Pré-visualização gratuita Capítulo 1
Marcel
Levantei da cama e me arrastei até o banheiro. Mais uma noite m*l dormida. Mesmo a quantidade exorbitante de álcool não tinha sido o suficiente para me apagar completamente. Parei na frente do espelho e olhei o cadáver ambulante em que me tornei. Seis meses havia se passado desde o incidente, e eu estava um trapo.
Meu cabelo loiro com mechas de tons claros e escuros estava comprido, na altura do ombro. Deixei de cortá-lo assim que saí definitivamente do exército. Fitei meus olhos azuis opacos, sem vida, inchados e vermelhos. Encontrava-me em um estado deplorável. As sardas em torno do meu nariz eram visíveis na minha pele translúcida.
A má alimentação junto ao alto consumo de vodca fizeram com que eu perdesse grande parte da minha massa muscular. Meus braços e pernas que antes pareciam uma tora de tão grossos, hoje me davam a aparência de um moleque desnutrido. Achava que até perdera alguns centímetros de altura, ou o fato de andar como um velho fizesse com que os meus dois metros de altura se tornassem menos.
Lembrei do moleque que eu era quando entrei para o exército. Estava tão contente. Desejava ser um herói, ganhar batalhas, defender meu país, mas a realidade fora totalmente diferente. O começo da carreira foi monótono, sem grandes coisas, fui designado para a inteligência, pois tinha domínio de várias línguas, francês, espanhol, inglês, italiano e também o português, que havia aprendido com a minha mãe brasileira.
Nasci no Brasil e me mudei para a França com onze meses, onde vivi até meus dezesseis anos e retornar à minha pátria. Cresci escutando minha mãe contando sobre as revoluções que participara na época da ditadura. Eu ansiava participar de algo assim um dia, fazer a diferença. Mas tudo que ganhei foram pesadelos.
Da inteligência, fui transferido para o setor de informática. Formei-me em engenharia e fui enviado para uma missão de paz no Oriente Médio. Foi aí que deu tudo errado, fiquei cara a cara com a morte e não gostei de nenhum pouco do que vi. Quando você mata alguém, sua alma ganha um pequeno buraco. E esse buraco vai crescendo até te engolir.
Era algo tão simples. Acompanhar médicos a uma aldeia onde levaríamos também suprimentos para atender a todos. Entretanto, fomos emboscados por guerrilheiros armados até os dentes, lutamos por nossas vidas. Até aí tudo bem, dormiria com a consciência tranquila por ter matado pessoas más. Mas quando se tem de escolher entre sua vida e a de um garoto com um pouco mais de doze anos, o cenário muda.
Toquei a cicatriz no meu ombro esquerdo. Por pouco não tinha morrido. Se o coice da arma não fosse demais para o garoto, ele teria me acertado na cabeça, como fiz com ele. Aquilo me mudou de tal forma que o despreocupado Marcel Blanche, risonho, piadista, morreu e deu lugar a esse sombrio, fechado e atormentado homem. Nada como ver a luz da vida se apagar nos olhos de uma criança para te deixar assim.
Pensei que toda aquela m***a tinha ficado para trás, mas estava completamente enganado. Bastou ter que m***r outra pessoa para os antigos fantasmas voltarem à vida, mesmo que o cara merecesse, quem vinha me assombrar era aquele garotinho com uma AK-47 apontada para mim.
Olhei mais uma vez para o rosto no espelho, a barba por fazer escondia meu queixo quadrado, as covinhas da bochecha e o furo no queixo que as mulheres tanto gostavam. O som de briga no andar de cima me distraiu. Era todo dia a mesma coisa. Precisava urgentemente me mudar, procurar uma casa e arrumar algo para fazer da vida.
— Bem — disse para o reflexo —, tirar a aparência de mendigo é um bom primeiro passo, assim não assusto o proprietário do meu novo lar. — Dei de ombros, peguei a espuma de barbear e comecei o trabalho de remover todo aquele pelo.
Estacionei o carro em frente à grande casa de tijolos vermelhos em uma calma rua arborizada de um bairro nobre. O anúncio garantia uma casa com sala, cozinha, quarto e banheiro. Não aceitava animais e tinha uma vaga de garagem. Quieta e aconchegante, já era mobiliada e acessível para o meu bolso. Seria um ótimo lugar para ficar enquanto esperava minha casa ficar pronta. Usei todas as minhas economias para montar o meu lar, eu mesmo fiz a planta e esquematizei a decoração, tudo ao meu gosto.
Sai do Jeep e já olhei a segurança precária da residência, não tinha câmeras do lado de fora. O portão alto de ferro deixava um espaço vazio antes de chegar ao teto da garagem, um moleque franzino conseguiria passar por ali e entrar facilmente na casa. Toquei a campainha e aguardei. Olhei para um vizinho colocando o lixo para fora. Uma criança andando de bicicleta. Era um bairro aparentemente seguro, mas ainda preferia um grande sistema de vigilância.
— Pois não? — Uma mulher abriu a porta e olhou para mim.
Ela era linda. Estatura mediana, por volta de 1,70m, olhos e cabelos pretos, pele dourada, boca rosada. Cheia nos lugares certos. Desci meu olhar e a apreciei, tomando o meu tempo em admirar aquela beldade. Fazia quanto tempo que não tinha uma pequena dessa embaixo de mim?
— Vim por causa do anúncio da casa. — Depois de evitar de engolir a própria língua, eu finalmente disse. Olhei para seu rosto enrubescido e gostei da coloração. — Nos falamos por telefone mais cedo.
— Mamãe! — Uma garotinha veio correndo até nós. — O computador parou de novo. — Cruzou os braços e olhou para a mãe. Seus cabelos castanhos claros estavam amarrados em um r**o de cavalo, assim como os da mãe; tinha um tom de pele dourado.
— Amorzinho, mamãe já vai ver o que aconteceu — disse sorrindo gentilmente para a garotinha.
Encarei seus lábios rosados. Qual seria o gosto deles?
— Mas agora que cheguei ao nível dez, ele parou. — Com a testa franzida e o pezinho batendo no chão ficava engraçadinha, acabei dando uma risadinha.
Agachei no nível dela e perguntei:
— Qual o problema com o computador?
Os olhos amendoados espertos se focaram em mim. Eles me analisaram de cima a baixo por um longo tempo. Aquilo me deixou intrigado, geralmente crianças se intimidam com adultos desconhecidos.
— Eu acho que é defeito no HD. — Deu de ombros. — Mas a mamãe não me deixa abri-lo.
— Você sabe o que é um HD? — Arregalei os olhos. Será que me enganei na suposição de idade?
— HD é o Disco Rígido ou Hard Disk — começou a explicar —, alguns chamam de memória de massa ou memória secundária. É onde ficam armazenados os dados.
Encarei a mãe.
— Quantos anos essa menina tem?
— Fez quatro anos no mês passado.
Meu queixo foi ao chão.
— Quatro anos? — Abri a boca como se fosse um peixe boi, olhando de mãe para filha, sem acreditar no que meus ouvidos escutaram.
— Cacá é uma criança superdotada. — A mulher me ofereceu a mão, peguei-a automaticamente. Como se tivesse tocado em algum polo energizado, senti um leve choque. A morena pigarreou antes de falar: — Meu nome é Letícia; e essa é Carina, minha filha.
— Me chamo Marcel Blanche…
— Você é francês? — Carina apontou para mim. — Bienvenue monsieur[1].
— Je vous remercie Mlle[2]. — Fiz uma mesura. A pequena retribuiu colocando o pezinho para trás, abaixando a cabeça e segurando a barra da blusa. Não tinha muito contato com crianças, achava fascinante esses pequenos seres e essa mocinha esperta estava me encantando.
— Eu não sei o que vocês dois falaram. — Letícia deu um passo para trás, permitindo a minha entrada. — Entre, por favor.
— Um instante. — Caminhei até o porta-malas do meu Jeep, peguei uma maleta.
— O que tem dentro desta maleta? — Carina perguntou assim que entrei na casa.
— Minhas ferramentas de trabalho. — Agachei no chão e abri a mala. Dentro, uma infinidade de chaves para manutenção em computadores e servidores. — Eu sou engenheiro computacional. Acho que posso resolver o seu problema.
A menina começou a pular, animada.
— Ele pode, mamãe? Deixa vai!
Ergui meu rosto para mulher, e a coloração rosada de seu rosto se intensificou.
— Senhor Marcel, não precisa se incomodar.
— Não é um incômodo. — Fechei a maleta e levantei. — Não podemos deixar uma mocinha sem seu computador.
Passamos pelo carro preto estacionado na garagem e seguimos pelo corredor. A casa, assim como a fachada, também era de tijolos vermelhos, o piso imitando pedras. O corredor era longo e dava para ver uma segunda estrutura.
— Eu vou pegar as chaves para te mostrar o local.
Concordei e as segui.
Entramos em uma cozinha extremamente limpa. Piso, pia e balcões pretos contrastavam com armários brancos e eletrodomésticos em inox. Na mesa pequena, encontrava-se um notebook. Carina pegou em minha mão.
— É esse.
Coloquei a maleta em cima da mesa, tirei as chaves necessárias e comecei o trabalho de desmontar a máquina. De primeiro momento, já percebi o grande problema. Uma nuvem de poeira subiu. Com um pincel, comecei a limpar os componentes. A menina tinha razão, além da sujeira, o HD estava m*l encaixado. Montei-o de novo, liguei e a imagem do Windows nos deu boas-vindas.
— Prontinho, mocinha. — Sorri para a menina que estava empoleirada na cadeira ao meu lado, observando todos os meus movimentos.
— Você esqueceu de trocar a pasta térmica do processador.
— Olhei abismado para a garotinha.
— Ela me surpreende também com cada coisa que fala. — Letícia sorriu para mim e balançou as chaves. — Vamos ver a casa?
— Um minuto, realmente preciso trocar a pasta térmica. — Olhei para Carina. — Não queremos que o processador esquente, não é? — Ela balançou a cabeça que sim. — Quer tentar desta vez?
A menina olhou primeiro para a mãe, que assentiu; e e depois sorriu para mim. Entreguei a chave na sua mão. Carina ajoelhou no estofado da cadeira. Com a linguinha para fora e completamente concentrada, começou a desaparafusar cada parafuso da carcaça preta e, assim como, colocou dentro de um tubo plástico que eu tinha para esses fins.
Fiquei olhando fascinado a destreza da garotinha com as peças. Em minutos, o processador estava à mostra.
— Pronto. — Ela ergueu os olhos para mim.
Vasculhei dentro da maleta até encontrar a pasta e abri a tampinha.
— O segredo é colocar o suficiente, nem muito e nem pouco. —Peguei uma flanela e passei para ela. — Deve primeiro limpar essa antiga e vamos usar álcool…
— Álcool isopropílico, não é? —Balancei a cabeça afirmativamente. — Tem que limpar bem direitinho e depois podemos colocar a nova.
— Isso mesmo. — Tirei uma espátula pequena de plástico e esperei que ela limpasse o componente. — Agora aplique uma leve camada da pasta e depois coloque de volta no lugar. — Carina seguiu as orientações. — Muito bem, mocinha, você é uma ótima aprendiz! Melhor que meus alunos.
— Você é professor? — Letícia perguntou.
— Eu fui.
Cheguei a dar poucas aulas no exército, isso tinha sido gratificante. Quem sabe não será um caminho?
— Vamos ver a casa?
Levantei da cadeira e segui a minha senhoria, que tinha um traseiro redondo belíssimo. Meu Deus, há quanto tempo não tenho uma boa e quente noite de s**o? Cobiçar assim uma mulher não era coisa que eu fazia. Ainda mais uma comprometida. O que o marido dela iria falar se me visse olhando assim?
— Eu recebi os seus documentos. — Ela cortou os meus pensamentos libidinosos. — Você é o primeiro inquilino que até antecedentes criminais me manda.
— Uma boa verificação de quem está colocando dentro de sua casa é válida. — Dei de ombros, e parei ao lado dela depois de atravessar o gramado entre as duas casas.
— O contrato é de um ano, podendo ser prolongado por mais tempo. — Letícia abriu a grade de ferro em frente à porta. Um ponto positivo. Portas e janelas tinham grades. Os muros altos com cerca elétrica. Só faltava um bom sistema de segurança e ficaria perfeito o lugar.
— Se tiver sorte, ficarei no máximo seis meses. Mas como sei que construções demoram, ficarei com o contrato de um ano.
— Você está construindo o quê? — perguntou ao abrir a porta.
— Uma casa de dois andares, no interior do estado.
Entrei no local e já gostei do ambiente. A sala tinha dois sofás, um rack e uma TV grande. A cozinha americana tinha tudo o que eu precisaria para me manter vivo. Uma porta à esquerda dava para o quarto com uma grande cama de casal, um guarda-roupas. E uma mesa para computador ficava embaixo da grande janela que dava para o pátio. Tudo muito iluminado e arejado.
— Água e luz são independentes. A internet e a TV a cabo iremos dividir, e o IPTU está embutido no valor do aluguel. — Letícia abriu os braços. — Bem é isso. Ah, Não aceito animais porque Carina tem alergia.
— Eu não tenho animais. — Dei uma boa olhada nas paredes brancas e nos móveis. — Gostei do lugar e vou ficar.
Letícia sorriu para mim e ofereceu a mão.
— Bem-vindo a seu novo lar.
Peguei aquela pequena mão e senti novamente a eletricidade correndo pelo meu corpo. O sorriso dela diminuiu e vi suas bochechas corando e as pupilas dilatando. Aquela reação estranha não foi somente do meu lado. Com o canto dos olhos, vi Carina sorrindo e se balançando nos próprios pés, aquilo fez meu coração vacilar uma batida e cheguei à conclusão de que eu estava completamente ferrado.
[1] Do francês: Bem-vindo, senhor.
[2] Do francês: Obrigado, senhorita.