Capítulo 3
Heloísa narrando :
Nasci e me criei aqui no morro. Tenho 19 anos, sou morena clara, cabelo preto e liso, olhos castanhos. Sou gêmea da Helena. Mas a única coisa que a gente tem de igual é a cara, porque de resto… somos o completo oposto.
Nosso pai morreu quando a gente ainda era pequena. Nem lembro direito dele. E desde então, parece que só sobrou eu pra carregar o peso de tudo.
Minha mãe…
Ela só falta tatuar o nome da Helena na testa de tanto que idolatra aquela menina. Parece que só ela é filha. Eu? Sou só a que serve pra trabalhar, pra aguentar calada, pra pagar as contas da casa enquanto a outra vive na rua se acabando.
Trabalho como recepcionista num restaurante na zona sul. Pego ônibus lotado todo dia, volto só o pó, e ainda estudo à noite. Faço faculdade de ADM, ou fazia, né… porque esse mês tive que trancar. Não tava conseguindo pagar a mensalidade.
E o pior? Todo meu dinheiro vai pra casa. Minha mãe exige. Diz que eu tenho obrigação de ajudar, como se eu não tivesse o direito de ter uma vida minha.
Enquanto isso, a Helena…
Helena vive de balada, resenha, andando com um bando de cara que não presta, se enfiando em rolê errado, drogada, bêbada… voltando pra casa quando o sol já tá alto.
E ninguém fala nada.
Minha mãe ainda vira e diz:
– Ela é nova, tá curtindo a vida.
Curtindo? Eu também sou nova. Eu também queria curtir. Mas alguém tem que segurar a barra aqui dentro, né?
Só que até quando?
Nunca namorei.
Nem tempo pra isso eu tenho. Já dei uns beijos, sim… em um cara lá do meu trabalho. O Daniel. Filho do meu chefe.
Ele gosta de mim, vive tentando puxar assunto, me chamar pra sair, pra ir num cinema, jantar, essas coisas que gente normal faz.
Mas eu nunca quis nada demais.
Minha vida é muito complicada, ele não ia entender.
Ele mora no asfalto, tem carro, faculdade paga, futuro traçado. Eu moro no morro, pego dois busão, sustento casa que nem é minha e ainda escuto grito quando chego. Ele não ia entender o que é acordar com medo de bala perdida ou dormir escutando grito no beco.
Nem quero que entenda.
Aqui no morro eu faço de tudo pra ser invisível.
Não me meto com ninguém, não olho torto, não dou papo. Corro de confusão, evito lugar cheio, mantenho minha cabeça baixa.
Enquanto a Helena chama atenção por onde passa, eu passo despercebida.
E, no fundo, acho que prefiro assim.
Menos dor de cabeça, menos chance de me machucar. Só que, às vezes, eu queria sumir. Nem que fosse por um dia. Só pra saber como é viver sem esse peso.
Acordei com o despertador tocando no volume máximo. Cinco e meia da manhã. Olho ardendo, corpo pesado… mais um dia.
Levantei devagar, calcei o chinelo e fui direto pro banheiro do corredor. A água tava fria como sempre, mas pelo menos acordava. Me apoiei na parede azulejada, deixando a água cair no rosto enquanto minha mente já corria com a lista de obrigações do dia.
Me enxuguei com a toalha e passei um creme. Vesti minha calça jeans apertada, blusinha básica, cabelo preso num coque rápido. Nada demais. Simples, como sempre.
Fui até a cozinha ver se tinha alguma coisa pra comer. Abri o armário… nada.
Só restava um restinho de café gelado da noite passada e umas bolachas murchas no fundo do pote. Suspirei fundo. Já era. Ia sair com o estômago vazio mais uma vez.
Tava ali, encostada na pia, tentando engolir aquele gosto amargo, quando a porta da frente se abriu com tudo. Helena entrou.
O salto na mão, o vestido enfiado quase no umbigo, a b***a praticamente de fora. Cabelo todo desgrenhado, maquiagem borrada, o cheiro de álcool e cigarro entrando com ela pela porta.
Ela m*l conseguia andar reto. Tava rindo sozinha, tropeçando nos próprios pés.
— Bom dia pra quem? — ela falou alto, rindo.
Eu só encarei e não falei nada.
Porque se eu falasse, ia sair coisa que não dava pra voltar atrás. Ela jogou a bolsa em cima da mesa e foi direto pro quarto, como se não tivesse feito nada. Como se não fosse problema dela que aqui dentro faltava comida, respeito, noção.
E eu ali… Com fome, cansada, e ainda tendo que fingir que tava tudo bem.
Fiquei parada ali por alguns segundos, encarando a parede suja da cozinha, tentando engolir o gosto da revolta junto com o resto do café gelado. O barulho da Helena se jogando na cama lá no quarto dela ecoou pela casa, seguido de um “aí, tô morta” e uma risada arrastada.
E foi nesse clima que minha mãe apareceu no corredor, amarrando o robe. Olhou pra mim e franziu a testa.
— Já tá de cara feia por quê, Heloísa? Vai começar o dia com drama, é?
Fechei o pote de bolacha com força e virei de costas.
— Não tem nada pra comer, mãe.
— E eu tenho culpa? — ela rebateu, já com aquele tom debochado. — A Helena pelo menos sai, se diverte, vive. Você vive de cara amarrada dentro dessa casa. Se não tá feliz, procura outro lugar pra morar.
Travei.
A garganta ardia, mas eu me segurei.
Ela sempre dava um jeito de defender a Helena, não importava o que ela fazia.
— Eu trabalho, estudo… ajudo com tudo aqui dentro. E a senhora só sabe me tratar como se eu fosse um peso. — falei baixo, quase sem voz.
— Ai, Heloísa… para com esse drama.
— Eu tive que trancar a faculdade esse mês porque não consegui pagar. A senhora sabe disso? Sabe o quanto doeu?
Ela não respondeu. Só revirou os olhos e foi pra sala, ligando a TV como se nada tivesse acontecido.
E eu ali… Com o peito cheio, o estômago vazio e a alma cansada. Peguei minha bolsa, respirei fundo e saí de casa. Porque se eu ficasse mais um minuto… eu explodia.
Desci o beco com pressa, segurando a bolsa no ombro e tentando ignorar o burburinho de sempre no morro. Tinha criança correndo, mulher gritando, rádio estourando funk alto logo cedo… mas meus pensamentos estavam longe.
Cheguei no ponto e esperei o ônibus apertada no meio de mais gente que parecia carregar o mesmo peso que eu. Entrei e fui em pé o trajeto todo, balançando a cada curva, rezando pra não chegar atrasada de novo.
O restaurante ficava numa área mais chique, cheio de gente arrumada, perfume caro e cara de quem nunca pisou num barraco. Cheguei, bati o ponto e fui direto pro vestiário, trocando de roupa rapidinho. Coloquei a camisa social branca, a calça preta justa e prendi o cabelo num coque mais alinhado, fiz uma maquiagem porque precisava estar bem apresentável.
— Bom dia, Helo. — escutei uma voz familiar na porta.
Era o Daniel. Camisa polo, sorriso leve, olhar gentil. Ele sempre aparecia assim, do nada, com aquele jeito que me fazia esquecer por dois segundos da minha vida.
— Bom dia. — respondi, forçando um sorriso.
— Tá tudo bem? Você tá com uma carinha… não sei, cansada.
— Tô bem, só dormi pouco. — menti, como sempre.
Ele se aproximou devagar, com aquela calma de quem não vive correndo.
— Eu ia te chamar pra jantar comigo hoje… mas parece que teu dia tá puxado.
— Tá sim. E depois ainda tenho que ir na faculdade resolver o trancamento da matrícula.
Ele me olhou com os olhos mais sinceros do mundo.
— Você tá sempre se virando sozinha, né?
Eu abaixei o olhar.
— É… meio que não tenho outra opção.
Ele ficou em silêncio, só me observando. Quase como se quisesse dizer “me deixa te ajudar”, mas sabia que eu não ia aceitar.
— Qualquer coisa… tô por aqui, viu? — ele disse, antes de sair.
Fiquei ali parada por uns segundos, com aquele nó na garganta. Mas logo puxei o ar e fui pra recepção com o sorriso automático no rosto.
Porque no fim… ninguém quer saber do que a gente sente. Só se a gente tá sorrindo ou não.
Continua .....