4- Passando Mäl

1654 Palavras
Capítulo 4 Heloisa narrando : O restaurante logo encheu. Era cliente entrando sem parar, telefone tocando, lista de reserva cheia. Eu ali, atrás do balcão da recepção, com o mesmo sorriso ensaiado de sempre. “Bom dia, mesa pra quantos? Claro, pode aguardar um momento.” A cabeça doía, o estômago roncava. A última coisa que tinha comido era aquela bolacha murcha de manhã. De vez em quando eu olhava pra dentro, via o Daniel passando, trocando ideia com os garçons, ajudando na organização. Às vezes ele me olhava de volta, sorria. Aquele sorriso leve que dava vontade de largar tudo e sentar pra conversar, mas eu logo lembrava de quem eu era. Eu era a menina do morro. A filha esquecida. A que carrega a casa nas costas enquanto a irmã vive como se fosse estrela de novela. — Helo, dá uma força aqui com os nomes da lista? — uma colega pediu. — Claro, tô indo. E lá fui eu, anotando, organizando, explicando pros cliente que o tempo de espera podia passar dos vinte minutos. O dia passou arrastado. Quando meu turno acabou, já era noite. Me troquei no vestiário sozinha, sentindo as pernas pesadas e o corpo implorando por descanso. Olhei meu celular: mensagem da faculdade lembrando da pendência do pagamento. Saí do restaurante em silêncio, ouvindo só o barulho do trânsito e dos meus próprios passos. Peguei o ônibus de volta com o olhar perdido na janela. Cheguei no morro quase dez da noite. Subi o beco devagar, com medo de dar de cara com alguém estranho, como sempre. O morro à noite era outro. Mais escuro, mais perigoso, mais sufocante. Abri a porta de casa devagar… E o que encontrei me deixou com o coração batendo diferente. A casa tava estranha. Silenciosa demais. A luz do quarto da Helena acesa, a porta entreaberta… Mas ela não respondeu quando chamei. — Helena? — falei mais alto. Nada. Meu corpo inteiro gelou. — Helena? — chamei de novo, mais alto, com o coração já acelerado. Empurrei devagar a porta do quarto dela… e o que vi fez minhas pernas falharem. Helena tava caída no chão, perto da cama, de bruços.O vestido enrolado na cintura, a calcinha quase no joelho, o corpo mole, suado… o rosto pálido, com a boca entreaberta. Tinha vômito seco no canto da boca e uma mancha escura no lençol. — Meu Deus… Helena! — corri até ela, me ajoelhei, virei ela de lado. Ela tava respirando fraco, os olhos virando. O pulso… lento demais. Vi um prato com algumas carreiras de cocaina caída do lado, um copo de vidro quebrado na beirada do tapete. O quarto fedendo a álcool e perfume barato. Meu peito disparou, minha mão tremia. — Mãe! — gritei. — Mãe, corre aqui! É a Helena! Ouvi os passos apressados e a voz esganiçada dela vindo do corredor. — Que foi? O que tá acontecendo?! — minha mãe entrou no quarto e travou na porta. — Ela tá tendo uma overdose, mãe! Olha pra ela! A gente precisa levar ela pro hospital! Mas ao invés de agir, minha mãe veio pra cima de mim. — O que você fez com a sua irmã?! — ela gritou, os olhos cheios de fúria. — Como é que é?! — recuei, sem entender. — Você sempre teve inveja dela! Sempre! Vive de cara amarrada, reclamando de tudo! Foi você que deu alguma coisa pra ela, foi?! Fala! — Mãe, pelo amor de Deus! — gritei de volta, com as lágrimas já vindo. — Eu nunca faria isso! Eu cheguei do trabalho agora, ela já tava assim! A gente tem que ajudar ela, não me acusar! Ela caiu de joelhos do lado da Helena, chorando, gritando o nome dela como se o mundo estivesse desabando. E eu ali… Sozinha. Sendo culpada até quando só tentei salvar. Saí correndo pela porta da frente com o coração na garganta, os olhos cheios de lágrima. Gritei por ajuda no beco, sem nem saber pra quem. Só precisava de alguém. Qualquer um. Foi aí que vi ele. Luca. Tava encostado no muro, fumando um baseado, com a camiseta jogada no ombro, jeito quieto. Vapor da boca, mas diferente dos outros. Sempre foi. Estudou comigo no primário, sempre educado, sempre na dele. Nunca esqueço que me emprestou o lápis de cor quando ninguém mais queria dividir. — Luca! — gritei, me aproximando. — Por favor… é a Helena… ela tá passando m*l, é sério, muito sério! Ele arregalou os olhos na hora, jogou o cigarro no chão. — Onde ela tá? — Lá em casa, no quarto… parece que teve uma overdose, eu não sei! Ela tá apagada! Ele nem pensou duas vezes. Saiu correndo atrás de mim, entrou na casa sem cerimônia. Quando viu a cena, já se abaixou do lado da Helena, conferiu a respiração dela com calma e firmeza. — Tá fraca, mas tá viva. Vou levar ela agora. Minha mãe ainda tava ajoelhada, chorando, e quando viu o Luca pegar a Helena no colo, se levantou num pulo. — Não! Aonde você vai levar minha filha?! — ela gritou. — Pro UPA, tia. Ela precisa de atendimento agora. — ele respondeu firme. — E você! — ela virou pra mim de novo, com o dedo na minha cara. — Tá feliz agora? Isso é culpa tua! Sempre foi! Engoli o choro de novo. Era como se cada palavra dela fosse uma facada nas costas. O carro que o Luca tinha chamado já tava parado na entrada do beco. Ele saiu com a Helena nos braços, o vestido ainda enrolado, a cabeça caída no peito dele. Entrei logo atrás, junto com minha mãe que veio chorando e me xingando o caminho inteiro. — Eu devia ter deixado só a Helena aqui… você sempre trouxe má sorte pra essa casa! Abaixei a cabeça. Olhei pela janela. Enquanto o carro subia a rua em direção ao UPA, eu só pedia em silêncio que ela não morresse. Porque, apesar de tudo… ela ainda era minha irmã. O carro parou na frente do UPA e antes mesmo da porta abrir direito, o Luca já tava com a Helena nos braços, gritando: — Emergência! Ela tá apagada. Ajuda aqui! Dois enfermeiros saíram correndo com a maca, e em segundos ela foi colocada em cima, com oxigênio no rosto e aparelhos sendo ligados às pressas. Eu fiquei parada, com a mão na boca, tremendo inteira. Minha mãe veio atrás, quase tropeçando, gritando o nome da Helena como se fosse arrancar ela da morte no grito. — Minha filha! A minha filha! Faz alguma coisa, pelo amor de Deus! O segurança do hospital teve que pedir calma. — Senhora, a gente precisa de espaço. Deixa a equipe fazer o atendimento! Ela se virou pra mim de novo, os olhos vermelhos, o rosto molhado de choro e ódio. — Se ela morrer… eu nunca vou te perdoar, Heloísa. Nunca! Minha garganta fechou. Não consegui responder. Nem correr. Nem gritar. Fiquei ali, parada, sentindo um peso no peito que parecia querer me esmagar. O Luca veio devagar, colocou a mão no meu ombro. — Fica calma… ela vai sair dessa. Olhei pra ele, com os olhos cheios. — Por que tudo isso sempre sobra pra mim, Luca? Ele não respondeu. Só ficou ali, parado do meu lado, enquanto as portas da emergência se fechavam com a Helena lá dentro, inconsciente… E eu do lado de fora, sozinha, de novo. Mas dessa vez… com medo de perder ela pra sempre. O tempo parecia não passar naquela recepção. O ar-condicionado gelado batendo na minha pele molhada de suor, o som dos passos apressados, da recepcionista falando nomes no microfone… tudo parecia distante. Minha mãe tava de pé, rodando de um lado pro outro, chorando alto, fazendo cena. De repente, ela parou na minha frente e me encarou de novo. — Você destruiu sua irmã, Heloísa! Você sempre teve inveja dela, sempre quis ver ela no fundo do poço! — Inveja? — falei, com a voz falhando, mas firme. — A senhora tá mesmo me dizendo isso? Depois de tudo que eu faço, depois de todo o dinheiro que eu dou, depois de deixar minha vida de lado pra manter essa casa de pé? Ela bateu a mão no peito, indignada. — Você é amarga, fria! Nunca foi como a Helena! — E ainda bem! — gritei. — Porque se eu fosse como ela, eu já tava morta, largada numa viela qualquer, cheirando pó com bandido e voltando pra casa pelada todo fim de semana! Ela arregalou os olhos, ofendida, mas sem resposta. — A senhora nunca me enxergou! Nunca me defendeu, nunca me deu amor! Sempre foi a Helena, a Helena, a Helena! E eu? Eu era só a que fazia tudo sem reclamar! Nesse momento, o Luca se aproximou, os olhos pegando fogo, a voz grave, cortante: — Na moral, tia… na moral mesmo… cê tem que tomar vergonha na cara. Minha mãe virou pra ele, surpresa. — Como é que é?! — Cê ouviu. Cê tá aí chorando, gritando, culpando a Heloísa como se fosse ela que botou o pó na boca da Helena. Mas a real é que a tua filha… essa Helena aí… é marmita de bandido. Vive se jogando em boca, se drogando, se acabando. — Cala a boca, moleque! — ela gritou. — Cala a boca nada. — ele respondeu firme. — Todo mundo no morro sabe. Só a senhora que faz vista grossa. A Heloísa aí… essa sim é mulher de verdade. Trampa, estuda, segura a barra. E a senhora faz o quê? Joga culpa nas costas dela? Fala sério, tia… tá na hora de acordar. Minha mãe ficou muda. Pela primeira vez… sem ter o que dizer. Eu só sentei de novo na cadeira de plástico e respirei fundo, com os olhos marejados. Porque naquele momento… alguém finalmente falou por mim. Continua .....
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