Vasco narrando
Voltei do asfalto com a cabeça a mil. A música da boate ainda batia nos meus ouvidos, mas não tinha som mais alto que o barulho dos meus próprios pensamentos. O vento cortava no rosto enquanto eu subia de moto pra Rocinha, e quanto mais acelerava, mais me vinha a imagem dela. Laura.
Porra… eu tinha ido pra esquecer, mas a cada gole de whisky, cada mulher que encostava em mim, só aumentava a certeza: eu não consigo tirar ela da cabeça. E isso me irrita. Eu, Vasco, que nunca deixei espaço pra sentimento, tô sendo consumido por uma mina que nem é minha.
Quando cheguei na contenção, um dos meninos já veio com o olhar sério.
— Chefe… o senhor soube?
— Soube de quê? — falei seco, já com o sangue gelando.
Ele baixou a cabeça, meio receoso de falar.
— A Laura… disseram que tentaram mexer com ela na faculdade hoje. Tentaram encostar, abusar… mas ela conseguiu sair correndo.
Por um segundo, tudo parou. O barulho da Rocinha, as vozes dos vapores, até o motor da minha moto parecia ter silenciado. Senti meu peito encher de uma fúria que eu não lembrava de sentir fazia muito tempo.
— Quem? — minha voz saiu grave, carregada de ódio. — Quem foi o filho da p**a?
— Não sei direito, chefe… só sei que era um cara de lá, colega de turma, parece.
A raiva subiu queimando. Eu não pensei em hierarquia, em boca, em guerra com morro vizinho, em nada. Só pensei nela. Só pensei na Laura apavorada, sendo tocada sem querer, sentindo medo.
Fechei os punhos até a mão doer.
— Ninguém… ninguém encosta nela. — falei entre os dentes. — Quero o nome desse cara até amanhã.
Montei de novo na moto e subi pro alto do morro, mas dessa vez não era o barulho do motor que me acompanhava, era o eco de uma verdade que não dava mais pra negar: Laura não é só desejo.
É algo mais. Algo que tá me quebrando por dentro.
E junto com isso, cresceu uma certeza que virou ordem dentro de mim:
Quem mexer com ela, mexe comigo.
E quem mexe comigo… não respira mais.
Cheguei na boca ainda com o sangue fervendo. A noite tava pesada, o ar denso, e eu não conseguia tirar da cabeça o que tinham me contado. Fumei uma, duas, várias maconhas, tentando esfriar o pensamento. Mas nada me acalmava. Quanto mais tragava, mais o peito apertava.
Levantei irritado, saí pra fora da boca e fiquei parado olhando pro nada. As luzes do morro piscavam lá embaixo, o som distante do baile misturado com o zunido da cidade. Dentro de mim, tudo era silêncio e raiva.
Foi quando vi Gustavo subindo a ladeira. Meu braço direito. Vinha tranquilo, com o boné torto e a mochila no ombro. Pelo jeito dele, percebi que ainda não sabia de nada.
— Vem de onde? — perguntei, a voz rouca, segurando a ponta do baseado entre os dedos.
— Do QG, — ele respondeu. — Recebi umas peças novas, tava verificando, tá tudo certo.
Assenti com a cabeça, tentando disfarçar o peso que me esmagava por dentro.
O silêncio ficou no ar por uns segundos, até o celular dele vibrar no bolso. Ele olhou o visor e abriu um sorriso: era a Laura.
Mas o sorriso dele durou pouco. Assim que atendeu, o semblante mudou. O que veio do outro lado não era voz de conversa — era choro.
Vi o rosto de Gustavo endurecer, o maxilar travar. O olhar dele, que sempre foi firme, de repente se encheu de desespero. Ele não disse nada, só escutava e tentava acalmar a irmã.
E ali, vendo aquele homem, que é o mais frio do meu bonde, ficar pálido daquele jeito… eu entendi.
A coisa era séria.
Gustavo desligou o telefone e ficou quieto, respirando fundo, tentando se recompor.
Eu nem precisei perguntar — já sabia.
O sangue subiu na minha cabeça de novo, mas dessa vez era diferente. Não era só raiva, era um tipo de dor que eu nem lembrava que existia.
Porque a Laura… ela mexeu comigo de um jeito que nem eu consigo explicar.
E ver o irmão dela perder o chão daquele jeito só me fez ter uma certeza:
quem fez ela chorar vai pagar caro.