Capítulo 01

2978 Palavras
O mundo estava coberto pelo silêncio. O mais opressor e, ao mesmo tempo, acolhedor inimigo, ele já devia ter se acostumado àquele silêncio, sua vida era assim: silenciosa e atormentada, muito embora o silêncio fosse apenas uma fachada, por dentro de si, havia um demónio se movendo. Houve um tempo em que ele quis se livrar daquele tormento, mas não mais, iria deixá-lo quieto, deixá-lo sugar até último alento, e por fim, a tão sonhada morte bateria na sua porta. Tocou no mármore gélido da janela, suspirou, olhou para o jardim lá em baixo, permanecia belo, embora o clima ficasse cada vez mais frio, as delicadas glicínias não suportariam muito. Viu de relance dois pássaros pousarem na cabeça da estátua do lado de fora da janela, eles se acariciavam e cantavam, como um cortejo discreto. “Até os animais tem emoções...” murmurou, em seguida levou a mão ao peito na tentativa de sentir um pulso ou dois, mas não havia nada, só o ir e vir da sua respiração. O barulho do sapato do servo interromperam os seus pensamentos. Ramon entrou no escritório, estava aflito como de costume. ― Diga logo, você não entrou sem bater só para me encarar com esses olhos de cão. ― Perdoe-me, vossa alteza, por que não seguimos para as terras sem lei? Há com certeza, nas terras sem lei, esperança. Não buscamos lá ainda. Não podemos desistir antes de procurar no mundo inteiro e... ― O príncipe pegou um peso de papel e o arremessou contra a porta, o criado calou-se. ― Ramon, chega. O melhor a se fazer é deixar que esse monstro me mate, já enviou a carta ao rei de Gaofeng? ― Não, ainda não. Perdoe-me, meu príncipe, mas esqueça essa loucura, porque entregar o seu reino na mão de um covarde como Alexander? Ou o filho dele, não é sensato. ― Quando eu fiz algo sensato? Não insista, envie a carta. ― Você vai desistir sem lutar? Deixará que Gomon o destrua? ― Cordial pousou a mão na testa, cansado. ― Sem lutar? Eu já lutei demais. Procurei a bruxa por quase doze anos, não quero mais, na verdade, não me importo, se eu pensar muito sobre isso a dor volta. Sabe que eu não posso sentir... ― Ramon o interrompeu ríspido: ― Mas você sente... Sente tanta coisa, mas se contém. Vou ao vilarejo entregar o bilhete. Seu rosto está pálido demais e a sua mão estava trêmula no chá com o general do norte. ― Não. ― Rosnou, mas o servo fingiu-se de s***o abrindo as gavetas. ― Não, Ramon. Eu sei que quer me ajudar, mas chega. ― Alteza, por favor, chame ele apenas algumas vezes até decidirmos sabiamente o que devemos fazer. E quem sabe Bertram a encontre. ― Uma leve tontura o fez se sentar na poltrona de couro preto. Suspirou massageando o peito e após longos minutos decidiu concordar diante do olhar suplicante de Ramon. E antes que ele pudesse mudar de ideia, o criado saltou para fora, carregando consigo o maldito bilhete. Sozinho fechou os olhos com força, se preparando mentalmente para presenciar a cena e sentir o caloroso coração dela em suas mãos trazendo-lhe de volta a força e a vida já debilitada por seu parasita. *** ― Não adianta... ― resmungou Ramon analisando o seu amo, estava pálido e com o nariz sangrando a cada cinco minutos. Havia se passado só dois dias e novamente se encontrava doente, a força do monstro era demais para ele. ― Como eu disse, não adianta mais, ele está forte, ou eu estou mais fraco. Mande a carta ao rei de Gaofeng, ou enviarei eu mesmo ― tornou a pedir exausto. ― Não! Claro que não. Encontraremos uma solução. Você ainda se lembra das palavras da bruxa? Vamos tentar lembrar ― perguntou Ramon com o coração aflito à procura de uma solução, mas em seu cérebro tudo parecia se diluir. ― Eu quero dar um fim a isso, Ramon. Se pudesse sentir a dor que esse desgraçado me causa, você mesmo tentaria aliviar o meu sofrimento. ― Respirando fundo o servo sentou-se antes de falar: ― Você não é um t**o, alteza, mas agora está a ser um. Só tente se lembrar das palavras que a bruxa disse antes de morrer. ― Não há como mudar a maldição sem uma bruxa, ele ia m***r-me assim que eu me transformasse. Mas... ― ele parou, piscou algumas vezes se lembrando do terrível dia. E então revelou o que ocultara por anos: ― A bruxa antes que fosse morta resmungou algumas palavras... Se eu suportasse a dor mais forte seria liberto do destino c***l. ― O que significa a dor mais forte? Se você suportar, o que vai acontecer? ― o jovem em silêncio fitou o teto, fazia tantos anos, ele não gostava de lembrar daquele dia. ―... Gomon quebrará as correntes que o prendem em torno do meu coração e eu serei liberto, foi o que a bruxa disse. ― Por que nunca me contou nada disso? Vossa alteza, eu que estive sempre do seu lado. ― Não há necessidade de encher-te de esperança. Não acredite nisso ― finalizou se levantando e seguindo até o divã próximo a uma estante de livros. ― Agora deixe-me só, estou cansado. ― Fazendo uma mesura, Ramon saiu, mas não se deu por vencido. Esperança já havia brotado no seu coração como uma bela flor de lótus na lama. *** ― Dor mais forte... dor mais forte... ― Murmurava Ramon lendo um dos muitos livros da biblioteca particular dos reis, a que guardava os segredos da magia dos bruxos. Encostou-se a uma das prateleiras antigas, enxugou o suor com as costas da mão, o lugar estava abafado e tinha um forte cheiro de mofo, poeira e fumaça das velas. Algo passou por seus pés, um rato. O susto o fez se lançar para trás, batendo com força na estante que após um estalo se abriu revelando um caminho escuro e cheio de teias de aranha. Ramon expirou pela poeira espalhada no ar e pegando o castiçal entrou na sala secreta, era uma espécie de sala de descanso. Havia um divã mofado, uma mesa com uma pena e carimbos, vários papéis espalhados e no centro um pequeno livro de couro marrom. Ramon colocou sobre a mesa o castiçal e remexeu a pilha empoeirada de papéis, cartas escritas por Mercúrio para uma mulher chamada Margareth. Ramon franziu a testa encarando a assinatura, jamais imaginaria que Mercúrio trocava cartas com alguém. Ramon deixou de lado as cartas e pegou o caderno. Era um diário, mesmo que os anos tivessem danificado a sua memória, e nem sequer o rosto dela se lembrasse, a sua letra ainda era inconfundível, sorriu circulando com o dedo indicador as letras da única mulher que amou. Era o diário da rainha Anamélia, a sua amada Anamélia. Após enxugar as lágrimas, pegou o caderno, as cartas e o castiçal e saiu com a certeza de que sabia qual era a dor mais forte. *** No jantar, eram servidos em silêncio. Assim que a última criada fechou a porta, Ramon esticou-se na cadeira, colocou os papéis sobre a mesa antes de falar com cautela: ― Meu príncipe, eu tenho em mãos a lista das pretendentes. ― Dixon que estava prestes a colocar na boca uma colher cheia de feijão-vermelho, parou a mão no meio do caminho e o encarou, sentado à mesa como um m****o da família real. ― Não compreendo ― Ramon coçou a garganta e respirou fundo antes de se levantar e entregar a lista com sete princesas dos reinos aliados para propor em casamento. O príncipe apertou a mandíbula. ― Casamento? Por que eu devia fazer isso? ― Bem, devemos isso ao povo e aos ministros, como sabe o rei foi dado como desaparecido pelo exército, com uma esposa, podemos adiantar a coroação e deter as buscas. ― explicou ― Por que apresar a minha coroação? Eu não sucederei, quem será rei é Alexyan, Ramon. ― Mesmo assim, você deve... Dixon jogou a colher com força no prato, se levantou batendo as mãos na mesa. ― Eu devo? Ramon, eu não devo absolutamente nada a esse povo. Eu já fiz muito por eles. Não vou me arriscar a ser descoberto por uma princesinha qualquer. ― Por favor... ― pediu se colocando de joelhos, devia ser sincero. ― Ela pode ser a sua cura. ― Cura? ― repetiu sorrindo com ironia, passou as mãos pelo cabelo, tentando controlar a vontade de enfiar uma faca na garganta de Ramon. Mas ele era um servo útil, talvez o mais útil. ― E quem disse que eu quero a cura? Não crie esperanças, foi o que eu lhe pedi, apenas isso. Deixe de se intrometer na minha vida, você não é nada para mim, é um criado, como todos os outros aqui. ― Dixon! ― Gritou, tentando acalmá-lo, mas o que recebeu foi um olhar feroz e uma bofetada. ― Não me chame assim. Nunca! ― gritou, a coisa que mais odiava era ser chamado por aquele nome. Ramon sabia. ― Viu? Cada dia que passa o senhor está mais fraco e agressivo. Eu sei que está sentindo dor agora. Eu conheço-o desde que nasceu. Por favor... Se case e conquiste a sua esposa. ― Você enlouqueceu. Está completamente louco. ― Não! Estou mais lúcido do que nunca. O senhor não precisa amá-la... Se ela se apaixonar por você lhe entregará o coração por amor. O senhor precisa que ela lhe dê o seu coração. ― Chega, não quero mais ouvir nada. ― disse o príncipe saindo da sala de jantar a passos rápidos. O monstro no seu peito começara a contorcer-se. O príncipe Cordial como era conhecido, era um homem perverso, frio e de poucas palavras. Ao longo dos anos as pessoas começaram a inventar histórias. Ele duvidava de que alguma princesa, mesmo obrigada, gostaria de se casar com o homem das histórias. O garoto que aos ouvidos do povo havia bradado na batalha de nove anos atrás pelas ilhas de Olívis: ― Chamem-me Príncipe Cordial, pois agora eu sou o dono das suas terras, e a comida de todos os dias é graças a minha força. Portanto, vocês me devem obediência e lealdade, caso contrário, ficarei grato em alimentar os meus cães com as suas crianças. Quando, na verdade, ele havia dito apenas que a ilha pertencia ao reino de Darkeng. Quando descobriu se sentiu grato, pois seu segredo estaria seguro se ficasse distante das pessoas e se elas o temessem, queria que elas o temessem. Afastado, ele podia se tornar um homem sem sentimentos e, assim não sofrer tanto quando os tais sentimentos penetravam como ratos no seu coração e mente. Para dar legitimidade aos relatos, começou a punir em praça pública qualquer invasor e criminoso em Darkeng. Era h******l como um garoto de apenas catorze anos conseguia degolar um homem adulto com apenas uma tentativa. Ao longo dos anos, afastado de todos, sendo treinado como um animal por Bartram foi perdendo o sentimento que mais o machucava: a empatia. Dixon quase não saia e quando o fazia, ficava escondido na luxuosa carruagem de ouro que mandara construir, o povo corria para longe só de ouvir o sino: eles sabiam que dentro daquela bela carruagem estava o homem que não tinha compaixão, qualquer olhar indevido, erro ou palavras ambíguas eles teriam que pagar com as suas cabeças. O príncipe era um homem solitário, passeando por sua cidade “fantasma”. Todavia, isso não o afetava, havia sido treinado para controlar tudo, e todas as suas emoções. Não obstante, quando a escuridão da noite chegava, e ele ia dormir, os sonhos o atacavam com imagens medonhas, com gritos e gemidos enquanto se remexia preso aos pesadelos Gomon surgia neles gritando e revirando as suas entranhas: ― Por que você não morre?... Por que não posso m***r você? Eu odeio você, eu odeio você... Morra, maldito! ― e no fim despertava com as mãos transformadas em garras envolvidas ao próprio pescoço sufocando-o com tanta força que chegava muitas vezes a desmaiar. Sentou-se na cama tomando um gole de água, talvez se tentasse... Não, ele não podia tentar, não tinha como alguém amá-lo. E se após se casar com uma desconhecida, ela descobrisse o que acontecia, com certeza tentaria matá-lo, ou revelar ao povo, e ele não gostava nem de imaginar o que o povo faria com ele. Com uma tosse seca ele deixou seus pensamentos de lado e deitou-se, vencido pelo cansaço. *** ― Seu chá, alteza. ― Disse a serva entregando uma xícara ao príncipe que balançou a cabeça assentindo e o levou a boca. A pressa o fez queimar a língua... Um sinal de mau presságio, antes que desse outro gole, Ramon entrou sem bater, os olhos arregalados e as feições severas contorcidas numa careta de espanto. ― Augustos Hugo Allen está aqui. ― Dixon suspirou, estava certo, era um mau presságio. ― Saia. ― disse abanando a mão para a serva. ― Hugo está aqui? Com o exército? O que ele quer? ― Não... É melhor que veja por si mesmo. Dixon estalou a língua dormente e seguiu o criado até a sala do trono. O poderoso rei Hugo, estava ajoelhado, as roupas em trapos; o rosto marcado por cortes e hematomas arroxeados. Dixon assobiou. ― O que temos aqui... Vejo que os meus meninos me trouxeram um presente. ― disse ele batendo nas costas de um dos guardas próximo ao rei ajoelhado. ― Ele entrou no reino disfarçado de comerciante de peles. Não encontramos guardas, nem criados seguindo-o. ― Relatou Ramon lendo o relatório. ― Pelos deuses! De peles? Mas ainda nem estamos no inverno, pensei que fosse mais esperto Hugo. ― Vossa alteza... ― resmungou Hugo, a voz como se tivesse engolido areia. ― Diga-me o que quer... Só não deseje sair vivo hoje. ― Ajude-me... ― Dixon se esticou colocando as pernas cruzadas no braço do trono, a indiferença brilhando nos olhos verdes. ― Ajudar? Acredito que você se esqueceu, somos inimigos. ― Sim, eu sei que durante anos tivemos certos desentendimentos, contudo, imploro que me ajude. ― O que você quer? ― Case-se com a minha filha. Assim que as palavras foram ditas, Dixon se levantou pasmo, e quase levava a mão ao peito para amenizar a forte dor que sentiu pelo choque. Ramon deu um passo à frente, encarando os dois simultaneamente. Era a resposta dos deuses. Não podia ser coincidência. ― O quê? ― Cordial rugiu ― Vossa alteza, minha filha, Elisie herdou algo dos seus antepassados, desde pequena ela consegue encantar bruxos; eles enlouquecem por ela como se tivessem encontrado a sua alma gêmea, ela foi quase raptada por um bruxo recentemente em um dos seus passeios pelo bosque do nosso reino. E após tal incidente, ele tentou invadir o castelo para... levar Elisie. Assim como eu, vossa alteza sabe que os bruxos quando encontram a sua alma gêmea tentam de tudo para possuí-la. Ele vai tentar e tentar até finalmente levá-la. ― Entregue-a a ele. Problema resolvido. ―D... Alteza, deveríamos aceitar a oferta. ― Cordial lançou um olhar feroz ao criado, de modo a calá-lo, não adiantou. ― E redigir um documento com as nossas regras. Assim ambos sairiam ganhando. O príncipe se permitiu sorrir sem mostrar os dentes, como sempre, Ramon se mostrava sábio e astuto. Ambos teriam o que queriam. Ele teria a oportunidade de provar que o amor não cura e Ramon teria esperanças. ― Eu aceito. ― disse o príncipe, Hugo o encarou, lampejos de medo passaram por seus olhos, com receio de que talvez o Cordial não o estivesse ajudando, e sim, construindo mais formas de se vingar pela morte de seus guerreiros, e isso fez o poderoso rei estremecer. ―A-aceita? ― Claro, meu amigo. ― disse por fim, lançando um olhar gélido e um aceno de mão para que os guardas levassem o invasor para fora. Assim que o príncipe ficou sozinho com Ramon na sala do trono, pegou a espada dos Leican que sempre ficava pendurada na parede atrás do trono n***o, examinou seu peso e dissipou o silêncio: ― Ramon, eu detesto admitir, mas a ideia do acordo foi interessante. ― Ramon sorriu agradecido, o Cordial continuou enquanto fazia movimentos de luta com a espada: ― No entanto, acha mesmo que um simples papel manterá a princesinha em silêncio? Hugo e eu somos inimigos, acha mesmo que um simples papel fará com que sigam nossas regras? ― Alteza, eu sei muito bem com quem estamos lidando, não se preocupe. ― Em um movimento ágil o príncipe lançou a espada a centímetros do pescoço de Ramon que nem sequer piscou. ― Então explique-me o porquê entre os seis reinos de Vrisan, três deles são aliados de Margoth, Hugo arrastou-se exatamente para Darkeng? O reino em que mais brigou durante anos? Hein? Querem a ilha de volta? Ou planejam vingança pela vergonhosa derrota na guerra? ― Ramon afastou a espada com o dedo indicador e afastou-se seguindo até a janela, o olhar astuto pousou nos guardas conduzindo a certa distância o rei desprotegido, abriu um pequeno sorriso e disse convicto: ― É certo que Hugo é ardiloso, no entanto, o homem que vimos hoje não passava de um pai desesperado, não um rei impassível. ― Dixon ergueu uma sobrancelha, confusão nadando nas belas feições, Ramon continuou sem olhar para o jovem: ― Ele só quer proteger a menina. De todos os outros reinos, Darkeng é o único que nenhum louco na sua sã consciência pensaria em entrar. E ele precisa disso, de um lugar muito bem protegido para sua filha permanecer segura. ― Se juntando a Ramon na janela, observou o ponto preto entre o verde e o marrom da estrada se afastar até sumir entre as árvores.
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