Sol Narrando
O céu ainda tava escuro quando eu abri o olho. Nem sei se dormi direito. Passei a madrugada virando de um lado pro outro, pensando em tudo, tentando entender como é que a vida me trouxe de volta pra esse ponto. Eu sabia que uma hora ia ter que encarar o passado, mas não achei que fosse assim, no susto, no desespero, com minha mãe chorando do outro lado da linha e um aperto no peito que nem rezando passa.
Levantei devagar, ainda sem fazer barulho. A casa da minha tia tava em silêncio. O povo daqui acorda tarde, ninguém ia sentir minha falta nas primeiras horas. Entrei no banheiro, lavei o rosto com água gelada e fiquei me olhando no espelho. As tranças já estavam meio soltas nas laterais, mas ainda tavam firmes. Dei uma ajeitada com a ponta dos dedos, prendi um pouco com gel, botei o lenço por cima. Encarei meu rosto por uns segundos, tentando ver força onde só tinha cansaço.
Me troquei com calma. Vesti uma calça legging preta, blusa larga, jaqueta por cima. Tênis no pé. Tudo básico, prático. Peguei minha bolsa maior, coloquei os documentos, carteira, celular, carregador, um casaco, uma nécessaire com uns produtos de pele, absorvente, e minha caixinha com uns brincos e pulseiras que não largo por nada. Peguei outra mochila pequena com umas roupas e chinelo, coloquei tudo no canto da cama e respirei fundo.
Desci as escadas sem fazer barulho. Deixei um bilhete em cima da mesa da cozinha: “Tia, fui pro Rio. Minha mãe tá em perigo. Te explico depois. Me perdoa por sair assim. Te amo.”
Fechei a porta atrás de mim com o coração na boca. Do lado de fora, o dia ainda não tinha começado de verdade. O céu tava num tom meio azul escuro, quase roxo, e o ar tava gelado, daquele jeito que arrepia o braço mesmo com blusa. O taxista já tava na esquina, encostado no carro, mexendo no celular. Ele me viu, acenou com a cabeça. Caminhei até lá com as pernas pesadas.
— Aeroporto? — ele perguntou.
— Isso — respondi, jogando a mochila no banco de trás e entrando no carro.
A cidade ainda dormia. As ruas tavam vazias, as luzes dos postes acesas, uma ou outra janela com luz acesa. O rádio do carro tocava uma música velha, baixinha. Eu encostei a cabeça no vidro e fiquei ali, olhando a paisagem passar, tentando entender como é que a vida me trouxe até aqui de novo. Depois de tantos anos fora, depois de tanto me reconstruir, depois de tanto me prometer que nunca mais ia pisar naquele lugar, que eu só andaria pra frente. Mas a gente nunca sabe quando que a vida joga a gente pra trás.
A dor da minha mãe naquela ligação ainda ecoava no meu peito. A voz dela tremendo, o medo gritando. Era mais forte que qualquer lembrança r**m. Mais forte que qualquer trauma. Eu sabia que ela não ia pedir ajuda se não fosse urgente. E se o que ela disse for verdade… então o tempo tá contra a gente.
Fechei os olhos por alguns minutos, tentando descansar. Mas minha cabeça tava a mil. O morro, a casa, o beco, o cheiro. Gente que ficou, gente que morreu. Gente que vai olhar pra mim de cima a baixo quando eu aparecer de volta, diferente de tudo que fui. Mas eu vou. Não orque quero, mas porque preciso por ela.
O avião já tava taxiando na pista quando eu coloquei o celular no modo avião. O assento era apertado, o espaço entre as pernas quase nenhum, e eu já tava com dor nas costas só de pensar nas próximas horas. Mas o que pesava mesmo não era a posição. Era a decisão.
Encostei a cabeça na janelinha. A asa da aeronave tremia leve, e o céu ainda tava meio nublado. Algumas gotas de chuva batiam no vidro como se até o tempo estivesse avisando que aquilo tudo ia dar r**m. Suspirei fundo. Dei aquela última olhada no celular antes de cortar o sinal, abri a conversa com minha mãe e escrevi devagar, sentindo o coração bater na garganta.
Tô no avião, mãe. Daqui a umas horas eu tô aí. Aguenta firme. Eu tô indo.
Pensei em mandar outra coisa, perguntar se ela tava bem, se ele tava em casa, se dormiu, se comeu. Mas apaguei tudo. Nem adiantava. O que tinha que ser dito, já foi. Agora era chegar. E resolver.
Fechei os olhos e segurei o celular no colo por alguns segundos antes de bloquear a tela. O avião começou a ganhar velocidade, o motor roncando forte. Eu senti o corpo empurrar pra trás quando ele levantou. Aquela leve pressão no ouvido, aquele desconforto que dá no começo da subida. Mas eu nem liguei. Já tinha tanta coisa desconfortável dentro de mim, que isso era o de menos.
Enquanto o avião subia, a cidade onde eu vivi nos últimos anos ia ficando pra trás. Cada prédio pequeno lá embaixo parecia uma lembrança engavetada. Lembrei da minha tia, da forma que ela cuidou de mim, dos conselhos, dos puxões de orelha, dos dias que eu cheguei chorando da escola e ela secou minhas lágrimas sem entender metade do que eu sentia. Pensei na Sol que eu fui lá atrás… e na Sol que tava agora, dentro de um avião, voltando pro morro que prometeu nunca mais pisar.
É doido como a vida vira, né? Você sai pra fugir. Acha que nunca mais vai precisar olhar pra trás. Se reconstrói, se fortalece, cria casca, aprende a andar de salto, a bater de frente com o mundo… e num estalo, tá voltando pro mesmo lugar, com o coração apertado, a mala nas costas, e a certeza de que só tá fazendo isso por amor. Porque se não fosse amor, eu não voltava nem amarrada.
Tentei cochilar, mas não consegui. O rosto da minha mãe não saía da minha cabeça. Aquela voz tremendo. A frase ecoando: “Eles vão botar fogo na casa, filha…”
Mas agora eu sou mulher. Agora eu sei me defender. Agora eu sei que, se precisar, eu queimo tudo também. E se esse tal de Brasa quer incendiar, ele vai ter que passar por cima de mim primeiro antes de tocar na minha mãe.