— Posso entrar?
Jongin ergueu a própria cabeça com dificuldade, se sentia muito cansado e daria tudo pra que as últimas duas horas de seu plantão acabassem logo. A madrugada estava movimentada, m*l conseguiu cochilar, casos urgentes chegavam o tempo todo e o máximo que se permitiu relaxar foi deitar a cabeça por cinco minutos sobre uma mesa gelada e cheirando a álcool.
— Claro, Yixing-hyung.
Zhang Yixing era o neurologista de plantão daquela noite, e também o mais próximo que Jongin tinha de um melhor amigo, o conheceu na faculdade, quando o Zhang deu uma palestra mais divertida do que parecia para a turma de formandos daquele ano. Se reencontraram ao trabalharem juntos três anos depois, com o assunto da palestra acabaram por se tornarem próximos, próximos ao ponto do Kim estar presente no batizado do segundo filho do neurologista.
O mais velho ocupou a poltrona no canto, que era tão confortável que faria qualquer médico cansado dormir antes que pudesse completar uma frase. Poltrona esta que fora evitada a noite toda pelo clínico geral, que entraria em sono profundo demais para ser acordado a tempo para qualquer coisa.
— Você parece cansado. — o Zhang veio a comentar, seus olhos estavam fechados enquanto curtia o relaxamento em suas costas, sua lombar necessitava urgentemente de uma massagem — Não deveria ter pegado esse plantão, o vi aqui várias madrugadas nos últimos meses.
— Sinal de que também estava aqui.
— Sou casado e tenho dois filhos caros. — pareceu mais uma reclamação do que uma constatação de fatos — E uma babá que cobra uma fortuna.
O Kim se permitiu rir por três segundos. Estalou a coluna enquanto fazia uma careta de dor, uma massagem não faria m*l a ninguém naquele momento, de certo salvaria sua vida, mas não era como se pudesse simplesmente pedir uma massagem a qualquer um que passasse em sua porta, por mais que quisesse fazer isso. Riu sozinho com o próprio pensamento, ninguém mais se assustava com suas risadas aleatórias e em momentos inesperados.
Yixing tombou a cabeça para o lado para observá-lo.
— Soube que levou um paciente pra sua casa. — comentou sobre o assunto principal de sua visita, ele não estava ali apenas para usar a poltrona — Por que esse estranho ato de bondade extrema?
— Não fale como se eu fosse uma pessoa r**m. — reclamou se fazendo de ofendido — O ômega não tem memória e nem família, e aparentemente ninguém está procurando por ele, não podia simplesmente abandoná-lo.
— Existem autoridades competentes.
— Eu não... — ele não sabia ao certo como explicar, colocar suas intuições acima da reputação das pessoas não era necessariamente um bom motivo — Não confio em qualquer um.
— Confia num estranho vivendo na sua casa.
E confiava demais. Aquele rapaz poderia facilmente ser um ladrão e um bom ator, esperando o momento certo para fazer a limpa em seu apartamento. Mas não conseguia desconfiar dele, tinha certeza absoluta que aquele ômega trazia consigo uma história triste, história esta que estava escrita em suas costas em cada um daqueles ferimentos e cortes tão profundos. Não, ele não precisava desconfiar de Kyungsoo, ele não estava fingindo.
E não conseguia mais vê-lo como um estranho, sentia empatia por ele, acostumara-se com sua presença muito fácil, e parte de si gostava de tê-lo ali, sua companhia era agradável.
— Sinto que posso confiar nele. — foi sincero ao dizer — Ele passou por coisas, eu preciso ajuda-lo.
— Que tipo de coisas?
Ele também queria saber, mas não tinha ideia, e quanto mais tentava imaginar pior as coisas ficavam, mexer naquela história era como enfiar as mãos em uma vasilha cheia de agulhas, era impossível sair sem que se machucasse.
— Não sei explicar, coisas muito ruins. — o olhou sério, meio triste — Yixing, precisa me ajudar, aquele rapaz pode ter sofrido nas mãos de pessoas cruéis, pode ter sido torturado de muitas formas. Ele não se comporta como alguém normal, é submisso demais, chora muito fácil, e ele também não entende metade das coisas que eu falo, às vezes acho que é uma criança de seis anos, e de repente se comporta como um adulto cansado. Não sei mais o que pensar, procurei ajuda de um amigo na polícia, ele tem certeza que metade das feridas nas costas de Kyungsoo não são do acidente, são chicotadas.
O médico mais velho o olhou perplexo, abriu a boca procurando o que falar, mas não pensava em nada que expressasse minimamente como se sentiu ao ouvir tudo aquilo.
— Hyung, eu preciso cuidar dele.
O Zhang se levantou da poltrona contra sua própria vontade após olhar o relógio em seu pulso. Calmamente foi até a mesa do Kim.
— Vou falar com Junmyeon, ele vai saber lidar com isso bem melhor do que nós.
Junmyeon era o esposo de Yixing e também um psiquiatra renomado, ninguém melhor do que ele para avaliar o comportamento de Kyungsoo e dar ao menos um Norte do que poderia ter acontecido em seu passado. O beta também poderia auxiliar o rapaz a se sentir melhor em vários aspectos, era mais do que evidente que haviam muitas coisas que estavam ocultas, coisas estas que Jongin sabia que Kyungsoo iria demorar a falar.
[...]
Quando Jongin finalmente chegou em casa já passava das 9h da manhã, acabara entrando em uma cirurgia de emergência e quase perdeu seu paciente, mas felizmente tudo dera certo no final, o que era de certa forma reconfortante, o fazia se sentir bem e era como renovar suas energias para seguir sua carreira na medicina.
Mas estava fisicamente cansado, com certeza estava. Exausto seria a palavra certa.
Quando chegou não encontrou Kyungsoo na sala como ele quase sempre estava, e muito menos na cozinha, que seria a segunda opção. Andou pela casa procurando pelo ômega, estava cansado demais para usar qualquer um de seus sentidos aguçados naquele momento, m*l mexia as pernas direito. Já estava começando a acreditar que ele havia saído quando o encontrou no banheiro, a porta estava aberta e o ômega estava agachado perto do vaso com uma escovinha de banheiro em mãos, o olhou meio assustado com sua presença repentina.
— Ah, Jongin, você finalmente chegou. — o menor abriu um sorriso gentil — Eu já estou acabando aqui.
— Quando terminar venha na cozinha, eu tenho um presente pra você.
Kyungsoo pareceu se animar muito ao ouvir a palavra presente. Acenou rapidamente com a cabeça e voltou ao que fazia, tentou limpar o mais rápido que pudesse para poder ver seu presente logo. Mas não podia deixar tudo de qualquer jeito, olhou bem se estava tudo organizado antes de deixar o banheiro. Parecia estar tudo em ordem agora, não que estivesse muito sujo, mas agora tinha uma aparência mais agradável.
Foi à cozinha bastante animado, Jongin estava comendo o restante da salada de frutas que havia feito na noite anterior antes dele sair, e havia uma caixinha sobre a mesa.
— Abre o seu presente. — o alfa lhe entregou a tal caixa.
Kyungsoo a abriu bastante curioso. Sorriu e estava nitidamente emocionado ao descobrir que o Kim lhe comprara um telefone celular, o tirou da caixa com muito cuidado, também descobrindo que havia ganhado uma capinha cheia de bichinhos fofinhos.
— É pra mim? — perguntou parecendo ainda não acreditar.
— Passei a noite inteira fora e percebi que você não tinha como me avisar caso acontecesse alguma coisa. — o disse, ele pensara muito sobre isso, havia ficado preocupado — Assim podemos manter contato e eu fico mais tranquilo.
O ômega não sabia como agradecer todo o cuidado que o médico tinha com ele, sequer sabia como deveria se sentir com tudo aquilo. Mas se sentia bem, era estranho explicar, mas quando o alfa estava por perto ele sentia que nada no mundo o machucaria, mesmo sem saber se já havia se machucado antes.
— Obrigado.
O Kim sorriu doce, descobriu que gostava de ver Kyungsoo feliz.
— Eu não sei como usar. — o ômega confessou parecendo envergonhado, ele olhava para a tela e sabia o que era, mas sua mente não lhe dizia como usá-lo, a única coisa que estava em sua cabeça naquele momento era a imagem de um celular preto sobre uma mesa, olhava para ele, mas alguém sempre o tomava quando tentava pegá-lo. Não sabia se deveria contar para Jongin que havia se lembrado disso, não parecia importante — Eu sei que serve pra falar com as pessoas, mas não sei como faz isso.
— Faz muitas coisas. — Jongin puxou a cadeira que estava em seu alcance — Sente aqui, eu ensino você.
O ômega ocupou a cadeira e passou a prestar atenção em tudo que o Kim lhe mostrava, todas as funções do aparelho e também uma infinidade de aplicativos que poderia baixar — também precisou explicar o que era um download —, e quanto mais via, mais o menorzinho ficava fascinado. Jongin descobriu que ele não sabia o que exatamente era internet, já havia ouvido a palavra, mas não conseguia dizer para que servia.
Mas o que certamente o deixou feliz foi a câmera.
— Deixa eu tirar uma foto sua pra você colocar na tela. — o Kim se ofereceu, era bastante obvio que ele se animava com fotos diante de sua animação ao se ver na câmera frontal — Dá um sorriso.
O alfa lhe apontou a câmera, mas o menor não abriu o tal sorriso.
— Jongin... — estava tímido ao falar seu nome — Você... você pode estar na foto comigo?
Aquilo o surpreendeu, mas fez o possível para não transparecer.
— Claro.
Jongin mudou para a câmera frontal novamente e se aproximou do ômega, garantindo uma distância confortável ele deixou sua cabeça bem perto e sorriu, o sorriso de Kyungsoo estava pequeno, mas ele parecia estar muito satisfeito com aquilo. Depois que a foto foi tirada eles a colocaram como bloqueio de tela, e Kyungsoo estava muito feliz com aquela foto ali, por mais que se sentisse um pouco envergonhado, ele não sabia se já tinham i********e para algo do tipo.
Mas Jongin era a única pessoa em sua vida, o mais perto que tinha de um amigo ou até mesmo família.
— Por que não vai explorar seu celular novo enquanto eu tiro umas quatro horinhas de sono?
Ele acenou com a cabeça e logo saiu da cozinha.
Kyungsoo foi para seu quarto, deitou-se na cama e passou a mexer em tudo o que podia, mas estava precisamente preso no aplicativo de ver vídeos, parecia mágico poder digitar algo e encontrar coisas divertidas para ver, assistira desde de desenhos animados — a maioria que sequer conhecia — até pessoas cozinhando coisas que nunca havia visto, com ingredientes que não lembrava serem comestíveis. Também adorou ver vídeos de pessoas dançando, elas pareciam ser muito boas, ele se perguntava se era capaz de fazer aquilo, e listou mentalmente algumas coisas que gostaria de tentar e descobrir se sabia ou não.
Já Jongin aproveitou para dormir, m*l havia deitado na cama direito e já estava completamente apagado, além de ter tomado o banho mais vagabundo de sua vida e deixado o cabelo sem pentear e a camisa no mesmo lugar que a deixou antes de entrar no banheiro, estava com tanto sono que sentia que poderia dormir em pé e nem notaria. Marcaria a noite passada como uma das mais difíceis de sua carreira.
Mas ele sabia que piores ainda viriam, dissera isso de seu ultimo plantão agitado.
Acordou quase cinco horas depois, sua barriga estava roncando de fome, mas mesmo assim foi uma tarefa difícil levantar, seus músculos pareciam bem mais doloridos agora do que quando deitou mais cedo. Vestiu uma camisa antes de sair do quarto.
Parou ao passar pela sala e encontrar Kyungsoo ali, ele estava encolhido no sofá e chorando. Imediatamente foi até ele para ver o que estava acontecendo, o olhou por toda parte vendo se ele estava machucado, Kyungsoo continuava chorando sem dizer nada.
— O que aconteceu? — perguntou aflito — Está machucado? São aquelas dores que costuma sentir?
Mas ele negou com a cabeça, e parecendo com medo lhe mostrou o celular com capinha de bichinhos que havia ganhado, algo que deixou o médico ainda mais confuso.
— Jongin, me desculpa. — pediu chorando com ainda mais força — Não brigue comigo, por favor.
— Por que eu iria brigar com você?
— Eu quebrei o presente que você me deu. — ele disse — Uma luz vermelha estava piscando e ele apagou, me desculpa, eu não queria ter quebrado.
O Kim não sabia se o abraçava ou se ria de nervoso, mas de todas as formas estava aliviado por não ser um machucado. Alisou o rosto do ômega para limpar suas lágrimas, porém o menor não parecia se acalmar.
— Você não quebrou. — disse — É só colocar pra carregar.
O alfa pegou o celular de suas mãos e buscou o carregador o ligando em uma tomado ali perto, logo mostrando ao ômega que a tela estava acesa novamente, e foi somente ali que ele aos poucos foi parando de chorar. Estava tão assustado antes, seu rosto estava completamente vermelho e seus olhos e boca estavam inchados.
Jongin sentou ao seu lado no sofá.
— Por que começou a chorar? — decidiu que era melhor perguntar.
— Achei que fosse ficar bravo. — confessou, sua respiração ainda estava bagunçada — Fiquei com medo de que brigasse comigo.
— Kyungsoo. — ainda meio incerto de sua ação e de certa forma assustado em como os atos do ômega pareciam exagerados, ele colocou sua mão sobre uma das mãos do menor e com a outra limpou mais algumas lágrimas que ainda teimavam em cair — Não iria ficar bravo mesmo que você tivesse quebrado, não precisa chorar se fizer alguma coisa que você acredita ter sido um erro, está tudo bem, essas coisas acontecem o tempo todo. Você me entendeu?
Ele balançou a cabeça minimamente, agora parecia com vergonha de ter chorado.
Jongin alisou seu rosto com carinho, estava pensando muitas coisas naquele momento, ele não tinha mais dúvidas de que estava perdendo tempo, Kyungsoo precisava de uma ajuda que ele não poderia dar sozinho. Iria ligar para Junmyeon e marcar uma consulta para o mais breve possível.
Kyungsoo não estava bem.