Quando voltei ao apartamento, todos já estavam reunidos na sala. Risos baixos e conversas abafadas preenchiam o ar, misturados com o som distante de música ambiente. Samantha foi a primeira a me notar. Ela tentou esconder, mas não conseguiu disfarçar a surpresa — e a insatisfação — ao me ver de volta. Seu sorriso educado não alcançava os olhos. Havia uma tensão discreta em seu maxilar, como se morder as palavras fosse o esforço necessário para manter a pose.
Adam, por outro lado, parecia um pouco mais à vontade. Ele fechou a porta, caminhou até o meio da sala e disse, com a naturalidade forçada de quem já previa o clima que se instauraria:
— Aconteceu um imprevisto... Convidei a Catarina a ficar mais um pouco.
— Um imprevisto? — Samantha repetiu, com uma nota de incredulidade na voz. — Que tipo de imprevisto?
— Nada grave — respondi antes que Adam pudesse falar qualquer outra coisa. — Só uma mudança de planos. Meu motorista se atrasou, e não posso sair agora.
Ela me analisou como se eu tivesse acabado de anunciar que dormiria na cama dela. Um silêncio desconfortável caiu sobre o grupo. Mesmo assim, os outros tentaram continuar a conversa, como se nada tivesse acontecido. Melissa comentou algo sobre o vinho. Joe fez uma piada sobre o trânsito. Mas todos estavam só esperando o momento de ir embora. E, um a um, foram.
Quando a porta se fechou pela última vez, restamos apenas nós três: Samantha, Adam e eu. O ar parecia mais denso. A água já não suavizava nada, e eu me perguntava, com um leve incômodo no estômago, por que Lorenzo ainda não tinha mandado outra mensagem. Cada segundo que passava sem notícias dele era um lembrete de que eu não podia — nem devia — estar ali.
Samantha pegou as taças vazias e levou para a cozinha. Podia ouvir o tilintar do vidro contra a pia, a torneira aberta. Adam permaneceu em pé no meio da sala, os olhos em mim, indeciso. Seus dedos bateram contra a lateral da coxa, um hábito antigo, que ele tinha quando estava nervoso.
— Você deve estar cansada — ele disse enfim. — Vou ajeitar o quarto pra você.
A frase pairou no ar. Meu olhar se ergueu, fixo no dele.
— Adam... — Samantha surgiu na porta da cozinha, os braços cruzados. — Amor, você esqueceu que aqui só tem um quarto?
Ele hesitou.
— Não precisa — respondi, tentando conter o incômodo. — Eu não quero atrapalhar. Só preciso de um canto até resolver as coisas.
Samantha deu um passo à frente.
— Atrapalhar? Imagina. — Ela sorriu, mas seus olhos me fuzilavam. — Você é sempre... bem-vinda.
Silêncio de novo.
Adam coçou a nuca, desconfortável.
— Pode ficar com o quarto, Cat. Eu fico aqui no sofá. Sem problema.
— Tem certeza? — perguntei, mais por educação do que por consideração.
— Absoluta — Samantha se adiantou, sua voz aguda cortando o ar como vidro. — Eu fico com ele no sofá.
A sugestão pairou por um momento, absurda. Adam lançou-lhe um olhar, mas ela continuava sorrindo, como se aquela fosse a ideia mais natural do mundo.
— Na verdade — ele disse, tentando manter o tom leve —, acho melhor só uma pessoa dormir no sofá. É apertado.
Eu permaneci em silêncio, observando. Havia algo quase teatral na cena. Eu, a ex-namorada grávida misteriosa que surgiu do nada. Ela, a noiva no papel de anfitriã tentando proteger seu território. E Adam... bem, Adam parecia um menino perdido tentando administrar um incêndio com baldes de água fria.
— Eu fico no sofá — ele respondeu, depois de um momento. — Catarina pode dormir no meu quarto.
— E eu? — Samantha perguntou, os olhos agora cravados nele. Não havia mais doçura em sua voz. — O que eu faço?
Adam respirou fundo, evitando o meu olhar. Evitando o dela também.
— Acho melhor você ir pra sua casa.
Ela riu, mas o som estava longe de ser divertido.
— Você tá me mandando embora?
— Não tô mandando, Sam. Só acho que... é melhor assim por hoje.
Eu quase me levantei para dizer que não precisava, que podia muito bem esperar na rua, em qualquer hotel de esquina, ou mesmo numa cafeteria 24h, contanto que me deixassem fora daquela disputa silenciosa. Mas não fiz isso. Parte de mim queria ver até onde aquilo iria. E parte de mim — a parte mais honesta, mais instintiva — queria estar ali. Porque havia algo em Adam que eu ainda não tinha conseguido enterrar.
Samantha pegou a bolsa sem dizer nada. Estava tão tensa que chegou a derrubar o celular no chão. Adam se abaixou para pegar, mas ela já tinha feito isso antes dele, recusando o gesto. Ficou de pé por um momento, como se esperasse que ele mudasse de ideia. Mas ele não mudou.
— Boa noite, Catarina — ela disse por fim, o nome saindo com amargura. Depois se virou para Adam. — A gente conversa depois.
Adam apenas assentiu. A porta bateu com mais força do que o necessário.
Por alguns minutos, ficamos em silêncio. Eu me sentei no sofá e ele permaneceu de pé, de frente para a porta, como se ainda esperasse que ela voltasse. Ou talvez estivesse se perguntando se tinha feito a coisa certa. Eu não perguntei. Nem precisava. O silêncio dele já dizia tudo.
— Você não precisava fazer isso — murmurei.
— E te deixar esperando lá fora? Grávida? Não tem como.
— A Samantha te odeia agora.
— Amanhã ela esquece — ele disse, com um meio sorriso cansado. — Ou não. Mas ela vai entender. Eu acho.
Suspirei e cruzei os braços. Ainda sem notícias de Lorenzo. A noite estava ficando cada vez mais longa.
— Você vai se arrepender — disse.
— Provavelmente.
Ele olhou para mim e, por um instante, fomos só nós dois de novo. Sem Samantha. Sem o bebê. Sem Itália. Sem passado. Era como voltar para antes de tudo desmoronar.
— O sofá não é tão r**m quanto parece — ele disse, apontando com a cabeça para o canto da sala.
— Não acho justo você dormir ali — murmurei.
— Já dormi em lugares piores.
— Adam...
— Catarina.
Ele se aproximou, sentou no braço da poltrona do lado oposto. Os olhos dele estavam mais escuros sob a luz fraca da sala. Havia perguntas ali. Muitas. Mas nenhuma era feita. Ele respeitava o silêncio, e isso eu sempre admirei nele.
— O que você veio fazer aqui de verdade? — ele perguntou, sem olhar diretamente para mim.
Demorei alguns segundos para responder. Minha mão repousou sobre a barriga, quase instintivamente. Como se fosse uma forma de lembrar a mim mesma que havia um limite para o que eu podia dizer.
— Fugir — respondi por fim. — Só por uns dias.
Ele assentiu, como se soubesse que havia mais. Muito mais. Mas não pressionou.
— Se precisar de mais do que uns dias, você pode ficar aqui — disse. — Ou pelo menos até você... sei lá, resolver o que precisa resolver.
— Você vai se casar — rebati. — E sua noiva está te odiando agora por minha causa.
— Isso é entre eu e ela.
— Ela vai achar que você ainda sente algo por mim.
Adam ficou em silêncio. E o silêncio dele foi a resposta.
Engoli em seco. Minha cabeça gritava que eu não devia estar ali. Que aquele momento era perigoso de uma forma que nenhuma arma ou inimigo jamais fora. Porque eu conhecia Adam. E ele me conhecia. E por mais que os anos tivessem passado, o modo como ele me olhava ainda fazia minha pele reagir.
O celular vibrou no meu bolso. Quase pulei.
Era Lorenzo.
Mudança de planos. Fique onde está até segunda ordem. Vão atrás de você se sair agora.”
Engoli o ar. Meus dedos se fecharam ao redor do aparelho.
— Merda — murmurei.
— Tudo bem? — Adam perguntou.
— Sim... Só uma mensagem.
—Seu motorista?
Assenti. Ele não perguntou mais nada, mas eu sabia que ele queria saber. Queria entender. Mas não podia. E nem devia.
— Parece que vou ter que ficar mais um pouco com você e sua simpática noiva — disse, tentando soar leve.
Ele riu. E eu não lembrava da última vez em que ele tinha rido daquele jeito.
— Samantha vai me matar — murmurou.
— Não duvido — disse, com um sorrisinho. — Mas acho que você aguenta.
Ele se levantou e esticou a mão.
— Vem, vou te mostrar onde fica o controle do aquecedor. E amanhã, se quiser, faço panquecas. Igual as que você gostava.
— Você ainda lembra?
— Algumas coisas a gente não esquece.
Me levantei. Quando nossas mãos se tocaram, foi rápido, mas senti. Como uma fagulha. Uma lembrança. Um aviso.
Ele me levou até o quarto e apontou onde estavam as cobertas, o travesseiro extra, a toalha. Era estranho estar ali, cercada pelas coisas dele, pelas fotos na estante, os livros empilhados, o cheiro que eu lembrava de outros tempos.
— Boa noite, Cat — ele disse, do batente da porta.
— Boa noite, Adam.
Ele me olhou por um momento, como se estivesse prestes a dizer algo importante. Mas então assentiu, virou-se e saiu, fechando a porta.
Fiquei ali, parada, olhando o espaço, respirando fundo. Peguei o celular. Ainda nenhuma mensagem de Lorenzo. Nenhuma atualização. Nenhuma mudança de planos. Apenas o silêncio. E isso começava a me incomodar.
Me sentei na beira da cama, tirei os sapatos. Levei a mão até minha barriga. O bebê chutou levemente. Como se soubesse o quanto eu estava inquieta.
“Está tudo bem”, murmurei para mim mesma. Para ele. Ou para ambos.
Me deitei. O bebê se mexeu de novo. E então, pela primeira vez desde que saí da Itália, dormi profundamente.
Sem pesadelos.
Sem fantasmas.
Apenas o presente — imperfeito, mas real.