Pré-visualização gratuita Prólogo
Epígrafe
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E sozinho o que se fez contente
Vinicius de Moraes — soneto de separação
Fuja... Fuja...
O vento soprava, como sussurrando para ela partir, mas ela não iria partir, estava determinada no seu caminho.
Lançou mais uma vez o olhar para a cidade coberta pela escuridão que, subtilmente, impedia que os dedos prateados da lua iluminassem as brechas.
Todos pareciam absortos dentro das suas casas, no calor dos braços dos seus amores, cada ruela estava vazia, exceto por alguns guardas noturnos, que dormiam pelos cantos dos muros da cidade.
Ergueu a lamparina, puxou a carta do bolso do casaco, passou o polegar pelo selo com a marca de uma flor e o abriu. Suspirou de excitação, e colocando o braço no largo aro da lamparina terminou de romper o selo e a leu, porém para sua decepção não havia nada além de um nome incomum, pronunciou em voz alta, depois olhou em volta pensando ter ouvido passos, mas não era nada, olhou de volta a carta, ela tornou-se areia fina e escorria por entre os seus dedos.
Ela virou-se num salto. Detrás do enorme salgueiro surgiu uma figura cercada por uma fumaça n***a. Ela deu um passo para trás. Ele a imitou.
― Oh! Não me olhe assim, eu sei que não sou belo, mas já fui um dia uma beleza incomparável ― disse assim que ela gritou derrubando a lamparina ao vê-lo ser banhado pela luz da lua ―, mas transformaram-me nisso, triste, não é?
Tinha profundos olhos brancos, dentes amarelos e pontiagudos naquela boca de lábios secos e rachados. Os seus ombros carregavam ossos para fora, estava completamente nu, mas a fumaça n***a dançava em torno de si como um véu cobrindo-lhe o corpo que mais parecia queimar em cinzas.
― N-não você não... ― tentou dizer, contudo, o medo tapou sua garganta, ele sorriu furando os cantos da boca com as presas. Maldita hora em que ela jogara fora todos os conselhos da sua mãe: de jamais sair ao anoitecer.
― Oh! Você tem razão... Eu jamais diria para você fugir, foi o inútil que me habita. Ele nunca cansa de tentar lutar contra mim. Esse i*****l fraco... Ah! ― O monstro bateu em sua própria testa com a palma da mão enorme, girou a cabeça de um lado ao outro antes de continuar:
Ele deu mais um passo, ela arrastou-se para longe, as lágrimas já caiam sem parar e os dentes batiam uns contra os outros.
― Desculpe, eu não posso — disse tocando-a com a mão de dedos finos e queimados, as unhas começaram a crescer dolorosamente lentas. O coração dela batia em uma música frenética, ele gostava disso, lambeu o próprio sangue que escorria dos seus lábios.
― Quero a sua vida. ― Agarrou-a pelo queixo e antes que ela começasse a gritar ele beijou-a, fazendo a sua n***a fumaça a cobrir enquanto a suas garras mergulhavam até arrancar o coração e o devorou.
No fim, quando uma lágrima solitária escorreu do seu olho embranquecido já não era mais um monstro. Pelo menos naquele momento.