Pré-visualização gratuita 1. Bianca
O salto dos meus sapatos ecoa pelos corredores de mármore da mansão, cada passo mais rápido que o anterior. Não é medo. É pressa, e talvez um pouco de tédio. Nesta casa, hesitar é perder espaço. Ser filha de Don Romano é aprender cedo a sobreviver entre sorrisos frios e portas sempre fechadas.
No fim do corredor, uma porta pesada se mantém trancada. Por trás dela, vozes abafadas discutem negócios e um nome repetido em tons baixos: Valentini. Finjo não ouvir. Meu pai prefere que eu permaneça à margem das decisões, como se ignorar me tornasse menos parte deste mundo. Ele não entende. Ninguém entende.
Abro a varanda e inspiro o ar fresco da noite. Daqui de cima, vejo os jardins perfeitamente desenhados e as sombras dos seguranças cruzando as alamedas. Todos atentos, como se esperassem uma guerra.
Seguro o corrimão com força. Meus dedos quase congelam no metal gelado. Às vezes, penso em pular para o outro lado, fugir da redoma dourada que me cerca desde criança. Mas não sou o tipo de princesa que foge, pelo menos é o que eu digo a mim mesma.
— O que faz aí fora sozinha, Bianca? — A voz de Marcello, um dos homens de confiança do meu pai, corta meus pensamentos.
— Precisa de permissão até para respirar agora? — retruco, sem sequer olhar para ele.
O silêncio entre nós dura segundos longos. Ele finge não notar minha hostilidade, eu finjo não notar sua vigilância. É um jogo antigo, e já conheço as regras de cor.
Volto para dentro antes que Marcello insista em ficar me vigiando. No corredor, minha mãe passa apressada, os saltos delicados abafados pelo tapete persa. Ela não olha para mim. Deve estar focada em mais um jantar de aparências, ou em instruções triviais que nunca têm real importância neste mundo de aço e silêncio.
No meu quarto, a rotina é sempre a mesma: reviso mensagens no celular, nada além de recados de amigas da alta sociedade, meninas que fingem não saber de onde vem o dinheiro de suas famílias. Respondo com ironias, desligada. Nenhuma delas entenderia o que é crescer sendo moeda de troca.
Na penteadeira, escovo os cabelos enquanto escuto, ao fundo, o som abafado do piano do andar de baixo. Sempre a mesma música clássica, sempre para acalmar os nervos de meu pai quando as negociações ficam tensas. Me visto para o jantar, escolho o vestido certo, nunca muito chamativo, nunca informal demais. Meu pai gosta de controlar até o que visto. Ele diz que uma Romano nunca deve se expor.
No jantar, sento à mesa longa, ladeada por flores caras e porcelana importada. Meu pai entra por último, cercado de homens de olhar duro. Ele fala pouco, observa muito. Finge se importar com meu dia, pergunta se fui à academia, se li algum livro útil. Respondo no automático. Ninguém se importa com a verdade.
A madrugada chega e, enquanto a mansão dorme, eu escrevo em meu diário escondido sob a cama:
"Às vezes sinto falta de ar, como se os muros desta casa estivessem se fechando. Sei que sou valiosa, mas não sou livre. Um dia, vou sair daqui. E quando for, ninguém vai perceber até ser tarde demais."
Encosto a cabeça no travesseiro, ouvindo ao longe o som dos carros de luxo deixando a mansão. Não sei que acordos foram feitos essa noite, nem quem vai sair ferido. O que sei é que, neste mundo, tudo pode mudar de repente.
[...]
O sol ainda nem despontou no céu quando acordo com o toque ríspido na porta. Marcello aparece, imponente, o olhar de quem não aceita recusas.
— Aula de tiro. Seu pai pediu para você estar pronta em dez minutos.
Respiro fundo, me permitindo um instante de preguiça. Mas sei que não vale a pena lutar. Nessa casa, ordens não são discutidas. Me visto rapidamente: jeans escuros, camiseta básica, cabelo preso em um r**o de cavalo. Na penteadeira, o perfume caro fica para outra ocasião
Desço as escadas, cruzando a mansão silenciosa. O cheiro de café fresco me faz desejar um dia comum, daqueles em que eu poderia simplesmente sair para caminhar sem ser seguida por homens armados. Mas nada é comum aqui.
No jardim dos fundos, o campo de treino está montado. Alvos dispostos em fileira, caixas de munição empilhadas, instrutores atentos. Meu pai prefere que eu treine cedo, longe dos olhares curiosos dos outros empregados. Diz que uma Romano precisa saber se defender, mas nunca deve ser vista em ação. Outra das suas lições paradoxais.
Marcello me entrega uma pistola prateada. O peso dela é familiar. Cresci treinando, mesmo antes de entender o que estava em jogo. Ele me observa enquanto carrego a arma, o olhar duro de sempre.
— Hoje, precisão — ele avisa. — E velocidade.
Me posiciono atrás da linha demarcada. O vento frio do amanhecer arrepia meus braços, mas não deixo transparecer. Não diante deles. Engatilho a arma, inspiro fundo e aponto para o alvo mais distante.
O primeiro disparo ressoa no silêncio, cortando o ar. O projétil atinge quase o centro do alvo. Sinto uma pontada de orgulho e outra de tédio. Recarrego e disparo de novo. E de novo. Meus movimentos são mecânicos, automáticos, como tudo na minha vida.
Quando a mão começa a tremer, paro por um segundo. Olho para o céu, ainda escuro. Penso em como seria apontar essa arma para outro objetivo: para o portão da mansão, para o próprio destino. Mas logo volto ao treino. Aqui, sentimentos não têm espaço.
Marcello me observa, em silêncio. Às vezes, me pergunto se ele enxerga algo além da filha do Don, se percebe a garota entediada, frustrada, presa atrás dos muros dourados. Mas ele só assente quando o último disparo acerta o centro.
— Nada m*l — diz, quase sorrindo.
Guardo a pistola no coldre e me afasto. No caminho de volta, cruzo com meu pai. Ele não diz nada, só me lança aquele olhar de aprovação silenciosa, como se cada tiro acertado fosse uma confirmação de que sou, de fato, uma Romano.
Quando finalmente fico sozinha, o cheiro de pólvora ainda nas mãos, olho para o espelho do banheiro. Vejo uma mulher forte, treinada, mas com olhos que denunciam o cansaço. Lavo o rosto, tentando apagar o reflexo de alguém que não escolheu o próprio destino.
O resto da manhã segue no mesmo ritmo. Café da manhã com minha mãe, que só comenta sobre os convites para um novo evento de caridade, troca de mensagens desinteressadas no grupo das amigas, algumas leituras que tento forçar para distrair a mente.
Mas nada prende minha atenção. Sinto uma inquietação estranha, como se algo estivesse prestes a acontecer, mas não sei dizer o quê. Por um momento, penso em fugir para a biblioteca e me perder entre os livros antigos, mas um pressentimento me faz ficar alerta.
No fundo, sei que, por mais que treine, leia, estude ou tente escapar, nunca estou realmente preparada para o que o destino reserva para mim. Aqui, o perigo tem muitos rostos, e nenhum deles avisa quando está prestes a atacar.