrguer. O riso fácil, o copo de refrigerante na mão... e o maldito vapor do Morro da frente grudado do lado, metendo papo. Parei do outro lado da rua. Cruzei os braços e fiquei só observando. Nem me mexi. Vi quando ela deu risada de alguma coisa que o moleque falou. Vi também quando ele tentou pegar no cabelo dela, daquele jeitinho que eu conheço... Testando o limite. Meu maxilar travou. Atravessei a rua no passo certo, nem rápido nem devagar. Só o suficiente pra ela notar que eu tava vindo. Quando cheguei perto, nem olhei direto pra ela. Cumprimentei os caras na mesa ao lado, bati na mão de um parceiro que tava ali, troquei ideia fiada como se o motivo de eu estar ali fosse outro. Mas antes de ir embora... claro que eu fiz questão de parar bem do lado dela. — E aí, Magrela... — minha voz saiu baixa, quase rouca, com aquele tom que ela sabia que era provocação. Ela virou o rosto na hora. Fingiu cara de paisagem, mas eu vi no fundo do olhar: ficou nervosa. — Qual foi? Vai me dar esporro também? — Ela sorriu torto, se fazendo de brava, como sempre. — Não. Só passei pra lembrar que tu não combina com qualquer um. — Respondi, olhando de canto pro vapor que na mesma hora abaixou o olhar e saiu de perto. Lorena mordeu os lábios, como se fosse responder alguma coisa... mas ficou muda. Dei dois tapinhas de leve nas costas dela, num gesto que podia muito bem ser de amigo... ou de dono. Depende do ponto de vista. — Se cuida, Magrela. — Pisquei e fui saindo, antes que ela tivesse tempo de me responder. Enquanto caminhava de volta pro beco, com o sangue ainda borbulhando, sorri sozinho. Saí da praça com a cabeça quente, mas o corpo já no modo automático. Puxei o boné mais pra frente, só os olhos de fora. Passei por duas vielas, cumprimentei uns manos que tavam na contenção e fui direto pro ponto. Hoje o movimento tava mais lento, mas isso nunca significava paz. Lento demais sempre era sinal de que alguma coisa vinha. Cheguei na laje do Zóio, um dos moleques de confiança. Ele já me olhou de longe e fez o sinal. Tinha coisa pra resolver. — Qual foi, chefe? — Ele se aproximou, andando com aquela postura de quem sempre tá pronto pra qualquer coisa. — Cadê o material que chegou ontem? — perguntei direto, sem rodeio. — Já tá tudo na central. O Gordo fez a separação. Tô só esperando tua ordem pra liberar pras frentes. Assenti com a cabeça, subindo os degraus da escada de cimento. A laje cheirava a pólvora e cigarro. A visão dali dava pra metade do complexo. Era meu território. Meu chão. Peguei o rádio e comecei a passar as instruções. Tinha uma negociação pendente com um fornecedor, e além disso, dois pontos estavam com fluxo fraco. Precisava mexer na grade de vapor, botar mais dois moleques rodando por ali. Enquanto eu falava, o telefone vibrou de novo. Olhei de canto. Mensagem de um dos olheiros: "Movimentação estranha na entrada do Morro da Linha. Dois carros subindo. Não parece cliente." Suspirei fundo. — Prepara dois, vai ter ronda. — Avisei o Zóio. — E manda o Piolho reforçar a contenção na linha de trás. Desci da laje, indo pro barraco onde guardávamos as armas curtas. Peguei a minha Glock, fiz o carregamento com calma, com aquele ritual que já era automático. Um clique, mais um, o peso da responsabilidade encaixando na palma da minha mão. Minha vida era essa. Correria, código, rua. Não tinha espaço pra distração. Mas... no meio do trajeto até o beco da contenção... ela voltou na minha cabeça. A p***a do sorriso dela, a cara de deboche, o jeito como ela sempre fingia que não ligava... sendo que ligava mais do que deveria. Bati na lateral da cabeça, como se assim desse pra expulsar aquela ideia. Agora era hora de trabalhar. Depois... depois eu pensava no que fazer com ela. Porque uma coisa era certa: a Lorena não ia escapar de mim por muito tempo.
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