Sendo pai

1497 Palavras
Barden estava deitado sobre a maca, imóvel, como se o incômodo da agulha que riscava sua pele queimada fosse irrelevante diante da dor que já havia suportado no passado, estavam em um estúdio de tatuagem... O tatuador , completamente focado em cobrir parte das cicatrizes antigas com símbolos do grupo ao qual Barden comandava, era a história de um homem que havia sobrevivido ao fogo. Enquanto isso, Citlali corria descalça pelo chão de madeira, os cabelos presos de qualquer jeito por ele mesmo, mais cedo, antes de saírem. Tinha tampinhas coloridas de potes de tinta pelo chão, logo, ela estava inventando castelos entre as caixas de materiais e cantarolando uma melodia que Barden jamais ouvira antes, mas que trazia em sua simplicidade algo que aquecia o coração dele— ele gostava daquilo, da voz dela, da espontaneidade com que o tinha aceitado como pai, e da forma como, vez ou outra, lançava olhares cúmplices na sua direção, como se soubesse que ele estava ali, firme, presente, Barden achava que tinah sobrevivido ao fogo e a tortura, por ela, tinha sido queimado vivo, perdido todas as unhas dos pés e mãos.. Agora, a tatuagem parecia cócegas.. e a menina nem mesmo vacilava com o som do aparelho, tinha se tornado mais forte. Apesar de tudo o que haviam vivido no deserto — e que não era pouco — Citlali era feliz. No entanto, ele sabia que o tempo da calmaria não duraria para sempre: em breve, ela precisaria ir para a escola, ou, ao menos, ter uma professora particular, e só de imaginar o embate que seria convencê-la, sentia o peso da tarefa. A menina tinha espírito, vontade firme, e expressava descontentamento com clareza — uma herança direta do próprio Barden, que reconhecia nela um pedaço vivo de sua própria natureza. De tempos em tempos, ele movia os olhos , acompanhando cada movimento da filha. Sempre sabia onde ela estava, o que fazia, com quem falava — sempre . Era assim que a protegia. Aquela superp.oteção não era exagero, era necessidade. Citlali quase o viu morrer, ouviu as ordens que davam para que ele a viole.ntasse, que a destruísse. Ela era pequena, mas ele sabia que aquilo ficara impresso de alguma forma. Era por isso que ele a queria perto, sempre visível, sempre ao alcance, mesmo em um momento como aquele.. __ Na cabeça, sigo o mesmo padrão, senhor? __ O tatuador perguntou.. ___ Sim, sim, o mesmo padrão.. O médico havia sugerido cirurgias plásticas, apontando a possibilidade de suavizar as marcas mais profundas, reconstruir áreas da epele afetadas pelo fogo. Barden, no entanto, recusou sem hesitar. Nunca se importou com aparência, nunca quis fingir que as cicatrizes não existiam. Cirurgias não reconstruiriam o que se perdeu — e ele não queria apagar aquilo. Cada marca contava uma história real, dolorosa, mas vitoriosa. Ele estava vivo, e isso bastava. Se havia alguma vaidade, ela se manifestava apenas na forma de resistência: as tatuagens não eram decoração, eram armadura. E, além disso, nunca tinha sido o tipo de homem que as mulheres chamavam de bonito — nem queria ser. Forte e alto, isso era o suficiente; o resto, sinceramente, não fazia diferença. Três horas depois, o processo foi encerrado. O braço e parte do ombro estavam cobertos por película plástica, e até a cabeça, onde o couro cabeludo havia sido marcado, foi envolvida cuidadosamente. Barden colocou um boné por cima e se levantou, pegando a filha no colo.. — Estou com fome — disse ela, enroscando os braços em seu pescoço. — Eu sei. Tem bolo e suco na caixa térmica. Vai comendo enquanto eu dirijo — respondeu ele, acomodando-a no carro. — Podemos ir no parque? — perguntou, sonolenta. — Podemos, Citlali, mas só na madrugada. Papai acorda você — prometeu. No carro, a menina comeu com vontade e adormeceu assim que o estômago se satisfez. O veículo que um dia fora impecável, agora estava manchado de farelos de bolo e respingos de suco, mas aquilo não incomodava Barden. Ao contrário, ele achava reconfortante. Era sinal de que havia vida ali dentro. em casa carregou a filha no colo até o quarto. A acordou... __ Precisa ir ao banheiro? __ Não papai.. não.. A deitou na cama, limpando suas mãos e pés com lenços umedecidos.. Foi para a sala, serviu-se de um copo de uísque e .m.al teve tempo de se acomodar quando Ikal apareceu. — Tem uma moça no portão. Diz que veio da parte dos Cazagrande. Cazagrande era o sobrenome de um aliado, então Barden assentiu com a cabeça. — Pode mandar entrar, Ikal. A mulher entrou minutos depois. Desde que fora queimado, Barden não se deitava com mulher nenhuma. Podia levá-la para o escritório, com a babá eletrônica de Citlali ligada, e deixar acontecer. Mas aquela, mesmo vestida com cuidado e exalando um perfume agradável, não despertou nada nele. Nenhuma vontade, nada, era como se fogo tivesse apagado que ele era homem que sentia deseos. Ela sorriu, tentando agradar: — O que o senhor quer que eu faça? — De joelhos na minha frente — respondeu ele, com frieza, mais por hábito do que desejo. Mas no instante em que ela se ajoelhou, Barden pensou na filha. Ela poderia acordar, descer as escadas, ver algo que não deveria. O pensamento bastou para que ele mudasse de ideia. — Pegue um copo de bebida. Beba. Depois sente. A mulher obedeceu, sorvendo o uísque que ele ofereceu, e então, Barden puxou um jogo de damas, colocou no meio da mesa e começou a organizar as peças. Começaram a jogar. — O senhor é impotente? — perguntou ela, como quem não resistia ao silêncio. Barden ergueu os olhos. — Desculpe... desculpe — gaguejou ela, percebendo a ousadia. — Eu não sou. Só não estou afim. É simples assim, não gostei de você. __ Sou f£ia? __ Não.. mas pode ir embora.. não estou interessado. — Se sair agora, não recebo o que senhor Cazagrande me prometeu, de acordo com ele, o senhor anda muito tenso.. — rebateu ela, honesta. Barden tirou algumas notas do bolso e deixou sobre a mesa. — Pronto. Pode ir e não volte, mesmo que o seu chefe diga que sim. Hoje fui bom. Não vou ser duas vezes. A mulher recolheu o dinheiro, agradeceu e foi embora. Barden terminou sua bebida devagar, enquanto ouvia o som dos passos dela desaparecendo do lado de fora. Terminou sua bebida e se deitou no sofá. Não dormiu. Nada. Ficou ali até as quatro da manhã, acordado. Depois, fez uma caneca de achocolatado para Citlali e foi acordá-la. Esperou a menina usar o banheiro e saíram para o parque. Um sentinela os viu passar: — Tudo bem, senhor? — Tudo. Vamos ao parque. — A essa hora? — O parque não fecha. É um gramado aberto. Foram de carro. Assim que pararam, Citlali desceu e correu em direção ao balanço. Sempre fazia isso — bastava o carro parar, ela já ia para o balanço.. Ele a levava de madrugada de propósito: assim não havia ninguém. Algumas crianças se assustavam com as queimaduras no couro cabeludo dele. Quando não se assustavam, queriam tocar, perguntar... E à noite, não havia isso. Era só ele, a filha e os brinquedos. O parque era simples, um daqueles mantidos pela gestão pública, mas bem cuidado. Brinquedos seguros, iluminação suficiente. Barden sempre permanecia por perto, observando. Deixou a menina brincar por duas horas, depois voltaram para casa. A menina foi colocada embaixo do chuveiro. Lavou os cabelos. Ele ainda tinha não sabia como cuidar do cabelo.. — Citlali, vamos fazer um corte no seu cabelo? A menina o olhou e balançou a cabeça: — Vai ficar triste se cortar? — Não, papai. Corta no pescoço. O cabelo estava quase na cintura. Ele foi buscar a tesoura. Citlali ficou de costas, parada, para ele cortar. — Quando cortaram a língua do papai, doeu. Ainda dói? — Doeu, mas já passou. Papai está bem. Não precisa lembrar. Ela virou-se e olhou para ele: — Foi culpa minha? — Não. Não foi sua culpa. Eu ja falei mentiras para você? — Não , não.. — Mas não pense que foi culpa sua. Apenas esquece. A menina fez um aceno ..Depois, Barden cortou o cabelo dela. Pegou os fios caídos e colocou dentro de um saquinho plástico. Iria guardar. Conseguiu passar o pente com mais facilidade agora que o cabelo estava na altura do pescoço. Desembaraçar ficou menos doloroso. — Quando você estiver maior e conseguir cuidar sozinha, pode deixar crescer. Papai não leva muito jeito com isso… A menina sorriu: — Eu sei. Mas eu gosto do senhor mesmo assim. Ele beijou o topo da cabeça dela, depois a bochecha, e a enrolou na toalha. Seguiram juntos para tomar café. Sabia que não era o melhor pai do mundo. Mas estava tentando, teve que aprender a ser pai no calor do deserto e com o fogo queimando sua pele, a paternidade dele foi forjada nas chamas.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR