Eram exatamente oito horas da manhã quando ela chegou, com os olhos vermelhos; as feições abatidas como de alguém sentenciado à morte. Elisie colocou a cabeça para fora da carruagem e se esqueceu por breves minutos o que lhe aguardava quando fitou o imenso jardim banhado pela beleza ainda primaveril e bem no meio de toda beleza de arbustos e árvores de flores roxas um castelo, um monumento de pedra escura, enorme, e cheio de torres pontudas e fascinantes.
Ela admirou-o; os guardas o protegiam como estátuas rígidas segurando cada um sua alabarda, outros treinavam brutalmente com lanças afiadas exibindo os seus corpos musculosos e cobertos de suor e sangue. Apesar de a vista encher-lhe os olhos, o coração permanecia vazio e triste, o seu pai saíra em viagem e quando retornou estava ferido, imundo e carregando um olhar culpado, e ela fora tola ao se preocupar com ele, não devia se importar, a culpa que ele sentia era por quebrar a promessa que lhe fizera, por isso não devia perdoá-lo, ele sentenciou-a a um casamento sem amor.
No dia que lhe contou, ela chorou, gritou e até mesmo lhe estapeou o rosto, queria dizer que já tinha alguém com quem gostaria de se casar, alguém que era importante para ela, no entanto, essas palavras não saíram, e com amargura o obedeceu, partiu para Darkeng quando o sol ainda nascia no horizonte, não o abraçou quando o mesmo fez questão de abraçá-la, apenas o olhou com ódio e deu as costas seguindo para sua morte.
A carruagem parou na enorme porta de madeira. Assim que ela desceu com a ajuda de um guarda, foi cumprimentada por um velho de cabelos grisalhos e sobrancelhas grossas com as pontas erguidas, Elisie se contorceu arrepiada. Ele sorriu, fazendo rugas se formarem ao redor dos olhos e testa. Tinha feições duras, por um momento desejou saber o que tanto o ferira para parecer tão sofrido o seu sorriso e tão c***l o seu olhar, mas a curiosidade deu lugar ao receio quando ele lhe estendeu a mão sem se curvar em reverência, e ela educadamente a segurou, pedindo silenciosamente para todos os deuses de Vrisan que aquele não fosse seu príncipe.
― Bem-vinda, vossa alteza. Sou Ramon Kant, conselheiro e professor do príncipe regente.
― Graças aos deuses. ― Pensou em voz alta, e corou envergonhada em seguida pela incompreensão do criado, sorriu e pediu que ele a levasse para seus aposentos.
***
― Como ela é? ― Perguntou Dixon distraído plantando num jarro algumas frésias amarelas, vermelhas e brancas. Ramon bufou encostando-se à janela da estufa.
― Linda, um tanto estranha e distraída, mas é uma jovem muito linda. Parece-me que será fácil seduzi-la.
― Distraída no sentido de conformada? Ou só desinteressada?
― Não sei... Digamos que nenhum dos dois... ― Dixon resmungou algo antes de arrastar um saco de terra para perto dos jarros vazios.
Não gostava de pensar sobre essa estranha na sua casa, perto demais para descobrir os seus segredos e revelá-los. Estava a um passo de desistir e mandá-la embora. Ramon notou a ruga que se formou na testa do amo e se aproximou das flores recém plantadas arrancando uma, para irritá-lo.
― Vamos conseguir, não tenha dúvida. Ela será obrigada a assinar um acordo de silêncio no dia do casamento, caso ela o quebre, irmão mais novo será executado e a mãe vendida como escrava, já que era uma plebeia. ― Dixon gargalhou sem humor.
― Realmente, os pais são desprezíveis. Como Hugo concordou com isso?
― Ele confia nessa menina, se ele confia, então não precisamos nos preocupar. Agora largue isso e vá tomar um banho, está pálido e vi você limpando o sangue do seu nariz duas vezes.
― Não entendo como não me livrei de você ainda. Penso que não existe criado mais abusado. ― Reclamou limpando o suor com as costas da mão, e obedeceu ao criado, estava realmente exausto.
***
Quando a dama de companhia estendeu-lhe a xícara de chá, Elisie propositalmente topou a mão a derrubando no seu belo vestido rosa pêssego, não é que ela não gostasse do vestido, o fato era que desejava sair um pouco daquele quarto escuro, conhecer aquele lugar sinistro e, ao mesmo tempo belo, a serva desesperada tentou enxugar com as mãos, Elisie calmamente agarrou os seus pulsos e disse tranquila:
― Acalme-se, isso é somente um vestido, tenho vários, um não fará diferença.
― Sinto muito Alteza, eu fui desatenta. ― repetiu pela quinta vez, a princesa tentou não revirar os olhos, sentia saudade de Tyane, e desejou que a amiga viesse nessa semana com os seus outros pertences. Abrindo um sorriso tranquilo Elisie se levantou, sentindo o líquido quente chegando até as suas roupas íntimas, não era nela que o chá devia cair, e sim na serva, frustrada decidiu ser direta:
― Lian tire a roupa. ―Lian lançou um olhar perplexo para Elisie e se ajoelhou pedindo piedade, Elisie suspirou apertando o nariz com os dedos. ― Eu não vou executar-te, apenas quero trocar de roupa com você, para poder sair do quarto. ― Lian envergonhada levantou-se, limpou as lágrimas e disse em um sussurro:
― Mas alteza, a senhorita não é proibida de sair do quarto.
― Sei que não, contudo toda vez que eu ponho os pés para fora do quarto tenho a sensação de que sou observada... eu sei que em todo canto tem guardas vigiando, mas é diferente, é como se eles me estivessem a vigiar como se eu fosse uma prisioneira prestes a fugir do seu c*******o. Sinto os olhos me seguindo. ― observando o olhar triste da princesa a serva concordou, Elisie foi transformada em uma dama de companhia, usando os simples vestidos sem graça do reino, e Lian tornou-se uma bela princesa. Elisie deixou à serva se olhando encantada no espelho e saiu do quarto.
Andou por alguns corredores, se perdeu e entrou em lugares inóspitos como um quarto de banho com várias velas aromáticas com um forte cheiro de acácia, uma sala de música com uma harpa empoeirada, descobriu um quarto de espelhos com uma cama redonda no centro com correntes em volta e cabeças de animais enfileirados em uma mesa cumprida encostada a parede, era assustador, não ousou ir além da porta. O castelo de Darkeng era mais tranquilo do que o do seu pai, quase ninguém nos corredores, apenas os guardas que se mantinham imperturbáveis e como ela não parecia à princesa, eles sequer se incomodavam em lançar um segundo olhar para observá-la.
Por fim, soltando uma lufada de ar olhou adiante se deparando com crisântemos azuis empilhados em uma pequena estufa. Havia também um caminho de pedras e ao redor como cercas vivas, roseiras de um vermelho quase n***o. Ela seguiu por ele.
Adiante debaixo de um telhado coberto por rosas, uma mesa de chá, Elisie se sentou esticando os pés doloridos e relaxou exalando o perfume forte, mas agradável. Ao lado direito dava para ver um campo bem distante onde às flores terminavam e dois cães brincavam, e um bode andava tranquilamente com a sua cabeça abaixada, e do lado esquerdo uma macieira, um muro baixo coberto de uma planta verde e outra estufa ainda em construção, faltava-lhe as portas e algumas janelas estavam quebradas.
Seria adorável ter um convidado para tomar chá ali e conversar sobre coisas interessantes, não só ouvir sobre política e poder, os pássaros fizeram dos galhos da macieira sua morada e cantavam para a tarde agradável. Ela fechou os olhos, maravilhada. Como nunca pediu ao seu pai para construir um jardim para ela? Talvez pelo simples fato de em Margoth a vista do oceano fosse deslumbrante demais para cogitar na ideia de um jardim.
Foi dispersa de sua meditação por algo caindo atrás do murinho. Seguiu cautelosa até o outro lado, de costas para ela estava um homem jovem, talvez o jardineiro. Usava uma camisa branca suja com as mangas erguidas até os cotovelos exibindo algumas cicatrizes finas nos braços. Ele estava agachado plantando com invejável delicadeza uma pequena muda. Elisie se aproximou silenciosa, observando-o trabalhar atento, exalando uma pureza quase mística, ela sorriu analisando ele passar as costas da mão para afastar os cabelos dos olhos pela quinta vez, mas como das outras vezes as mechas tornaram a cair e atrapalhá-lo. Ela tirou a fita que prendia a pequena trança e por trás tocou nos cabelos dele que se assustou pelo toque.
Apertou a mão ao redor da pá, os ombros rígidos como de um animal selvagem prestes a fugir do seu raptor.
― Vou amarrá-lo para não sujar os seus cabelos com a terra. ― explicou juntando as mechas macias. A sua voz saiu calma a fim de tranquiliza-lo.
Por fim quando se afastou ele virou-se fitando-a com incríveis olhos verdes, entreabriu a boca, ela pensou que ouviria um obrigado, contudo ele apenas fez um som com a boca e balançou a cabeça antes de se virar novamente.
― Seu primeiro dia de trabalho? ― perguntou ele quase rudemente.
―...Mais ou menos. Por quê?
― Os servos não podem vir aqui sem serem chamados.
― Oh! Pelo príncipe? ― os ombros dele ficaram rígidos novamente, virou para olhá-la, ela falava distraída tocando as flores em cima da mesa de madeira. Os cabelos castanhos e lisos na altura da cintura era a única coisa que a diferenciava das outras servas, elas sempre prendiam os cabelos em coques bem feitos e tinham um olhar aborrecido. Dixon abaixou o olhar para as mãos finas e delicadas, depois para o rosto. Era jovem e bem cuidada, devia ser filha de algum nobre falido.
― Sim... Ele não gosta que outras pessoas venham aqui. ― Disse ele ocultando a sua identidade. Não seria agradável se ela soubesse e começasse a chorar e implorar por perdão. E também Gomon se revirava dentro dele de uma forma estranha, não estava causando dor, só era diferente.
― Você já o viu? Ele é realmente como nas histórias?
― Histórias?
― Sim, que ele é um homem h******l, manco e com cem concubinas, no entanto, eu acredito que a parte das concubinas é mentira, não vi nenhuma ou ele as esconde em algum canto desse castelo.
― Manco? Não, o povo inventa cada coisa. ― Elisie concordou e abaixou-se de frente para ele. Os olhos encontraram-se por breves segundos, ela continuou:
― O senhor plantou todas essas flores?― ele assentiu ― Sozinho?
― Sim, eu... quer dizer o príncipe odeia que outros toquem nas suas plantas. O que acha delas?
― São lindas, tem algumas que eu nunca vi. Eu gosto muito de crisântemos e você? Tem alguma favorita? ― Dixon suspirou, encarou o seu extenso jardim. E ao redor de uma macieira, viu algumas ervilhas-de-cheiro. Delicadas e pequeninas. E uma lembrança perdida surgiu enevoada diante dos seus olhos:
Ela abraçava o filho pequeno enquanto rolavam pelo gramado gargalhando. Ela tocava no seu cabelo loiro, tão diferente do dela que era ruivo como o pôr do sol de uma tarde de verão.
― Mamãe, quando eu crescer vou transformar esse gramado vazio num jardim, um jardim lindo para a senhora.
― Meu querido, o seu pai não gosta de flores...
― Mas a senhora gosta, e quando eu for rei, farei o que a senhora quiser. ― ela sorriu tristemente, e bem perto deles havia algumas ervilhas-de-cheiro lilás, a sua mãe virou-se arrancando uma.
― Sabe o que essa flor significa?― ele negou com a cabeça. ― significa despedida, eu só desejo que nunca precise despedir-me de você. Que vivamos felizes por muitos anos. Mas se eu for algum dia e deixá-lo só, olhe para elas quando estiver triste, e eu sentirei de onde eu estiver e lhe mandarei o meu amor por elas.
Dixon colocou a mão no peito, apertando para conter a dor, e se virando para as flores disse em um sussurro:
― Ervilhas-de-cheiro.
Ao longe, parada na porta Elisie viu Lian procurando-a. Dando um tapinha no ombro de Dixon, ela despediu-se e correu para longe antes que a amiga ousasse se aventurar na beleza proibida daquele lugar.
― Vossa alteza
Dixon deu um pulo ao ouvir Ramon, ele ainda segurava o ombro que ela tocara e encarava o caminho pelo qual ela havia sumido. Gomon se movia enlouquecido, talvez pelo formigamento que ela deixara ao seu toque.
― Vossa alteza, está se sentindo bem? ― ele assentiu encarando o servo como se encarasse um fantasma, Ramon aproximou-se, enrugou a testa analisando o rosto do príncipe, tocou a sua bochecha, estava fria e pálida como de costume; tocou na mecha presa em uma fita. ― O que é isso? ―Dixon a puxou bruscamente e a enfiou no bolso da calça.
― Nada, eu achei caída e o usei para prender o meu cabelo. ― mentiu, olhando o caminho de pedra, cerrou o maxilar.
***
Naquela noite Dixon caiu no escritório, às garras negras de Gomon oscilavam. Em um segundo ele via as suas mãos, no outro as garras do monstro.
Sangue gotejou no tapete, ele queria gritar por Ramon, mas suas cordas vocais não estavam mais sobre o seu comando. Gomon resmungou com uma voz mais humana do que de costume:
― L..Laur...― não conseguiu completar, os dois agonizavam de dor, até que num esforço inútil de voltar ao comando do seu próprio corpo, Dixon desmaiou, logo em seguida Gomon voltou para suas correntes.