Brasa Narrando
Aqui ninguém me chama de Ítalo. Só minha mãe, isso quando ainda tava viva. O resto… aprendeu a respeitar o nome que ficou: Brasa, e não foi à toa.
Quando eu chego, o clima muda. O riso abaixa, o papo muda de rumo, o rádio silencia. Porque diferente de muito chefe por aí, eu não sou de festa, de palhaçada, de ficar batendo palma pra soldado. Eu comando. E ponto. O morro entende que aqui não é território de amizade. É território de ordem. E quem pisa fora da linha, sente a chama.
Quando o antigo dono morreu, o povo achou que ia descer tudo ladeira abaixo. Que ia virar bagunça. Que ia ter guerra entre frente querendo sentar no trono. Mas o morro já me conhecia. Eu era o frente dele, e diferente de muitos, eu sabia ouvir, observar, aprender. Eu não me metia em vaidade, não queria ostentar nada. Eu queria estrutura. E quando chegou a hora, eu já tava pronto.
Ele morreu numa troca com a polícia. Tentaram esconder, mascarar, enrolar. Mas a rua é ligeira. Eu nem precisei dizer que ia assumir. Só levantei, peguei o rádio e falei:
— A partir de agora, quem resolve aqui… sou eu.
Foi o suficiente. Não teve disputa, não teve votação, não teve discurso. Teve medo. Teve respeito. Teve silêncio.
Porque eu sempre fui esse tipo de homem: discreto no barulho e pesado no silêncio. Não sou de dar risadinha pra todo mundo, não sou de chamar de “meu cria”, não fico colando com os menor na laje pra fingir que sou gente boa. Isso aí é fachada. Eu não sou artista. Sou chefe. E quem é chefe sabe que simpatia demais atrasa. Aproxima gente errada. E eu não gosto de gente demais perto.
Tenho meus braços. Os de confiança. Os que sabem que não se passa da linha. Mas mesmo esses… não sabem metade de mim.
Durmo pouco, como pouco, falo pouco. Mas penso o tempo inteiro. Observo os passos. Observo o morro. Observo as vozes que tentam falar mais alto do que deviam. Eu ouço tudo. Tenho olho na rua, ouvido no rádio, e visão no futuro. Porque quem só pensa no lucro do mês, morre no mês seguinte. E eu vim pra durar. Vim pra manter. Vim pra expandir se for o caso. Mas sempre com os dois pés no chão.
Aqui, o baile rola? Rola. A boca vende? Vende. A quebrada vive? Vive. Mas tudo dentro da regra. Da minha regra. E se alguém esquece disso, eu lembro. Sem muito aviso.
O sol nem tinha secado o asfalto e eu já tava na laje da central, olhando o movimento com o cigarro queimando entre os dedos e a mente girando mais que o ventilador quebrado do barraco do lado. A quebrada acorda antes do despertador. O rádio começa a estourar cedo. A primeira cobrança do dia chegou com dois dos meus — os que eu deixo abrir a boca porque sei que falam só o necessário.
— Chefe… o bagulho com o Luís tá passando da conta.
Na hora que falaram esse nome, eu já senti o sangue esquentar.
Luís é nome que já devia ter sido riscado da lista faz tempo. Cansado de ver esse traste tropeçando pelos becos, fedendo a cachaça, com os olhos virados, falando cuspindo, ameaçando até cachorro de rua. Já vi ele empurrando a mulher na porta do bar, trocando aliança por pedra, vendendo até panela furada pra usar droga.
Um dos moleques falou baixo:
— Ele tá devendo trinta, Brasa. Trintão seco. Sem previsão de pagar.
Dez mil. E não é de agora. Já faz tempo que ele anda mamando no que não pode pagar. Já fez acordo, já chorou, já sumiu, já voltou, já jurou que tava limpo. E eu? Só observando. Porque é assim que eu ajo. Eu deixo correr pra ver até onde vai. E quando eu corto, é no osso.
— E aí? — eu falei, sem virar o rosto. — Vai pagar com o quê? Com mais promessa?
— Diz que vai resolver, mas a gente sabe que é caô — respondeu o outro. — Vem todo dia no bar do Serjão, enche o cu de velho barreiro e acende aquele cigarro de palha fedorento.
Eu já vi esse cenário tantas vezes que nem me incomoda mais. Só me confirma que gente fraca não muda. Só muda o jeito de se destruir. Luís vende tudo que toca. Se deixarem, vende até a alma da própria mãe por mais uma noite de ilusão.
Mas aqui não é centro de reabilitação. Aqui é morro. Aqui é comando. E dívida tem preço. Abaixei o cigarro, pisei com calma, e só falei:
— Manda avisar..
Os dois olharam pra mim em silêncio, esperando o resto. Eu continuei com o tom frio, sem elevar voz nenhuma:
— Fala pra esse bêbado arrombado que ele tem vinte e quatro horas pra resolver essa dívida. Um dia. Nem uma hora a mais. Se não…
dei um passo pra frente, olhando pro morro lá embaixo, como quem já sabia o destino.
— …eu meto fogo na casa dele. Com todo mundo dentro. Inclusive ele.
Os moleques assentiram com a cabeça, sem fazer pergunta, sem acrescentar nada. Do jeito que tem que ser. Aqui é assim. Não é gritaria, não é ameaça no grito, não é teatrinho. É ordem dada. Ordem cumprida. Luís teve chance. Várias. Agora só tem tempo. E o relógio tá correndo.
Aqui no morro tem mulher de tudo que é tipo. Tem as que acordam cedo, botam criança no colo e descem pra faxina com o chinelo furado no pé e a dignidade inteira nas costas. Tem as que vendem bala na rua, as que costuram pra fora, as que sustentam casa sozinha. Essas eu respeito. Essas eu olho com firmeza e não meto medo. Porque quem carrega o morro nas costas de verdade é elas.
Mas também tem as outras. As que vivem de rodar onde o poder tá. As que não têm nome, mas vivem se anunciando com decote e boca vermelha. As que se jogam no colo de qualquer frente, soldado ou vapor, desde que ele tenha pistola na cintura e cordão no pescoço.
Essas eu vejo todo dia. Na porta da boca, no bar, no baile, nas mensagens..
Acham que tão no controle. Que tão por cima. Que por dar pra um homem com nome no morro tão protegidas, blindadas. Só que esquecem de um detalhe: quem tem fome de status, morre engasgada com rejeito. Porque aqui… ninguém se apaixona por mulher que cola por interesse. A gente come e some. Usa e larga. Passa pro próximo. E elas sabem disso. Mas fingem que não.
Já teve época que eu tive várias dessas na cama. Uma diferente por noite. Todas se oferecendo como se fossem únicas. Mas no fim… eram tudo a mesma coisa. Mesmo perfume barato. Mesmo papo mole. Mesmo olhar de quem quer ser a próxima “primeira-dama” do crime.
Só que eu não tenho primeira-dama. Nunca tive. E nem quero. Porque onde tem sentimento, tem fraqueza. Onde tem apego, tem brecha. E eu não abro brecha pra ninguém.
Já vi frente cair por causa de mulher. Já vi chefão morrer abraçado com a amante, levando tiro nas costas por confiar demais. Eu? Eu aprendi com os erros dos outros. Não levo ninguém comigo. Minha cama é minha. Minha vida é minha. Meu mundo… ninguém entra sem ser chamado. E eu não chamo ninguém.
Essas mina acham que vão me dobrar com um olhar, um rebolado, uma promessa. Só que comigo o jogo é outro. Não me encantam. Não me emocionam. E principalmente: não me iludem.
Pode subir a laje toda maquiada, pode usar vestido colado, pode fingir que entende do movimento, no final, eu vejo tudo. Vejo a fome no olho. Vejo o cálculo nos gestos. Vejo o interesse por trás de cada sorriso forçado.
Por isso que eu fico na minha. Assisto, mando descer, dou o trocado mas mantenho a distância. Mulher demais no ouvido de homem que manda queda anunciada. E eu não caio. Eu incendeio quem tentar me derrubar.