Caminhava devagar pelo miolo do morro, fone no ouvido, camisa pendurada no ombro e a Glock na cintura. O som do MC Cabelinho batia firme, mas minha cabeça tava longe. Sempre tava quando o assunto era ela.
Lorena.
Marrenta. Boca suja. Linda pra desgraça.
Não sei quando foi que parei de ver ela como irmã. Só sei que agora, cada vez que aquele sorrisinho de canto aparecia, me dava uma vontade doida de mandar ela calar a boca na marra. Boca ocupada é boca quieta. E ela tinha a mania irritante de provocar.
Ontem mesmo, flagrei ela dando risadinha pra aquele vaporzinho que se acha o Don Juan da favela. Um pirralho que eu mesmo dei oportunidade. Fiquei com vontade de arrancar o pescoço dele.
Mas eu não disse nada. Nunca digo. Só marco presença. Olhar fixo. Braço cruzado. Ela sente. Sempre sente. Porque quando passa perto, a postura muda, a respiração pesa. Só que finge. Finge bem.
Fui subindo até a rua onde ela mora. Rayssa tinha me falado que o Nathan tinha levado ela e a dona Simone no asfalto pra resolver um problema.
Nathan. Vagabundo disfarçado de príncipe. Sempre com uma, duas, três em volta. Mas quando ela aparece, ele muda o tom. Eu percebo. Eu sempre percebo.
E o pior é que ela também.
Passei em frente ao estúdio da Rayssa, bati na grade duas vezes.
— Fala, unha de ouro. Lorena chegou?
Ela levantou a cabeça do cliente, arqueou uma sobrancelha.
— Chegou não. Mas já tá vindo. Vai esperar ela aí igual cachorro na porta ou vai tomar vergonha na cara?
Soltei uma risada baixa.
— Fica na tua, Rayssa. Cuida das tuas unha aí que eu cuido da minha vida.
Ela balançou a cabeça com aquele ar debochado.
Voltei a encostar no muro. Vi quando ela surgiu no final da ladeira, andando sozinha, cabelo preso de qualquer jeito, e aquela saia curta que me deu raiva instantânea.
Raiva boa. Ela me viu. Fingiu surpresa. Forçou uma cara de desdém.
— Já não tem boca no morro que tu não apareceu hoje, Carioca?
— Tô fazendo ronda. Bandido trabalha, sabia não?
Ela riu de lado. Aquele riso que me desmonta sem que eu deixe transparecer.
— Aham. Ronda no coração dos outros, né?
Dei dois passos, ficando perto demais. Ela não recuou. Nunca recua.
— E se for o teu coração que eu tô rondando?
Ela travou por meio segundo. Depois desviou o olhar.
— Aí cê se fode. Porque esse aqui já tem dono.
Mas mentiu. E eu sou bom em detectar mentira. Principalmente vindo dela.
Ela virou as costas e foi andando como se não soubesse o estrago que deixava. Quadril balançando daquele jeito que só ela sabia fazer, natural, sem esforço, sem intenção. Mas em mim... era provocação pura.
Fiquei parado, olhando. Fingindo que não. Que tava ali de bobeira. Mas eu tava era marcando território.
A verdade é que essa menina entrou em mim sem permissão. Veio de mansinho. Um dia dormia no nosso sofá, com cabelo cheio de creme e série i****a na TV. No outro, virou mulher. Virou pecado. Tentação. Desassossego.
E eu odeio me sentir fora de controle.
Nunca me apaixonei por ninguém. Nunca deixei ninguém chegar perto o bastante pra me afetar. Mas ela... ela é diferente. Não é só o corpo. É a boca afiada. O olhar debochado. O jeito que cuida do moleque da Rayssa como se fosse dela. A risada escandalosa. A língua rápida. A lealdade.
É tudo nela. E é por isso que me assusta.
Porque eu já matei por muito menos do que sinto quando algum mané chega perto dela. E não é da boca pra fora. É literal.
Ela é o tipo de mulher que um cara como eu não devia querer. E mesmo assim, cada vez que ela passa perto, tudo dentro de mim grita pra puxar ela pelo braço e mostrar que ninguém vai tocar. Que ela é minha. Mesmo sem ser. Ainda.
E aí tem o Nathan.
Filho da p**a se faz de despretensioso, mas eu conheço. Sei quando o olhar muda. E com ela, muda. O sorriso dele abaixa, o tom de voz fica mais calmo, mais grave. Ele respeita ela, claro. Mas tá ali, de tocaia, igual a mim.
E a Lorena... ela se diverte.
Gosta de provocar, de soltar as indiretinhas, de fingir que é inocente. Mas eu sei.
Ela sente. Ela quer. Ela só não sabe pra qual lado correr primeiro. Ou talvez saiba. Talvez só esteja esperando quem vai ter coragem de quebrar a regra primeiro.
E eu? Eu já tô por um fio.
Mais um vacilo, mais uma noite m*l dormida, mais uma risadinha dela pra outro o****o, e eu faço merda. Daquelas que não tem volta.
Mas até lá, eu fico aqui. Marcando presença. Fingindo desinteresse. Esperando o jogo virar.
Porque no fundo, ela já é minha Só falta ela aceitar.
[…]
O céu começava a escurecer devagar, naquele tom alaranjado que só o Rio sabia fazer. As caixas de som já estavam sendo montadas no canto da quadra, uns moleques estendendo faixa, outros testando iluminação improvisada, jogando cabo pra lá e pra cá. Hoje ia ter baile. E quando tem baile, o morro inteiro vira um campo de observação.
Gente que vem pra dançar, gente que vem pra vender, gente que vem pra caçar. E eu... bom, eu tava ali pelos três motivos.
Encostado na moto, com o boné abaixado até o meio da testa e o cigarro queimando lento entre os dedos, observava tudo. Cada movimento. Cada cara que subia a viela com olhar torto. Cada forasteiro disfarçado de curioso. O morro era meu quintal, e eu sabia quando tinha alguém estranho pisando nele.
Meu rádio preso no colete chiava de vez em quando, os moleques passando posição, avisando quem tava subindo, quem tava rodando pela área. Normal. Final de tarde sempre dava essa movimentação antes da festa.
Mas meu olhar parou em outro lugar.
Nathan.
O desgraçado vinha subindo a rua principal, devagar, como se fosse dono do mundo. Camisa de time larga no corpo, corrente pesando no pescoço e aquele jeito de quem sempre tem tudo sob controle.
— Olha quem resolveu aparecer — murmurei, tragando o cigarro e soltando a fumaça devagar.
Nathan tava com dois dos meninos de confiança dele. Os três rindo de alguma besteira, mas eu via no fundo... o olhar dele não tava leve. Andava atento. Como se também estivesse de olho em alguma coisa.
Ou em alguém.
Apertei a mandíbula, jogando o cigarro no chão e amassando com a ponta da bota.
Meu instinto me dizia que não era só o baile que ele tava querendo vigiar hoje.
Ele parou na beira da quadra, cumprimentando uns manos, falando com os moleques do som, rindo com as meninas que já começavam a circular por ali, mostrando o corpo, chamando atenção de propósito. Mas o olhar dele... sempre pro alto. Sempre pra viela onde ela mora.
O nome dela me atravessou a mente antes mesmo de eu querer. Como sempre.
Balancei a cabeça, tentando focar. A noite ia ser longa. Tinha muita coisa pra coordenar ainda. Mas por mais que eu quisesse pensar no corre, era como se tudo dentro de mim só me puxasse de volta pra mesma coisa: ela.
E agora com o Nathan tão perto, tão presente, tão... disponível.
— Tá de olho em quê, Kauê? — a voz do Juninho, um dos vapores, me chamou de volta pra realidade.
— Na segurança. — respondi seco, sem olhar pra ele. — Já falou com o pessoal da base? Quero todo mundo na ativa até o fim da festa. Se eu ver moleque vacilando com fuzil pendurado e cerveja na mão, vai ficar sem arma uma semana.
— Pode deixar. Já tô fechando com os meninos. — ele respondeu e saiu apressado.
Respirei fundo, ajeitando a arma na cintura, tentando colocar a cabeça no lugar.
Nathan agora tinha parado perto da barraca de churrasquinho, trocando ideia com o Neguinho do gás. Sorriu pra uma das meninas, mas o sorriso não chegou no olho. Só quem conhece ele de perto percebe.
O filho da p**a também tá com a cabeça nela.
Me encostei de novo na moto, ficando só de longe, disfarçado, observando.
Porque era isso o que a gente fazia. Sempre de canto. Sempre no jogo.
Dois predadores rondando a mesma presa. Cada um com seu tempo, com seu método. Mas com a mesma intenção.
Lorena ainda não sabia, mas a guerra já tinha começado. E eu não tinha a menor intenção de perder.
A noite tava só começando.
O som das caixas ainda tava sendo testado, e o grave fazia o chão vibrar leve. Eu já tinha dado o geral nos moleques, passado a visão de como ia ser a segurança da noite, agora tava só observando... até sentir a presença dele.
Nathan parou do meu lado como quem não queria nada. Nem precisei virar pra saber que era ele, o cheiro do perfume caro misturado com a fumaça do corre entregava fácil.
— Tá bonito o baile, hein — ele comentou, com aquele tom dele, de deboche disfarçado.
— Sempre tá, quando eu tô organizando — respondi, cruzando os braços. Nathan riu baixo. Aquela risada que ele solta quando quer provocar sem parecer que tá provocando.
— Sorte que a quebrada tem bom gosto, né?
— Ou sorte tua que eu deixo espaço pra dividir.
Ficamos em silêncio por uns segundos. O som do morro subindo, molecada correndo, a noite chegando devagar.
— Vai descer hoje? — perguntei.
— Talvez. Depende do clima. E do que tiver na pista — ele respondeu, de canto de boca.
Virei pra encarar ele. Os olhos dele já tavam em mim.
— Tu gosta de disputar, né?
— Não, Kauê... — ele deu um passo mais perto, quase sorrindo — eu gosto de ganhar.
— Vamos ver quem ganha então.
Ele estendeu o punho fechado pra mim. Toquei de leve. O olhar firme, sorriso torto, cada um com sua verdade guardada no peito.
Mas uma coisa era certa: o jogo tava começando. E a peça principal ainda nem tinha descido da casa.
E outra, organizar baile é um bagulho que estressa.
É ficar o dia inteiro no rádio, respondendo moleque que não sabe nem organizar a própria vida, quanto mais a p***a de uma festa no morro.
É som chegando atrasado, luz dando curto, gente querendo entrar sem pagar, segurança que some na hora que mais precisa. E eu... eu ali, segurando a bronca de tudo.
Por isso, quando olhei pro relógio e vi que ainda tinha um tempinho antes da quebrada começar a encher de verdade... já sabia o que eu ia fazer.
Peguei o celular, deslizei os contatos até o nome certo.
— Qual foi, minha bandida? Tô passando aí... — falei assim que ela atendeu.
Ela riu, do jeito que eu gosto. Safada, sempre pronta. Do tipo que sabe exatamente o que eu quero sem precisar explicar.
Desliguei, peguei a moto e desci rápido.
No caminho, só um pensamento: aliviar o estresse. Antes de encarar a noite, antes de botar a cara pro baile, antes de... antes de deixar a mente viajar pra onde não pode.
Porque se tem uma coisa que eu me recuso... é a ficar pensando demais em quem eu não devia.
Hoje era noite de baile. Hoje era noite de foco. E a Lorena... bem... a Lorena que espere. Agora a missão era outra.