O caminho até minha casa pareceu se esticar, como se o asfalto tivesse se expandido para prolongar minha tortura mental. Cada passo que eu dava levantava uma nova nuvem de dúvidas, poeira acumulada nos cantos da minha mente.
A frase dele ecoava em loop: "Quando você souber o motivo de tudo isso..."
O que eu não sabia?
E, mais perturbador ainda: por que era tão vital para ele que eu soubesse?
Passei a mão pelo rosto, sentindo a pele quente, frustrada com minha própria fraqueza. Era ridículo. Patético, até. Em menos de vinte e quatro horas, Theo Navarro havia ocupado mais espaço na minha arquitetura mental do que qualquer outra preocupação real da minha vida.
Cheguei em casa arrastando o corpo. Não era exaustão física; era uma fadiga de alma. Eu me sentia pesada, como se carregasse o roteiro de uma história que eu nem ao menos tinha concordado em viver.
Subi para o quarto, meu santuário violado pelos acontecimentos do dia. Joguei a mochila no chão e encarei o teto branco, tentando forçar o mundo a voltar à ordem.
O celular vibrou no bolso, um lembrete insistente de que o mundo lá fora não ia me dar trégua.
Maria.
“Livi, acho que você precisa ver isso.”
Meus dedos pairaram sobre o teclado. Demorei três segundos — uma eternidade — para digitar.
“O quê?”
Um arquivo de áudio chegou em seguida.
Apertei o play, e meu coração acelerou antes mesmo da primeira sílaba.
Eram vozes. Duas meninas da minha sala. O som ambiente indicava que tinham sido gravadas no corredor, provavelmente sem saber.
"Ele fez tudo aquilo por causa dela? Duvido."
"Sério, quem ela pensa que é?"
"Agora a sonsa tá achando que é especial."
"Ele só tá brincando, amiga. O Navarro sempre brinca. O problema é quem acredita."
Parei o áudio na metade.
O sangue pulsava nos meus ouvidos, abafando o silêncio do quarto. Minha garganta fechou, um nó áspero e doloroso.
Maria mandou outra mensagem imediatamente.
“Elas postaram isso no grupo fechado delas. Uma amiga minha me encaminhou. Não era pra ter vazado.”
Encarei a luz da tela, sentindo um calor humilhante subir pela minha coluna.
Então era isso. Essa era a minha nova identidade pública.
A "sonsa". A iludida. A peça temporária no tabuleiro dele.
O problema não era o que diziam sobre mim. Era o que diziam sobre "nós".
E esse era o abismo: não existia um "nós".
Mas a escola inteira agia como se tivesse o direito de definir, julgar e condenar o que quer que estivesse acontecendo.
Arremessei o celular na cama com força desnecessária. Ele quicou no edredom, inofensivo, mas a violência do gesto era real.
A frustração, a raiva, o medo — tudo se misturava num coquetel tóxico.
Eu queria que parasse.
Queria silêncio. Normalidade. Anonimato.
Mas o dia, infelizmente, ainda tinha munição para gastar.
No fim da tarde, a campainha tocou. Maria estava parada na porta da minha casa, e a expressão no rosto dela fez meu estômago revirar.
"Preciso te falar uma coisa" ela disse, sem delongas. "A direção chamou o grupo dos meninos lá. Os que postaram os stories."
Meu corpo ficou rígido, defensivo.
"Por quê?"
"Não sei se foi por causa do vídeo em si... ou por causa dele."
Theo.
O nome agora pesava na conversa com uma gravidade diferente.
"A coordenadora viu o que estava rolando" Maria continuou, entrando na sala. "Disseram que pode dar advertência, suspensão... o pacote completo."
Fechei os olhos, sentindo uma pontada de culpa que não deveria ser minha. Eu não queria complicações. Não queria ser o pivô de punições.
E, irracionalmente, não queria problemas para ele.
"Isso não devia ter ido tão longe" murmurei.
"Mas foi" Maria rebateu, implacável. "A escola viu. Eles viram. E o Theo viu."
Ela respirou fundo, escolhendo as próximas palavras com cuidado cirúrgico.
"Você percebeu que ele se envolveu demais, né?"
Fixei o olhar no tapete da sala.
"Ele só... defendeu. Foi o certo a fazer."
"Lívia." Maria segurou meu braço, forçando-me a encará-la. "Ele não defendeu 'porque sim'. Não foi justiça social. Olha pra mim."
Ela esperou até ter minha atenção total.
"Isso não é comportamento de alguém que não se importa. Theo Navarro não compra briga dos outros. Nunca."
As palavras dela me atingiram como um peso físico.
Eu sabia.
No fundo, na parte mais honesta e aterrorizada do meu cérebro, eu sabia.
Mesmo sem admitir em voz alta.
O jeito dele me olhar, como se tentasse decifrar um código.
A forma como ele falou comigo.
A maneira como segurou o celular dos garotos, absorvendo a ofensa como se fosse pessoal.
Havia algo ali.
Uma corrente subterrânea que eu não entendia, mas que me puxava.
"Eu não quero isso" sussurrei, a voz falhando.
"O quê?"
Respirei fundo, tentando conter o tremor.
"Não quero que falem da gente. Porque nem existe 'a gente'."
Maria me olhou com uma mistura de pena e perspicácia.
"É isso que te assusta, Livi?"
Ela fez uma pausa dramática.
"Ou você está com medo porque existe... e você só não tinha percebido ainda?"
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Parecia um trovão dentro da minha cabeça.
Maria apertou minha mão antes de ir embora, mas a frase dela ficou ali, suspensa no ar da sala, reverberando nas paredes.
“Ou é porque existe… e você não percebeu?”
Subi para o quarto e deitei, observando a luz do dia morrer e o teto escurecer.
Respirei fundo.
Uma.
Duas.
Três vezes.
E somente quando o celular vibrou na colcha, iluminando o quarto escuro, eu soube que a noite ainda não tinha acabado.
Era uma mensagem.
De um número desconhecido.
Mas meu coração, traidor, sabia o remetente antes mesmo de eu desbloquear a tela.
Theo.
“Amanhã, preciso te contar uma coisa.”
Meu pulso disparou.
“Algo importante.”
Minhas mãos tremeram, os dedos frios.
“Promete que vai me ouvir?”
Engoli em seco. A saliva desceu rasgando.
Eu poderia ignorar. Poderia bloquear. Poderia fingir que ele não existia.
Mas digitei a resposta como se fosse arrastada por uma força maior.
“Prometo.”
E, pela primeira vez, percebi que o perigo real não era o boato crescendo lá fora.
Era o que estava crescendo aqui dentro.
Algo que tinha o potencial de mudar tudo.
A noite foi um borrão de insônia.
A casa estava silenciosa, mergulhada na paz da madrugada, mas minha mente era um caos barulhento. O céu lá fora parecia espelhar meu interior — carregado, denso, uma tempestade elétrica prestes a desabar.
A mensagem de Theo brilhava na tela do celular a cada vez que eu o checava.
Eu relia aquelas palavras simples como se fossem hieróglifos.
"Preciso te contar uma coisa."
Liguei a tela. Desliguei. Deixei o aparelho cair ao meu lado. Puxei de volta.
Até meu corpo rejeitava o descanso.
Eu não sabia o que esperar.
E, honestamente, não sabia se queria descobrir.
A verdade é que eu estava apavorada.
Medo do que ele diria.
Medo do que aquilo significaria para a minha vida pacata.
E o maior medo de todos: perceber que alguma parte de mim — uma parte pequena, silenciosa, mas teimosa — já tinha começado a se importar com ele.
E esse era o precipício.
Acordei antes do despertador tocar. Ou melhor, desisti de tentar dormir.
Desci as escadas sentindo meu corpo estranho — leve pela falta de sono, mas pesado pela ansiedade. Eu flutuava em um limbo de incerteza.
Minha mãe perguntou se eu estava bem enquanto passava o café.
"Tudo ótimo" respondi.
A mentira mais óbvia do ano.
O trajeto para a escola foi um borrão rápido demais.
Quando dei por mim, já estava na rua principal, observando o fluxo de uniformes entrando pelo portão de ferro.
Meu coração batia num ritmo descompassado, doloroso contra as costelas.
Maria me interceptou perto da entrada, analisando meu rosto.
"Dormiu?" ela perguntou.
Neguei com a cabeça.
"Imaginei" ela disse, soltando uma risada sem humor. "Isso... tudo isso é muita coisa pra processar."
Assenti, incapaz de formular frases complexas.
"Ele mandou mais alguma coisa?"
"Não."
"E você vai? Vai ouvir o que ele tem pra dizer?"
Respirei fundo, sentindo o ar frio da manhã.
"Prometi que sim."
Maria segurou minha mão com firmeza.
"Então vai. Mas lembra de uma coisa, Livi: você não deve nada a ninguém. Nem a ele. Nem a esses babacas da escola que não têm vida própria."
Concordei, mas algo dentro de mim discordava silenciosamente.
Por mais que eu não devesse nada...
Eu queria ouvir.
Eu precisava entender.
Não para calar os boatos.
Mas por causa dele.
O pátio estava lotado, mas minha percepção estava alterada; tudo parecia se mover em câmera lenta, o som abafado como se eu estivesse debaixo d'água.
Foi então que eu o vi.
Theo estava do outro lado do pátio, isolado, encostado na parede externa da sala de artes.
A cabeça baixa. As mãos enterradas nos bolsos.
A postura dele irradiava algo que eu jamais associaria a Theo Navarro.
Insegurança.
Culpa.
Um cansaço profundo.
Quando ele levantou o olhar e me encontrou na multidão, ele endireitou o corpo imediatamente, como se tivesse passado a noite inteira ensaiando aquele momento.
Os passos dele na minha direção foram lentos, deliberados. Havia uma tensão no maxilar dele que me atravessou o peito.
Ele parou perto o suficiente para que eu pudesse ouvir sua respiração, ignorando o caos ao nosso redor.
"Obrigado por vir" ele disse. A voz estava rouca.
Engoli o nervosismo.
"O que você queria me contar?"
Theo olhou ao redor.
Viu os olhares curiosos que se voltavam para nós como imãs. Os comentários disfarçados por trás das mãos. As risadas abafadas.
Ele deu um passo à frente, invadindo meu espaço pessoal, criando uma bolha de privacidade.
"Não aqui."
Meu coração falhou.
"Onde, então?"
Ele respirou fundo, os olhos fixos nos meus.
"Em um lugar onde você possa... acreditar em mim."
Aquelas palavras me atingiram com força. Não havia arrogância nelas, nem o tom de desafio que ele costumava usar.
Havia apenas uma vulnerabilidade crua.
"Theo...", comecei, tentando organizar o caos na minha cabeça. "O que é tão urgente?"
Ele passou a mão pelos cabelos, um gesto de pura inquietação.
"Algo que eu deveria ter falado antes." Ele fez uma pausa, buscando coragem. "Algo que envolve você. E o motivo de tudo isso ter começado."
Meu estômago se contraiu violentamente.
"O motivo... dos boatos?"
"O motivo de tudo" ele corrigiu, intenso. "O motivo de eu ter parado naquele estacionamento. O motivo de eu ter te oferecido aquela carona. O motivo de eu ter defendido você ontem com tanta raiva."
A voz dele era firme, mas havia uma rachadura nela. Uma mistura impossível de determinação e pavor.
"Você precisa saber, Lívia" ele disse, baixando o tom para um sussurro urgente. "Porque eu não quero que você descubra por outra pessoa. Tem que vir de mim."
Meu coração disparou de um jeito que fugiu ao meu controle.
A escola inteira pareceu desaparecer, dissolvida em névoa.
Só restávamos nós dois ali.
E aquela tensão — humana, dolorosa, inevitável.
"Me encontra depois da última aula" ele pediu, quase suplicando. "Na quadra antiga."
"Por que lá?"
Theo sustentou meu olhar, e vi a sombra de um segredo escuro passar pelos olhos dele.
"Porque é o único lugar onde eu ainda consigo dizer a verdade."
E então, ele se virou e entrou no corredor.
Sem olhar para trás.
Sem esperar minha confirmação.
Sem me dar tempo para respirar.
Fiquei ali, parada no meio do pátio, com o coração batendo forte demais para uma manhã de terça-feira.
A verdade.
Ele ia me contar a verdade.
E, pela primeira vez, senti um frio na espinha que me dizia que talvez...
Talvez eu não estivesse preparada para ouvi-la.