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Data:
5 DE NOVEMBRO DE 2038
Horário:
23:20
O inverno se aproximava em Detroit, sendo anunciado pela chuva e o clima frio que apenas o fim de ano conseguia proporcionar. Enquanto para alguns a chuva era um presente dos céus, para a jovem Collins era o seu maior azar. Na verdade nunca estava contente com o clima, afinal cada época do ano lhe presenteava especialmente com alguma situação negativa relacionada ao trabalho.
"A chuva levou todos os rastros"
"Esse sol ainda vai me matar"
"Quanta neve! Perdemos de novo..."
"Nada bom"
E mesmo com tantas reclamações cumpria sempre com sua palavra e poderia finalmente comemorar consigo mesma gritando um "caso encerrado, vadias!".
- Mas que merda...
Sentia uma dor aguda inundar sua cabeça de uma maneira inexplicável. Aquela campainha ensurdecedora soava como o inferno em seus ouvidos e naquele momento pensou, pela milésima vez nesse mesmo ano, em chamar urgentemente alguém para consertar:
- Já vai!
Praticamente rolou para longe do sofá, seus fios castanhos escuros de pernas para o ar, porém nada que um simples r**o de cavalo não resolvesse o problema. Seu tão precioso sono em uma noite chuvosa de folga havia sido brutalmente interrompido.
Com passos arrastados caminhou em direção à porta, lutando um pouco para destrancá-la e finalmente abrir:
- Hm?
Com uma sobrancelha arqueada observava o homem a sua frente. Era alto e muito bem vestido, o led localizado na têmpora sendo o principal destaque daquela figura esguia:
- Detetive Collins, meu nome é Ryan. Sou o android enviado pela AndroidCompany para acompanhar a senhorita e ao Tenente Adam Blake em um caso de homicídio envolvendo androids.
As palavras "homicídio" e "androids" rondaram na mente da detetive. Diferente dos outros, que estariam surtando por serem obrigados a trabalhar ao lado de uma máquina, sua maior preocupação era a sua tão preciosa noite de folga, afinal tinha um encontro marcado com o seu pequeno e desconfortável sofá:
- Sei que está de folga, mas o Capitão Mitchell ordenou que comande a investigação ao lado do Tenente.
Ryan foi rápido em analisar os pensamentos dela com base em suas feições:
- Quais as informações? - Indagou, ajeitando sua postura e tentando manter a pose de uma boa profissional.
- Apenas que vítima se chama William Jones. Descobriremos o restante assim que chegarmos na cena do crime.
- Eu só vou me vestir - avisou Jade ao deixá-lo entrar em seu minúsculo apartamento e sem dizer mais nada desapareceu em seu quarto.
O android observava tudo ao seu redor, afinal queria sempre coletar todas as informações possíveis a respeito de quem está investigando e, principalmente, de seus colegas. Não havia nada de tão especial além de o apartamento ser bem pequeno e, ao mesmo tempo, muito bem organizado e o fato de haverem vários desenhos colados na parede da sala.
Desenhos coloridos com traços infantis decoravam todo o local. Os traços mudavam em alguns desenhos, indicando que foram feitos por outra criança:
- Não liga para isso, são apenas rabiscos.
A Collins se aproximou do android, um sorriso suave pintando seus lábios levemente avermelhados enquanto admirava as obras de arte. Desde aquela época sempre amou desenhar, sendo esse um de seus hobbies até nos dias atuais:
- Vamos.
Era incrível o como, de uma hora para outra, se tornou uma pessoa diferente apenas com uma simples troca de roupas. Seus fios longos agora estavam presos em um r**o de cavalo da maneira certa, muito bem arrumados, e suas roupas, que antes eram largas e atrapalhadas, agora se baseavam em um conjunto social: calça, sobretudo e gravata pretas; camisa branca.
Guiou seu mais novo colega android para fora do prédio, seguindo a pé pelas ruas daquele bairro tão bem iluminado. A chuva fraca os molhava, porém os mesmos pareciam não se importar com aquilo e isso era uma das provas de que aquelas máquinas odiadas e amadas estavam evoluindo cada vez mais ao longo dos dias:
- Para onde estamos indo exatamente? - Indagou Ryan.
- Para o bar - Jade respondeu como se aquilo fosse óbvio, o que realmente era.
Adam vivia nos bares, sendo esse o principal motivo de chegar atrasado no trabalho, além de toda sua preguiça e indisposição. Ela o conhecia muito bem, bem até de mais por assim dizer e ninguém ao menos imagina os sufocos que passou cuidando de um velho bêbado e, ainda por cima, ranzinza.
- Deixa que eu resolvo isso, beleza?
A morena avisou ao pararem na frente do bar. Tinha sorte por morar perto de um dos estabelecimentos mais frequentados pelo Tenente ou talvez seria azar.
O sino anunciou a entrada dos novos clientes, que nem ao menos se importaram com a placa "proibido androids" enorme colado bem no meio da porta. Por conta exatamente disso receberam olhares feios dos homens bêbados que se encontravam naquele lugar, um dos únicos mais organizados e, aparentemente, limpos que se encontrava naquela cidade:
- Ei, boneca! - Um dos clientes desagradáveis chamou sua atenção. - Seu cachorrinho de estimação vai ter que esperar lá fora, não viu a placa? - Apontou descaradamente para Ryan, que se encontrava logo atrás dela.
Jade ficou o olhando de cima para baixo com uma expressão de completo desprezo e nojo, ignorando seu comentário desnecessário:
- Velhote, temos que ir - Não foi difícil encontrá-lo, seus fios grisalhos e sua postura caída pareciam ser únicas para a jovem.
O Blake olhou para o lado, encontrando sua parceira e logo atrás dela uma nova figura:
- Então você arrumou um android - debochou, bebendo o restante da bebida alcoólica presente no copo.
- Nós arrumamos um android - corrigiu, sua expressão permanecendo séria - Agora vê se levanta essa b***a daí e vamos dar o fora.
- Vem cá, você acha mesmo que eu vou sair daqui com essa lata de lixo? Sabe muito bem o quanto eu odeio essas p***a e ainda por cima me arruma um?!
- A AndroidCompany que mandou, se quiser reclama com eles e com o Mitchell - tirou do bolso algumas notas amassada, jogando em cima da mesa - Foi m*l pelo incomodo, Paul. Vê um duplo pra esse velho bêbado e pode ficar com o troco.
- Talvez não seja uma má ideia sair daqui com isso aí nos seguindo - Adam deu de ombros, tomando rapidamente a bebida recém servida antes de se levantar.
- O senhor não teria escolha, tenente - Ryan, pela primeira vez desde que chegaram, se pronunciou - As instruções estipulam que devo acompanhá-los.
- Sabe onde vai enfiar essas instruções? - O mais velho perguntou.
- Não, onde?
Jade se viu obrigada a tampar a boca com ambas as mãos, abafando sua gargalhada. O mais velho, por sua vez, a encarou com completa indignação ao vê-la achar graça daquela besteira e a jovem apenas deu de ombros antes de seguir para fora do estabelecimento com uma risadinha apenas para provocá-lo.
A chuva continuava fraca e tranquila, porém aquele clima não durou por muito tempo. O tenente possuía gostos peculiares na visão de alguns, já que era possível ouvi-lo chegando de longe apenas pelo volume extremamente alto do Heavy Metal que tocava em seu carro. Jade já estava acostumada e mesmo assim ainda não conseguia entender o como ainda tinha sua audição intacta.
Luzes vermelhas coloriam a rua inteira em conjunto ao som das sirenes da polícia e da ambulância que havia acabo de chegar no local. Mesmo diante a chuva os olhares curiosos dos vizinhos e da própria mídia estavam ali atentos, algo que irritava o tenente e a detetive, sua dupla:
- É o seguinte - o Blake se virou para trás ao desligar os motores do carro, encarando seriamente Ryan -, você vai ficar aqui. Eu e a garota voltamos logo.
- Minhas instruções são acompanhar vocês dois até a cena do crime, tenente.
- Adam, vê se não começa - avisou a morena - Eu cuido dele, tá? Só não causa um escândalo.
- Ele não fala, não toca em nada e não fica no meu caminho.
- Como quiser, tenente - Jade fez uma pequena reverência, fazendo com que ele revirasse os olhos e saísse do carro no mesmo instante. No fundo a relação dos dois era muito boa e todos sabiam disso... a maioria.
Repórteres tentavam com todas suas forças conseguir algum tipo de informação e quando se tratava do velho e sua dupla falhavam miseravelmente em sua missão:
- Nossa, pensei que vocês não viriam nunca. Estamos esperando aqui a horas!
- Sim, James. Esse era o plano até a garota aparecer com esse infeliz.
- Então ela arrumou um android?
- Nós arrumamos um android - ela corrigiu com um suspiro pesado.
- Você disse que iria tomar conta dele, então ele é seu - o grisalho fez questão de se defender.
- Pode ignorar ele e contar logo o caso? - A jovem detetive pediu.
- Recebemos uma ligação do proprietário ás oito. O locatário não pagava o aluguel há meses, então ele resolveu vir visitá-lo e ver o que estava acontecendo. Foi quando descobriu o corpo.
James explicava detalhadamente a situação enquanto caminhava na direção da varanda da casa. Era grande e pela visão da fachada dava para ter uma noção do quanto estava acabada, quase caindo aos pedaços de tão precária que era sua situação. Deixava os detetives surpresos por ainda estar de pé.
Ao abrir a porta o cheiro de podridão invadiu as narinas do grupo, que permanecia do lado de fora. Se fosse qualquer um sem nenhuma experiência estaria vomitando até as tripas naquele momento:
- Mas que cheiro! - Exclamou James, que mesmo sendo tão preparado sentia sua cabeça girar com aquele aroma mortal - Acreditem, estava pior antes de abrirem as janelas.
Assim como o exterior, o interior da casa estava, literalmente, de pernas para o ar. Móveis jogados e espalhados para todos os cantos, manchas de sangue seco presentes em todo lado, o corpo da vítima exposto no meio do que deveria ser a sala de estar e o pó contaminando o ar junto com aquele forte odor:
- Meu Deus, minha rinite vem como? - A menor comentou enquanto sacudia o ar com a mão, tentando ao menos se livrar daquelas pequenas partículas evidentes graças a luz das lanternas, que eram utilizadas pelos profissionais do laboratório presentes no local.
- Certo, certo - James deu risada daquela situação descontraída - A vítima se chamava William Jones. Ele já foi autuado por roubo e agressão grave. Segundo os vizinhos ele era bem solitário. Só ficava trancafiado em casa, quase nunca viam ele. Eu diria que está morto há umas três semanas, vamos saber mais quando o legista chegar. Tem uma faca de cozinha logo ali no chão, talvez seja a arma do crime.
- Sinal de invasão?
- Nada, tenente. O proprietário disse que a porta da frente estava tranca e as janelas fechadas. O assassino deve ter saído pela porta dos fundos. Ainda não sabemos nada sobre o android, os vizinhos afirmaram que ele tinha um e quando entramos não encontramos nada - respondeu o detetive - Se não se importam eu vou sair e tomar um ar, esse cheiro está insuportável. Qualquer coisa vou estar lá na frente.
- Valeu aí - a Collins acenou para James antes de o mesmo se retirar - Podemos começar então.
- Vai na frente - incentivou Adam de braços cruzados, apenas observando atentamente tudo ao seu redor.
Jade não perdeu tempo em se aproximar do corpo, engolindo a seco ao sentir de perto aquele cheiro de embrulhar o estômago.
O corpo da vítima apresentava inúmeras marcas de facadas em sua barriga e estômago. Suas roupas estavam inteiramente ensanguentadas, tendo manchado o chão em sua volta e escorrido de sua boca. Os olhos abertos, pálidos assim como sua pele que já estava ganhando um tom amarelado e esverdeado:
- Vinte e oito facadas - afirmou Ryan enquanto se ajoelhava ao seu lado - Falecido a mais de dezenove dias. Hemorragia interna - acrescentou após completar sua análise em questão de segundos, o que deixou a de fios castanhos surpresa.
- c*****o, que f**a! Acho que vou trocar de parceiro, mano!
- Dá pra fazer seu trabalho e parar de papo furado com essa coisa?!
- Foi m*l, Adam - coçou a nuca e logo se colocou de pé.
Blake não queria admitir, mas após começar a investigar todo o local não conseguiu entender como toda aquela merda havia acontecido. A culpa disso era do álcool óbvio e nesses casos deixava tudo nas mãos de sua parceira, a responsável por salvar o pouco da reputação que lhe restava. Odiava realmente admitir aquilo, até par si mesmo.
"Estou vivo"
"Salvação"
"Salvador"
Palavras e mais palavras eram encontradas, tendo sido escritas com caneta na parede. Divergente, era isso que aquele android era. Um ser diferente, diferentes de todos os outros da sua espécie.
"Medo"
"Dor"
"Angústia"
"Pavor"
Poderia uma máquina sentir todos aqueles sentimentos humanos? Como isso aconteceu? Sim, tudo aconteceu com aquele primeiro caso, mas e depois? Começou a se espalhar como um vírus.
Esses eram os pensamentos que alimentavam a mente de Jade. Não conseguia entender mesmo tendo ficado de cara algumas vezes com aqueles androids. Sentia um grande sentimento de frustração por não conseguir entender aquilo, algo que, na teoria, era para ser tão simples.
Ajoelhada de frente para o box imundo daquele banheiro, segurava, em suas mãos enluvadas, uma pequena estátua de madeira enquanto lia e relia repetidamente aquelas mesmas palavras escritas de maneira compulsiva:
- Detetive Collins? - A voz de Ryan a fez se afastar de seus pensamentos - Eu sei o que aconteceu aqui.
- Certo - ainda um pouco atordoada se pôs de pé, demorando alguns segundos a mais para sair do cômodo.
- Ei! Seu android tava colocando aquele sangue nojento da evidência na boca! - Blake dizia para a mais nova com uma expressão de nojo - Você disse que ficaria de olho nele!
- Hã?
- Tenente. Detetive. O android ainda está aqui dentro - Ryan interrompeu os dois - Não há nenhum sinal de fuga após ele ter atacado o dono em uma tentativa de se arrepender, ou seja, está escondido.
- E onde ele tá agora, cabeça de metal? - Questionou o grisalho cruzando os braços.
- Quando o android foi atingido por Jones com o taco foi danificado e perdeu Tírio.
- Tírio?
- Vocês chamam de "sangue azul". É o fluído que alimenta nossos biocomponentes. Ele evapora após algumas horas e fica invisível a olho nu.
- Mas aposto que consegue ver, né? - Indagou Adam.
- Correto.
Adam e Jade se encararam antes de seguirem os passou de Ryan, que em determinado momento parou de caminhar e olhou para cima, encarando a porta do sótão que estava fechada.
Com ajuda de uma cadeira conseguiu subir para investigar, enquanto a dupla permaneceu lá embaixo:
- Ryan! Tá tudo bem aí em cima?! - Chamou o tenente já que fazia algum tempo que não tinham notícias.
- Ele está aqui, tenente!
- p**a merda... Will! James! Venham aqui agora mesmo!
O Blake se apressou para buscar ajuda. Aquele seria o momento em que, talvez, todas aquelas perguntas seriam finalmente respondidas. Bom, era isso o que Jade imaginava.