Beatrice
O homem que me forçou a entrar em sua vida como se eu fosse uma peça num tabuleiro... agora se revela ainda mais enigmático. A imagem de Valentino — sempre tão no controle, tão frio, tão meticuloso — começa a se fragmentar. Há rachaduras onde antes só havia pedra.
Ele tem uma irmã, e ela está viva. Protegida. Guardada como um segredo sagrado.
Mas de quem?
Do mundo ou de si mesmo?
Estou limpando meu quarto, enquanto limpo, tenho tempo para processar tudo o que descobrir sobre Valentino e sua irmã.
— Senhora, não precisa fazer isso — diz Tara.
— Preciso fazer algo para me sentir útil, nenhuma palavra para o Valentino.
— Certo — Tara concorda. — Bem, trago seu jantar aqui mais tarde.
— Obrigado!
Com um aceno, Tara se foi e eu fiquei sozinha novamente. Arthuro e Ben aprenderam rapidamente que eu queria fazer isso sozinha e passaram a maior parte do tempo do lado de fora da porta, me protegendo de qualquer um que quisesse me perturbar.
Limpei todas as cômodas, removi todos os assentos porque não são do meu gosto e recoloquei todos os livros nas prateleiras para serem limpos e trazidos de volta mais tarde.
Enquanto trabalho, minha mente funciona em um loop constante.
Emília, irmã de Valentino, está viva e morando em segredo em uma ala fechada da casa. Os mistérios que cercam Valentino se aprofundam a cada dia, e tenho certeza de que acabarei perdendo a noção deles.
O que mais me impressionou ao conhecer Melinafoi a forma como Valentino a tratava. O peso do mundo parecia sair dos seus ombros quando estava com ela, e eu não pude deixar de notar o carinho genuíno entre eles.
Ele sorriu para ela. Tocou-a. Tinha um calor tão intenso nos olhos que eu não imaginava ser possível.
Há mais nele do que aparenta. E isso, mais do que tudo, me deixa nervoso.
Valentino é muito mais complicado do que eu esperava, o que afeta meus próprios planos. Manter a simplicidade é a melhor maneira de ganhar dinheiro fácil, mas Valentino está se tornando tudo menos isso. Ver aquele lado gentil dele também despertou um desejo estranho em meu peito.
Será que ele conseguiria ser tão gentil comigo? Será que eu quero que ele seja? O sexo foi ótimo e tudo, mas isso não é real. Não pode ser. Mas quanto mais eu aprendo sobre ele e sua família, mais fundo eu afundo na rede deles e fica mais difícil me soltar.
Passando as mãos nas coxas, levanto-me e estico os braços acima da cabeça. Limpar e pensar é uma boa combinação, mas estou ficando cansada. Faço uma anotação mental para perguntar a Valentino se posso usar um computador e me voltar para o gigantesco armário de parede que é minha próxima tarefa. Valentino me disse que muitos dos cômodos desta mansão estão abandonados há anos porque não há mais família aqui.
Só ele e o pai. Máximo . Um homem raivoso que pareceu divertido na primeira vez que o conheci, mas descobrir como ele quer mandar Melinapara um estranho não me cai bem. É desconfortável e não consigo mais olhá-lo nos olhos.
Pelo menos ainda não. Com o tempo, será fácil.
Tiro o pó das prateleiras e limpo o vidro o melhor que posso até chegar a uma gaveta completamente presa no móvel. Usando toda a minha força, puxo, sacudo e balanço a gaveta para frente e para trás até que finalmente ela se solta com um rangido de madeira contra madeira.
Um arrepio percorre minha espinha ao ouvir o som e eu estremeço. Lá dentro, há inúmeros recibos antigos, alguns livros empoeirados e outras bugigangas, como botões, uma caixa de fósforos e alguns prendedores de roupa. Abrindo a gaveta com um puxão, estou prestes a despejar o conteúdo em um saco de lixo quando algo prateado me chama a atenção.
Um pingente de lágrima de prata. A poeira desaparece com um único golpe, e eu olho para a joia, sem saber o que fazer com ela. Será que isso pertence à Emília?
Guardo as joias no bolso e retomo a limpeza. Vou perguntar ao Valentino sobre isso.
Três horas depois, eu me jogo na cama com um gemido longo e baixo.
— Ben me disse que você anda ocupada — diz Valentino, entrando no meu quarto.
Apoio-me nos cotovelos e o observo enquanto ele se encosta na cômoda, os braços cruzados, o rosto impassível.
— É... o quarto que você me cedeu tem de tudo um pouco...
— De tralha — completo com uma careta. — Quando você disse que os cômodos não estavam em uso, não imaginei que estariam naquele estado.
— Somos pessoas ocupadas — rebate Valentino com um tom seco, mas não exatamente hostil.
— Entendi sua mensagem. Quer me dar um laptop?
— Mm-hmm. Para eu poder procurar inspiração de decoração.
Valentino me observa por alguns segundos com uma expressão indecifrável, depois apenas acena com a cabeça.
— Vou providenciar um para você. Boa noite.
Ele se vira para sair, mas me levanto de imediato e dou alguns passos rápidos até ele.
— Espera aí. Encontrei isso enquanto limpava. Era da sua irmã?
Tiro o pingente do bolso e m*l tenho tempo de segurá-lo antes que Valentino praticamente surja à minha frente, arrancando-o da minha mão com um puxão brusco.
— Onde você encontrou isso? — ele grita, os olhos arregalados.
Encaro-o, irritada com a forma como ele arrancou a corrente. Meus dedos ainda latejam.
— Como eu disse, estava limpando. Só quero saber... era dela?
Espero mais um ataque de raiva, mas, para minha surpresa, o rosto de Valentino se suaviza de repente. Ele se vira lentamente e se senta na cama ao meu lado, os ombros pesados, como se o peso do mundo tivesse voltado a cair sobre ele.
O colchão afunda sob o peso do seu corpo e, sem querer, deslizo levemente em sua direção.
— Não. Isso pertencia à Alexandra. Nunca pensei que veria isso novamente.
— Alexandra? Quem é Alexandra? — pergunto, confusa. Outra irmã?
— Ela era a mulher com quem eu iria me casar.
Meu coração dá um salto estranho. Uma tensão inesperada se instala no meu estômago.
— Hã?
Valentino solta um longo suspiro e esfrega o rosto com uma das mãos.
— Acho que não adianta esconder isso de você. Quando eu tinha dezoito anos, me apaixonei por uma mulher brilhante, feroz, magnífica. Eu era um garoto furioso naquela época. Mais do que sou agora — acrescenta, lançando-me um olhar de canto.
Ergo uma sobrancelha. Difícil imaginá-lo mais bravo do que costuma ser hoje.
— Depois do que aconteceu com a minha irmã, eu passei a odiar o mundo. Mas Alexandra... ela era diferente. Ela era o amor da minha vida. Íamos nos casar. Mas... — a voz dele vacila por um momento, tornando-se mais grave — ela foi assassinada. O ex dela, um covarde que não aceitava ser rejeitado, não a deixou em paz. Ele tirou a vida dela. Eu falhei com ela. Assim como falhei com minha irmã.
Ele aperta o pingente com força entre os dedos, o maxilar contraído. Quando levanta o olhar para mim, há algo intenso ali. Dor, talvez. Ou um amor que ainda o assombra.
— Então, Beatrice... quando eu digo que esse mundo é perigoso, que você deve ficar com seus guardas, não se meter onde não deve... não é porque sou um babaca. É porque quero que você fique viva. Entendeu?
Eu o encaro em silêncio por alguns segundos. Sim. Mais do que eu esperava.
Sinto uma compaixão estranha surgir em mim. Pelo que ouvi de Emília, Valentino tentou proteger sua irmã com tudo que tinha. O que aconteceu não foi culpa dele.
E Alexandra... talvez a história tenha se repetido.
Talvez ele esteja apenas tentando não fracassar uma terceira vez.
— Eu entendo — murmuro. — E sinto muito pela sua perda.
— Isso já faz muito tempo — responde ele, enrijecendo o corpo como se tentasse afastar a dor. — Eu agradeceria se não contasse isso a ninguém.
Ele enrola o pingente nos dedos antes de guardá-lo no bolso com um gesto quase reverente.
— Claro — prometo.
Aprendi muito sobre ele nos últimos dias. Um novo lado está emergindo por trás da fachada de aço. De repente, tudo faz sentido — sua irritação constante, a frieza, o controle. Ele perdeu duas pessoas que amava. E agora vive para proteger a única que lhe resta.
— Tenho algo parecido — digo sem pensar, e quando percebo, as palavras já estão saindo. — Isso…
Levanto o braço e mostro a pulseira de fio desbotado em volta do meu pulso.
— Foi feita pela primeira amiga que tive nas ruas. Ela era uma prostituta, tinha a língua afiada, mas era gentil. Um pouco rude no começo, mas quando você a conhecia... ela era um anjo.
Os olhos de Valentino descem até meu pulso, depois voltam ao meu rosto.
— É bonito.
— Você acha? — rio baixo, porque sua expressão continua tão impassível que não tenho certeza se foi um elogio real. — Ela sumiu pouco tempo depois, mas não antes de me ensinar umas boas lições sobre como sobreviver.
Valentino me encara com intensidade repentina.
— Por quê? — pergunta. — Por que você estava na rua? Você é linda e charmosa. Fico tentando entender como você se encaixa nisso.
— Porque sou inteligente — respondo com um sorriso provocador.
Ele faz um som que quase se parece com uma risada abafada, e por um momento meu peito aperta.
Quero que ele ria de verdade. Quero ouvir essa risada.
Quero ver esse lado dele — o lado que Melinavê.
Mesmo que isso não faça o menor sentido.
— Eu só... Cair em mãos erradas. — concluo, dando de ombros.
E pela primeira vez, acho que ele entende.
Valentino assente, sem fazer menção de me pressionar. Não sei se é porque ele realmente não se importa ou se está tentando respeitar minha privacidade, mas a vontade de continuar a conversa me invade, inesperadamente.
— Eu fui muito negligenciada quando criança — começo, com a voz baixa. — Meu pai usava a mim e ao meu irmão como saco de pancadas quase todos os dias, então aprendi a ser briguenta. E rápida. Meu irmão acabou voltando para o álcool... e parou de me proteger. Quando entrei na adolescência, o abuso... mudou. Se tornou s****l.
Minha garganta se fecha em um nó e sou forçada a engolir em seco ao ouvir minha própria voz pronunciar aquilo.
— Eu fui embora logo depois.
O rosto de Valentino escurece, como se uma tempestade tivesse tomado seus traços.
— e sua mãe? — ele pergunta, a voz seca, rígida.
— Ela só se importava com dinheiro... e com o homem dela. Fui até ela, pedi ajuda... mas, pra ela, eu não estava pagando as contas. Então, que arranjasse uma maneira de fazer isso. — Dizer essas palavras em voz alta, especialmente para alguém que conheço há tão pouco tempo, me deixa crua. Vulnerável.
Isso não é um disfarce. Não é uma história. É a minha verdade.
— Beatrice... — a voz de Valentino é um sussurro, quase irreconhecível. Há um calor incomum nela, como se ele quisesse me embalar com palavras. — Eu sinto muito. Eles deveriam ter te protegido. Seu irmão... ele deveria ter lutado com você, ao seu lado.
Dou de ombros, tentando manter a coluna ereta como se isso pudesse me afastar da dor que revirava meu estômago.
— Ele era só um garoto. Fez o que pôde. Eu fiz o que precisava. Fugi. Acabei me virando para o que chamam de "vida de crime". Fiz o que era necessário pra sobreviver. Algumas coisas das quais não me orgulho. Mas é assim, não é? — Olho diretamente nos olhos dele. Há algo neles... algo quente, sufocado. — A gente joga com as cartas que recebe.
— De fato — murmura Valentino. Ele se inclina, pega minha mão entre as dele com uma delicadeza que me desarma. Seu toque é tão suave quanto inesperado.
— A última notícia que tive foi que meu pai morreu espaçado por causa de uma dívida... então acho que isso é carma — murmuro.
— Sinto muito — diz ele, a voz carregada de sinceridade. — Por ter tocado em você daquela forma. Na rua. Na estufa.
— Valentino, não é a mesma coisa — rebato, surpresa pela culpa que vejo nos olhos dele.
— Talvez não... mas ainda assim foi um desrespeito. E por isso, eu peço desculpas.
Fico sem palavras. Eu nem tinha pensado em esperar um pedido de desculpas. Aquilo me desconcerta mais do que qualquer grito ou ameaça.
— Prometo que você será respeitada aqui. Ninguém vai tocar em você sem a sua permissão. E juro... ninguém vai te machucar. Você pode não acreditar agora, mas o tempo vai provar que é verdade.
— Eu... — Como se responde a isso? Valentino é uma moeda girando no ar, revelando um lado inesperadamente gentil. Um lado que quase parece não ter sido feito para mim ver.
— Obrigada — sussurro, dando um leve tapinha em sua mão. — Você acreditaria se eu dissesse que estou bem? Porque já faz muito tempo?
— Eu digo isso a mim mesmo sobre minha irmã — responde ele, ainda mais baixo. — Mas algumas coisas... nunca melhoram com o tempo.
Eu o entendo. Dói, mas entendo.
Uma onda de calor me atravessa. Nunca, em todos os meus cenários mentais, imaginei ter uma conversa como essa com ele. Mas quando seus olhos encontram os meus, há algo ali que aquece mais do que deveria.
Valentino permanece comigo naquela noite. Falamos até tarde sobre o passado — ele compartilha lembranças de Alexandra, e eu conto fragmentos do que vivi nas ruas. Ele ouve. De verdade. E, por algum motivo que não sei explicar, isso basta.
Quando o sono chega, e acabamos nos abraçando sob os lençóis, não questiono.
Mas, quando o amanhecer chega, ele se foi.
Acordo com a cama fria. O espaço ao meu lado está vazio. O calor que me confortava agora é ausência.
Sento-me lentamente, e uma dor estranha e apertada floresce no meio do peito.
Por que... por que me sinto tão estranhamente abandonada?