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1621 Palavras
Dário Narrando Tem gente que nasce pra ser alguém. Tem gente que tenta ser. E tem gente que simplesmente nunca teve chance. Eu sou o último tipo. Ou pelo menos é isso que eu digo pra tentar dormir de vez em quando, mesmo sabendo que a verdade é outra: eu sou só um merda. Um homem que se perdeu cedo demais e nunca mais conseguiu voltar. Já fiz coisa demais nessa vida que nem bêbado eu consigo esquecer. Já bati na mulher que dizia que me amava, já traí mais vezes do que posso contar, já voltei pra casa com perfume de p**a e boca de outra mulher, já gritei com a minha filha, já empurrei ela no canto da parede porque tava com raiva da vida e ela foi o primeiro rosto que eu vi, e isso me queima até hoje mesmo eu fingindo que não. Já roubei comida da mesa, já vendi panela pra comprar pedra, já peguei o dinheiro do gás e troquei por dois pino. Já menti, já fingi, já prometi mil vezes que ia mudar. E em nenhuma delas eu mudei. Uso droga desde que tinha 17 anos. Comecei cheirando em banheiro de festa com amigo vacilão que já morreu faz tempo. No começo era farra, depois virou vício, depois virou rotina, e agora é só necessidade. Se eu fico mais de um dia sem usar, meu corpo trava, minha cabeça gira, a boca seca, o suor pinga. Eu preciso pra viver. Preciso pra andar, pra pensar, pra esquecer. E mesmo assim, mesmo quando tô na larica, destruído, tremendo, fodido… eu ainda vou lá e uso. Porque já não tem mais volta. Já tentei parar. Já fui internado à força, já fui amarrado na cama de clínica, já fugi com a cueca encharcada e me enfiei numa boca só pra sentir o gosto do alívio entrando de novo no peito. Já prometeram me ajudar, já me botaram em oração, já fizeram trabalho espiritual, já acenderam vela pra mim em igreja e terreiro. Mas não existe santo que limpe o que eu me tornei. E o pior de tudo é saber que, no fundo, eu escolhi esse caminho. Não foi só a vida que me deu isso. Eu aceitei. Eu abracei. Eu cavei meu buraco e deitei dentro. Minha filha, a Sol, nunca vai saber a metade do que eu sou. Eu passei doença pra mãe dela, doença daquelas que até hoje ninguém fala o nome porque dói. Eu traía a Rosa com mulher de beco, com travesti da beira da linha do trem, com p**a de vinte reais. Eu usava sem camisinha, vomitava sangue e ainda assim queria mais. Ela aguentou tudo calada, cuidou de mim, escondeu minha sujeira, protegeu a Sol de mim o quanto pôde. E quando não pôde mais, mandou ela embora. Foi a melhor coisa que fez na vida. A única coisa certa. Porque se aquela menina tivesse ficado aqui, eu tinha acabado com ela também. E eu sei disso. Hoje eu tô aqui, no mesmo bar de sempre, sentado na mesma cadeira, bebendo o mesmo copo de pinga suja, ouvindo a mesma risada forçada de p**a que só quer o dinheiro da próxima dose. Tô com a cabeça pesada, o corpo mole, a alma fedendo. As pernas tremem, mas o copo tá cheio e eu bebo. Porque é isso que sobrou pra mim. Porque é isso que eu sou. Um resto de gente que não serviu pra ser pai, nem marido, nem homem. Um rato que ninguém mais olha no olho. — Mais uma — eu disse pro Serjão atrás do balcão, com a voz já arrastada e a garganta arranhando de tanto álcool. Ele me olhou torto, mas encheu o copo. A v***a do meu lado deu risada e puxou meu braço. Eu empurrei devagar. Eu nem queria f***r. Só queria esquecer. Mas a paz do derrotado nunca dura muito. A porta do bar abriu com força. Todo mundo virou. A voz do Serjão sumiu. A risada calou. A v***a levantou. E eu soube na hora que a morte tinha entrado. Brasa! Ele entrou sem pressa, com a arma na cintura e o olhar de quem não precisa falar duas vezes. Parou na minha frente. Nem olhou pro lado. Nem cumprimentou ninguém. Só puxou a pistola devagar, como quem tira a chave de casa do bolso. Encostou a ponta no meu rosto. No meio da testa. A temperatura da arma queimava mais que vergonha. A voz dele veio seca. — Tu tem vinte e quatro horas pra pagar o que tu deve. Pisquei devagar, tentando entender se era alucinação. Ele continuou: — Se não resolver… eu vou meter fogo na tua casa. Contigo dentro. Com tua mulher também. A pistola continuava encostada. — Tu vai morrer assado… igual porco. Ficou em silêncio por alguns segundos, só pra deixar o recado pesar. Depois, virou as costas e saiu, sem olhar pra trás. E eu fiquei ali. Sentado. Molhado de suor, tremendo, com a ponta do copo esquentando na mão. As pernas não respondiam. A v***a já tinha ido embora. O bar inteiro me olhava como se eu fosse lixo. E eu sou mesmo. Só que agora lixo marcado pra morrer. A rua parecia mais silenciosa do que o normal. Talvez fosse coisa da minha cabeça, ou talvez o morro inteiro já soubesse o que tinha acabado de acontecer no bar. Caminhei devagar, meio tonto de bebida, meio zonzo de medo, com o gosto amargo da derrota escorrendo pela garganta. A mão tremia, o coração dava umas batidas erradas, mas o que doía mesmo era o peso da arma dele na minha testa ainda pulsando como se tivesse marcado. A porta de casa tava aberta. A luz da cozinha acesa. A Rosa tava ali, mexendo em alguma panela com aquele jeito automático que ela aprendeu a ter depois de anos vivendo comigo. Ela nem olhou quando eu entrei, mas eu sabia que ela sentiu. Sentiu meu cheiro de pinga, meu suor azedo, meu corpo falido. Fechei a porta devagar, mas não adiantou. — Que cara é essa? — ela perguntou sem virar o rosto. Fiquei em silêncio, mas ela virou e quando me olhou, entendeu. — O que foi que você fez, Dário? Passei a mão no rosto e larguei, — O Brasa me deu vinte e quatro horas. — Pra quê? — ela perguntou, mesmo já sabendo. — Pra pagar o que eu devo. — Quanto? — Perdi as contas. Não sei, pode ser dez mil, quinta, cinquenta mil.. Ela largou a colher dentro da panela como se tivesse tomado uma facada no estômago. — Eu sabia — ela disse, a voz embargada — eu sabia que você ainda ia matar a gente. Eu sabia que ninguém ia aguentar isso pra sempre. Eu rezei tanto, Dário, tanto, pra você parar, pra você ter medo, pra você acordar antes da tragédia… mas você só me provou o contrário. Você vai me matar. De todas as formas, você já tenta me matar. Um pouco por dia, todo dia. O que você tá fazendo agora é só o final da merda toda que você começou há anos. Fiquei parado olhando pra ela, com a cabeça latejando, o sangue fervendo, o pânico subindo no peito. — Cala a boca, Rosa… pelo amor de Deus. — Cala a boca nada! — ela gritou. — Você nunca me ouviu! Nunca! Agora vai ouvir! Vai ouvir o que você é! Um homem podre! Fraco! Viciado! Doente! Que acabou com a própria família! — Eu tô com dor de cabeça, c*****o! — gritei de volta, com a mão na testa. — Como é que eu vou arrumar trinta mil em vinte e quatro horas? Nem que eu venda essa p***a dessa casa inteira eu não arrumo isso! Tu acha que isso é o quê? Que eu sou mágico? Ela se aproximou, com o rosto cheio de raiva e lágrimas nos olhos. — Você devia ter pensado nisso antes de trocar comida por pedra. Antes de vender tudo que a gente tinha pra se entupir de droga. Antes de me trair com p**a de beco, antes de me passar doença, antes de me f***r de todas as formas possíveis! E eu, no auge do desespero, na fúria do fundo do poço, sem nada pra responder, sem um pingo de dignidade na língua, falei o que não devia: — Nem se tu se deitar com alguém tu consegue esse dinheiro. Tu não vale nem cinquenta reais, Rosa. Nem isso. O tapa veio seco e estalado. A cabeça virou na mesma hora, fazendo meu pescoço estalar junto com a bochecha. — Nunca mais você me falta com respeito, ouviu? Eu não sou essas suas vadias de rua. Eu sou a mulher que dividiu a cama com você por mais de vinte anos. A mulher que segurou tua filha no colo enquanto você tava se mijando na sarjeta. A mulher que limpou sua baba, que escondeu suas merdas, que mentiu pra sua filha pra proteger a imagem que você nunca teve. Você já destruiu a minha vida, Dário. Me matou aos poucos, todos os dias. Me passou uma doença maldita, me fez emagrecer, me fez definhar. Eu tenho que me cuidar, fazer exame, tomar remédio, lidar com médico me olhando com pena. Por tua culpa. Por tua porquice. Por tua falta de caráter. E mesmo assim, eu ainda fui burra de me deitar contigo depois. Burra! Ela parou, respirou fundo, limpou a lágrima com raiva e cuspiu a última frase como se fosse veneno: — Você é a pior coisa que me aconteceu. Fiquei em silêncio. Não porque concordei. Mas porque, naquele momento, eu não tinha mais força pra discordar. Eu sou mesmo.
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