**5 ANOS DEPOIS**
— Então, como estão todos? — A professora cumprimentou a turma animada.
— Alguém deve ter reatado o namoro… — Ha-nui cochichou para mim, e eu mordi o lábio para não rir.
— Meus queridos alunos, fico imensamente feliz pelo progresso da turma e de cada um individualmente. Mas eu tenho apenas 5 vagas para o estágio de verão, então vou aplicar um teste para escolher os candidatos.
Todos nós olhamos para ela e houve um murmúrio na classe. Eu estava muito ansiosa por esse dia; foi uma excelente oportunidade para conseguir um emprego fixo e me mudar definitivamente para a Coreia. Havia 2 anos que eu estava nesse curso, e o único emprego de meio período que consegui foi como babá. Mesmo com meu coreano fluente e um inglês impecável, eu sofria preconceito por ser estrangeira.
— Bem, são apenas duas perguntas e espero que todos tenham sorte. — A senhorita Kim Eun-hye falava enquanto distribuía as folhas pelas mesas. — Vocês terão 20 minutos, comecem.
Eu li cada pergunta atentamente, e questões filosóficas não eram meu forte, mas eu precisava me concentrar; era uma oportunidade e eu teria que me superar. Olhei discretamente para Ha-nui, que estava escrevendo delicadamente no papel, suspirei e pensei que, se fosse sul-coreana, não precisaria me preocupar em voltar para minha vida do outro lado do globo, a vida que eu simplesmente queria esquecer.
Fiquei encarando o papel e nada de coerente formava em minha mente. O relógio era meu inimigo, marcando os minutos, e faltavam agora 10 minutos para decidir meu destino. Eu precisava passar! Antes do tempo acabar, escrevi o que veio em minha mente.
— Ótimo! O tempo acabou. — A professora bateu palmas. — Ha-nui, por favor, recolha as folhas para mim. — Disse saindo da sala para atender o telefone.
— Sim, senhorita Kim.
Ha-nui pegou minha prova, que eu entreguei um tanto insegura, e saiu recolhendo o restante. Eu bufei, me jogando no encosto da cadeira e olhando para a janela ao lado, observando a chuva cair preguiçosamente naquele dia. Eu amava os dias chuvosos; lembravam-me da minha infância, doce infância.
Flashback
— Olha, mamãe! Olha para mim!
(Risos)
— Sophie, minha querida, desça dessa árvore!
— Está bem, mamãe…
— O que minhas duas princesas estão fazendo?
— Oi, querido!
— Oi, amor!
(Beijo na testa)
— Papai!
— Oi, macaquinha! — Pulei no braço do meu pai, que me rodopiou no ar.
— Querida, quero apresentar alguém a vocês. Este é meu sócio e amigo, Mark.
— Muito prazer! Sou a Samantha.
— Prazer, Senhora Hanson.
(Aperto de mão)
— E quem é essa princesinha aqui? — Mark olhou para mim.
— Esta é a Sophie, nossa filha. — Disse papai.
— Olá, pode me chamar de tio Mark. — Ele afagou meus cabelos e eu sorri.
...
Flashback off
— Sophie? Sophie! — Ha-nui me cutucou na costela e eu tomei um susto. — Vamos! A professora já dispensou a turma.
— E as notas? O resultado? — Perguntei atordoada ao sair de meus pensamentos tão de repente.
— Ela disse que mandaria e-mails com os resultados e para quem passar um e-mail específico. Você estava viajando há um bom tempo olhando pela janela. — Ha-nui riu, pegando sua bolsa.
— Eu apenas me distraí com a chuva. — Falei sem graça, vestindo minha jaqueta corta-vento e pegando minha mochila.
Fomos em direção à saída leste, que dava para uma rua onde havia uma cafeteria à qual costumávamos ir frequentemente. Apesar de estarmos próximos do verão, a semana estava estranhamente chuvosa e um chocolate quente cairia bem.
— Você quer passar? — Perguntei ao colocar minha touca.
— Acho que não. Na verdade, tanto faz. — Ha-nui respondeu, abrindo o guarda-chuva sobre nós.
— Eu tenho certeza de que não vou passar… — Suspirei, me aconchegando próximo a ela.
— E por que pensa assim?
— Eu não sou boa em filosofia. E você viu as perguntas? — Fui um tanto irônica e ela olhou para mim.
— Tenho certeza de que você vai conseguir. Pode confiar na palavra da sua amiga. — Ela sorriu com o nariz empinado.
— Você é sempre tão otimista. — Apertei a bochecha rosada e fofa dela.
— Ai! Para já com isso, Sophs… — Ela reclamou, massageando o local.
— E cócegas, posso?
— Não se atreva! — Ela sorriu.
— Então… se prepare para correr. — A olhei séria.
— Não… não, Sophs! Estamos na rua… — Ela falou quase cochichando. — O que você é? Uma criança?
— 1… 2
— Sophie, é sério?
— 3… acabou o tempo!
No momento em que terminei de falar, Ha-nui saiu correndo e rindo. A chuva estava fina e havia poucas pessoas na calçada; Ha-nui era a irmã que eu nunca tive e nos dávamos muito bem. Saí atrás dela, que virou a esquina, e quando virei logo em seguida, meu corpo bateu com tudo em alguém.
Um guarda-chuva preto voou para a rua e eu caí para trás, de b***a no chão. Olhei para frente e um homem também estava sentado na calçada com uma cara nada amigável. Um copo de café expresso estava caído entre suas pernas e sua camisa social azul claro estava manchada com o líquido de cor amarronzada.
— Oh, meu Deus! Me desculpe! — Falei, levando uma mão à boca.
O homem de cabelos pretos, que contrastava com sua pele tão pálida, me olhava fixo sem expressar nenhuma reação a não ser a de puro ódio. Ele olhou para suas roupas e voltou a me encarar sob a chuva que ainda insistia em cair lentamente como uma garoa.
— Eu… eu sinto muito mesmo… — Eu me levantei, olhando-o fazer o mesmo, ajeitando a alça de sua maleta no ombro. — Seu guarda-chuva… eu vou pegá-lo… — Falei, indo pegar o objeto no meio da rua.
Um carro buzinou ao parar perto de mim quando me agachei.
— Sai do meio da rua, maluca! — O motorista ralhou ao colocar a cabeça pela janela.
— Me desculpe, senhor! — Me curvei, correndo para a calçada.
O homem continuava a me encarar e eu não sabia mais o que falar.
— Perdão! — Me curvei, estendendo o guarda-chuva para ele. Olhei discretamente para cima e ele apenas ajeitava seu sobretudo preto. — Eu… — Me endireitei.
— Já chega de desculpas por hoje. — Ele disse, pegando o guarda-chuva e ainda me olhando, passou por mim enquanto eu fiquei ali na calçada, na chuva.
Eu me virei para trás e vi a silhueta dele ir sumindo aos poucos.
— Sophie! — Ha-nui gritou e eu me virei, vendo-a acenar de dentro pela porta da cafeteria.
...
Entrei na cafeteria e me sentei na mesa que Ha-nui reservou.
— O que você tanto fazia lá fora? Está toda molhada e pode pegar um resfriado daqueles.
— Desculpe, eu esbarrei em um homem lá fora e nós caímos, aí estava pedindo desculpas. — Falei, bebendo do meu chocolate com marshmallows que Ha-nui já havia pedido.
— E ele era bonito? — Ela perguntou, levantando uma sobrancelha e tomando seu chá de amoras silvestres.
— Como?
— Bonito, ué! Você sabe, belos olhos, uma boa aparência… — Ela gesticulava, revirando os olhos como se eu fosse tonta.
— Ah, sei lá… — Mexi no meu cupcake de cobertura de morango e a imagem daqueles olhos passou em minha mente. — Não reparei muito bem, ele parecia m*l-humorado e m*l falou comigo, apesar de eu ter pedido desculpas umas 3 vezes. — Dei de ombros.
— Esquece ele então, amiga. Olha aqui! — Ha-nui se debruçou, me mostrando um app em seu celular.
— O que é isso? — Perguntei, desconfiada, dando uma mordida no meu cupcake.
— Ora bolas, é um app de match, sua bobinha. — Ela sorriu.
— Ah, não… você já sabe que eu não posso me envolver com ninguém. Além disso, tenho que focar no curso e conseguir um emprego de verdade.
— Sophie, você tem que conhecer um rapaz legal. Você é linda, engraçada, dinâmica, espontânea… tá, você é um pouco lerda. — Ela deu de ombros. — Mas nada que se note muito bem.
— Cara, você sabe que eu te amo, né? Mas eu vou acabar te batendo qualquer dia desses. — Levantei o punho esquerdo para ela, que riu.
— Não vai me dizer que não quer um oppa?
— Para com isso! — chutei sua perna de leve por ter falado tão alto.
— Ai! Não seja tão malvada... — choramingou, acariciando a perna por debaixo da mesa. — Se você conseguisse um namorado que te levasse a sério e se apaixonasse, vocês poderiam morar juntos e você poderia ficar aqui. União instável.
A olhei um tanto incrédula. Apesar de Ha-nui ser uma garota de classe média, ela não era fútil como as garotas que eu conheci na minha época de escola. Ela era gentil, amável e muito inteligente; até tentou me ajudar a encontrar um emprego, mas, novamente, por eu ser estrangeira, as coisas não saíram tão bem assim. Os pais de Ha-nui até a proibiram de me ver, dizendo que eu era uma má influência e iria contaminá-la com maus hábitos estrangeiros que mancham a cultura. Apesar disso, ela se manteve ao meu lado e continua a ser minha amiga que me ajuda sempre, desde questões emocionais até financeiras. Eu deveria ligar para minha mãe e dizer onde estou, mas eu não podia.
Ela era a última pessoa do mundo que poderia saber o que aconteceu.
— Você tem razão... Vamos dar uma olhada nisso aí.
...
— Prontinha, sã e salva. — Ha-nui disse, sorridente.
— Obrigada, amiga, mas realmente não precisava, eu poderia ter vindo de trem.
— Sabe que isso não é um incômodo para mim.
— Eu sei, só não quero que sua mãe brigue com você novamente por minha causa.
— Relaxa, Sophs, minha mãe é complicada, mas uma hora ou outra ela vai ter que entender.
— Obrigada de verdade. — Sorri e Ha-nui me abraçou. — Tchau, até amanhã.
Sai do carro acenando quando ele sumiu na esquina. Suspirei, ajeitei minha mochila e entrei no prédio. Apertei o botão do elevador e nada.
— Tá quebrado. — O senhor Hanjon gritou em coreano da cabine da pequena portaria.
— Ok. Obrigada. — Acenei com a cabeça, me dirigindo às escadas.
Quando cheguei no sétimo andar, já estava sem fôlego. Peguei a chave no bolso da calça e tentei abrir a porta, que estava travando.
— Mas que droga... — resmunguei, empurrando e nada.
Bufei.
— Quer ajuda? — A voz de Tadeu atrás de mim me fez sobressaltar um pouco.
— Ah, oi... Que susto. — Ri sem graça quando me virei.
— Desculpa, não queria te assustar. Estava chegando agora e vi que você está com problemas. — Ele disse, coçando a nuca.
Tadeu era estrangeiro, assim como eu. Quando vim morar aqui há dois meses atrás, depois de ter praticamente sido expulsa da casa onde morava com mais cinco pessoas em Busan, Tadeu me ajudou a subir com as caixas da mudança. Ele sempre foi muito simpático e amigável comigo, porém algo nele não me deixava confortável, como se ele me lembrasse do...
Mark...
O nome que veio à minha mente gelou minha espinha.
— Ah... Sim, é que essa porta tá emperrada. — Disse sem graça, apontando a porta problemática atrás de mim.
— Então cheguei na hora certa. Deixa que eu te ajudo. — Ele colocou umas sacolas no chão e passou por mim.
— Olha, eu já tentei e... — Não terminei de falar. Tadeu empurrou a porta, que abriu.
— Prontinho. — Ele disse, sorridente.
— Nossa, obrigada, Tadeu.
— Não foi nada. — Ele pegou as sacolas. — Ah, Sophie, bem, se você quiser, qualquer dia desses... — Ele coçava a nuca, olhando para o chão e para mim simultaneamente.
— Nossa... Isso é... é que eu tenho que estudar e... — Tentei achar uma desculpa plausível o bastante para não parecer m*l-educada.
— Ah, sim. Então a gente se vê. — Ele acenou e entrou no apartamento ao lado, onde morava.
Entrei em casa e tranquei a porta. Joguei a mochila no pequeno sofá, tirei o gorro e a jaqueta e fui até a janela. Afastei a cortina, observando a noite de Seul, e não sei por quê, minha mente me trouxe a imagem daquele homem com quem esbarrei. Seu rosto bem vívido em minha mente: os olhos escuros e sérios, o nariz redondo, a boca pequena e rosada e o cabelo liso cortado em estilo social. Mas o que mais me chamava a atenção era seu olhar sobre o meu.
— Tão sério...
...
**Som de pássaros**
O som lindo do canto dos pássaros entrou por meus ouvidos. Abri os olhos lentamente, tentando me acostumar com a claridade forte.
Eu não estava em casa; o céu azul sobre mim, juntamente com as nuvens, era a prova clara disso. Levantei a mão direita, tapando a claridade, e sentei, olhando ao redor.
“Estou em um jardim?”
Flores de muitas espécies e cores, borboletas pairando, árvores frutíferas e um lago. Levantei e senti a grama sob meus pés descalços. Percebi que usava um vestido branco florido de margaridas. O vento soprou com uma brisa calma, agitando meus cabelos soltos. A sensação foi tão boa que fechei os olhos.
— Agradável, não é mesmo? — Uma voz doce e feminina soou atrás de mim.
Me virei e vi uma bela mulher coreana com um sorriso lindo agora ao meu lado.
— Eu amo a primavera, é sempre tão agradável e alegre. São tantas cores e aromas. — Ela me olhou com olhos brilhantes e vivos. — Venha.
Ela caminhava entre os lírios e eu a seguia, passando minhas mãos pelas flores, sentindo a maciez das pétalas.
— Sim, é muito agradável. — Respondi.
...
6 AM
O alarme estridente disparou e eu acordei com um susto, me deitando logo em seguida novamente.
— Que sonho foi esse? — Falei olhando para o teto.