A chuva escorria como pequenas agulhas pelos vidros do carro, e o som do limpador de para-brisas era quase hipnótico. Eu observava a tempestade do lado de fora enquanto Lorenzo dirigia tranquilamente pela FDR Drive. A cidade parecia desbotada sob a água que caía incessantemente, como se até Nova York estivesse cansada.
Ele pegou a George Washington Bridge, e eu apenas me acomodei melhor no banco, repousando a mão sobre a curva arredondada da minha barriga. O pequeno estava quieto. Silencioso demais.
Depois de alguns minutos, Lorenzo saiu da via expressa. Acho que era a saída da East 61st... ou talvez 71st Street. Não prestei atenção. Meus dedos já estavam ocupados desbloqueando o celular e discando para um número que eu sabia de cor.
— Donna, — a voz grave de Don Antonio atendeu no primeiro toque. — Ainda não consegui um voo. O tempo está uma merda por aqui também.
— Eu sei, — respondi, ajustando o tom para que Lorenzo não ouvisse tudo. — Mas houve uma mudança de planos.
— O que foi? — A voz dele ficou imediatamente mais tensa.
— Interceptamos uma ligação no aeroporto. Um homem... parecia ter ligação com a 'Ndrangheta. Ele informou minha localização.
Do outro lado, silêncio. E então:
— Merda. Eu te disse pra não viajar.
Fechei os olhos por um segundo, inspirando fundo.
— Foi necessário. O pequeno... ele havia parado de mexer. Eu entrei em pânico.
— É um menino?
— Sim.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Talvez pensando em Dante. Talvez só lidando com o fato de que agora tínhamos algo mais a proteger.
— Ótimo, — ele disse, enfim. — Vou dar um jeito de trazê-los de volta.
— Tio, — sussurrei. Era mais um aviso do que um chamado.
— Sim.
— Enquanto isso... vamos para a casa segura.
— Cuidado, Donna.
— Até breve.
— Até.
Desliguei. Deixei o celular escorregar até o bolso interno do casaco e voltei a olhar a paisagem lá fora. O reflexo das luzes da cidade tremeluzia nas poças e no vidro molhado. Mas minha mente estava longe.
Se eles me pegarem...
Levei a mão até a barriga outra vez. Será que eu ainda era rápida o suficiente? Será que ainda tinha força para enfrentar alguém? E o bebê? Ele resistiria?
Fechei os olhos por alguns segundos, e uma lembrança vívida me atravessou como um raio: o trem para o Ospedale Niguarda Ca' Granda. Eu e Dante, lutando contra três homens da 'Ndrangheta. Meu punho rasgando o ar. O som seco de ossos quebrando. O gosto de sangue na boca. O aperto da mão de Dante no meu braço. Aquele dia ainda pulsava em mim, como uma cicatriz aberta.
Mas agora eu estava sozinha. Sozinha com um bebê na barriga e um capanga calado ao volante.
Abri os olhos ao ver o New York-Presbyterian Hospital – Columbia and Cornell surgir à nossa direita. Pisquei algumas vezes. Era como se o passado e o presente colidissem naquela imagem. Olhei para o relógio. Depois, instintivamente, para trás.
— Está tudo bem? — perguntou Lorenzo, me observando pelo retrovisor.
Continuei olhando pela janela traseira. Havia carros. Muitos. Todos andando lentamente pela chuva, como se cada um escondesse uma ameaça. Virei o rosto na direção dele.
— Vire à esquerda — ordenei.
— Como é? — Lorenzo me olhou pelo retrovisor.
— Vira à esquerda. Agora.
Não houve tempo para argumentar. Ele cruzou as pistas com uma habilidade surpreendente, mesmo sob chuva intensa, e obedeceu.
— Saímos da rota da casa segura — ele avisou.
— Vira na próxima à direita.
Ele não questionou dessa vez. Entramos numa rua comercial, com lojas e estabelecimentos brilhando sob as luzes fluorescentes.
— Ali — apontei, o tom cortante. Meus olhos cravados na fachada.
O letreiro iluminado de um mercado 24h se destacava no meio da chuva.
— Ali? — ele arqueou a sobrancelha. — É um supermercado.
— Agora.
Ele bufou, mas virou o volante. A chuva continuava martelando o teto do carro. Seguimos rumo às garagens cobertas do supermercado.
— Me deixa na entrada — ordenei — e entrega o carro ao valet.
— Como é?
— Só faz.
Ele encostou o carro. Um jovem de boné e jaqueta se aproximou, acenando.
— Boa noite, senhor. Valet?
— Toma. — Lorenzo lhe entregou a chave, contrariado, e me seguiu.
Já saí do carro antes de qualquer outra coisa. Entrei no supermercado com passos decididos, fingindo normalidade. Atravessar aquele espaço era como entrar num mundo paralelo. As luzes fluorescentes, as prateleiras coloridas, tudo era um contraste gritante com o que vivíamos lá fora.
Lorenzo veio atrás, preocupado.
— Está tudo bem?
— Estou grávida. Tive um desejo. Me dá espaço.
Ele recuou, confuso. Fui direto para a sessão de comidas prontas, revirando embalagens sem realmente vê-las. Alguém poderia pensar que eu estava atrás de pickles ou chocolate. Mas não era nada disso. Minha mente processava possíveis saídas. Havia câmeras ali. Havia gente. Um espaço público. Isso nos dava uma margem de segurança.
Abri portas de refrigeração, revirando tudo — lasanhas, wraps, bandejas com salada de macarrão. Nada me interessava, mas continuei mexendo.
Foi quando ouvi a voz.
— Da primeira vez em que a gente se encontrou aqui, eu deixei você passar na fila. E acabamos dividindo um pack de cerveja.
Me virei lentamente. E ali estava ele.
Adam Scott.
Eu olhei para ele. O homem que um dia segurou minha mão e disse que não se importava com meu sobrenome. Com o mesmo sorriso de canto, a barba bem feita e a jaqueta jeans encharcada de chuva. O homem que sabia o gosto da minha pele, que me beijava a cicatriz no ombro sem perguntar como a ganhei. Ele parecia saído diretamente de uma lembrança, uma memória quase boa, quase segura.
— Você... — sussurrei, feliz.
— Eu. — Ele sorriu. — Achei que você estivesse na Europa.
Sorri com surpresa genuína, instintiva, levando a mão à barriga.
— Pois é.
Seus olhos desceram da minha face para a barriga saliente sob o casaco. Ele piscou, uma, duas vezes, e disse:
— Uau.
Eu sorri, sem culpa, e passei a mão carinhosa sobre a barriga.
— Pois é.
Ele arregalou os olhos. Eu vi o cálculo acontecendo em tempo real na mente dele. A conta que não fechava. Sete meses? Oito? Nós havíamos terminado há quanto tempo mesmo? Ia tranquilizá-lo, dizer que não era dele, mas então ela apareceu.
— Encontrei dois tipos de massa, amor! — disse, empolgada, segurando os pacotes. A loira era bonita, vivaz. Ao me ver, sorriu de forma contida. — Olá. A gente se conhece?
Adam piscou de novo, saindo do transe.
— Sam... essa é a Catarina. Catarina, essa é a Samantha.
Ela ergueu a mão com naturalidade, mas não foi o gesto que me chamou atenção. Foi o anel. Brilhante, novo, provavelmentehavia acabado de sair da caixinha de veludo.
— Muito prazer — disse ela. — Já ouvi falar bastante de você.
Sorri, mais por educação do que por vontade.
— O prazer é meu, Samantha.
Ela voltou o olhar para Adam.
— Pensei que você tivesse dito que a Catarina se mudou para a Itália.
Adam, visivelmente desconfortável, respondeu com a voz mais baixa:
— Sim, ela mora lá...
— E o que ela está fazendo aqui no mercado?
Abri a boca antes que ele tentasse responder.
— Desejo — falei, dando de ombros. — Estava indo para o aeroporto e lembrei que o frango apimentado com molho de gengibre que eu gosto só tem aqui.
Samantha tentou sorrir, mas a desconfiança vazou pelas frestas da expressão.
— Jura? Só aqui?
— É o único lugar que eu lembrava — respondi com calma.
Ela me olhou de cima a baixo, como se procurasse alguma outra explicação escondida entre os botões do meu casaco.
— Certo — disse, mais para si mesma do que para mim.
Ficamos ali, os três, num silêncio espesso como neblina. Samantha foi quem se mexeu primeiro.
— Bom... acho que já achamos tudo, né? É melhor irmos. Não podemos deixar os outros esperando.
— É — Adam concordou, ainda olhando para mim. — Marcamos uma noite temática. Cada semana a gente escolhe um tipo de comida para fazer.
— E essa semana foi uma sugestão do Adam — disse ela, com entusiasmo forçado.
— Comida italiana — completei, cruzando os braços.
— Pois é — respondeu Samantha, sorrindo.
— Então você ainda faz as noites temáticas — comentei para Adam.
Ele coçou a nuca, envergonhado.
— Pois é...
Samantha o encarou com um olhar que parecia afiado como uma lâmina de cozinha.
— Então já fazia essas noites com a Catarina?
— Em defesa do Adam — intervim — isso é uma coisa que ele fazia com os pais. Eu só fui no embalo.
— Ah — disse ela, ainda olhando para ele. — Então você também contou isso para ela.
Adam tentou dizer algo, mas pareceu mudar de ideia no meio da frase.
— Foi bom ver você, Catarina — disse ele, começando a se afastar.
— Também foi bom ver você — respondi, sem ironia.
Eles se viraram para sair. Eu fiquei ali, assistindo os dois se afastarem. Ela com o passo firme e os ombros erguidos, como se tentasse provar alguma coisa, ele um pouco mais hesitante. O contraste entre o homem que ele era comigo e o que estava tentando ser com ela era quase poético. Mas então, antes que saíssem da minha vista, disse:
— Adam, espera.