2. O Boato (Parte III)..

2082 Palavras
​O caminho até minha casa pareceu se esticar, como se o asfalto tivesse se expandido para prolongar minha tortura mental. Cada passo que eu dava levantava uma nova nuvem de dúvidas, poeira acumulada nos cantos da minha mente. ​A frase dele ecoava em loop: "Quando você souber o motivo de tudo isso..." ​O que eu não sabia? E, mais perturbador ainda: por que era tão vital para ele que eu soubesse? ​Passei a mão pelo rosto, sentindo a pele quente, frustrada com minha própria fraqueza. Era ridículo. Patético, até. Em menos de vinte e quatro horas, Theo Navarro havia ocupado mais espaço na minha arquitetura mental do que qualquer outra preocupação real da minha vida. ​Cheguei em casa arrastando o corpo. Não era exaustão física; era uma fadiga de alma. Eu me sentia pesada, como se carregasse o roteiro de uma história que eu nem ao menos tinha concordado em viver. ​Subi para o quarto, meu santuário violado pelos acontecimentos do dia. Joguei a mochila no chão e encarei o teto branco, tentando forçar o mundo a voltar à ordem. ​O celular vibrou no bolso, um lembrete insistente de que o mundo lá fora não ia me dar trégua. ​Maria. ​“Livi, acho que você precisa ver isso.” ​Meus dedos pairaram sobre o teclado. Demorei três segundos — uma eternidade — para digitar. ​“O quê?” ​Um arquivo de áudio chegou em seguida. Apertei o play, e meu coração acelerou antes mesmo da primeira sílaba. ​Eram vozes. Duas meninas da minha sala. O som ambiente indicava que tinham sido gravadas no corredor, provavelmente sem saber. ​"Ele fez tudo aquilo por causa dela? Duvido." "Sério, quem ela pensa que é?" "Agora a sonsa tá achando que é especial." "Ele só tá brincando, amiga. O Navarro sempre brinca. O problema é quem acredita." ​Parei o áudio na metade. O sangue pulsava nos meus ouvidos, abafando o silêncio do quarto. Minha garganta fechou, um nó áspero e doloroso. ​Maria mandou outra mensagem imediatamente. ​“Elas postaram isso no grupo fechado delas. Uma amiga minha me encaminhou. Não era pra ter vazado.” ​Encarei a luz da tela, sentindo um calor humilhante subir pela minha coluna. ​Então era isso. Essa era a minha nova identidade pública. A "sonsa". A iludida. A peça temporária no tabuleiro dele. O problema não era o que diziam sobre mim. Era o que diziam sobre "nós". E esse era o abismo: não existia um "nós". Mas a escola inteira agia como se tivesse o direito de definir, julgar e condenar o que quer que estivesse acontecendo. ​Arremessei o celular na cama com força desnecessária. Ele quicou no edredom, inofensivo, mas a violência do gesto era real. A frustração, a raiva, o medo — tudo se misturava num coquetel tóxico. ​Eu queria que parasse. Queria silêncio. Normalidade. Anonimato. ​Mas o dia, infelizmente, ainda tinha munição para gastar. ​No fim da tarde, a campainha tocou. Maria estava parada na porta da minha casa, e a expressão no rosto dela fez meu estômago revirar. ​"Preciso te falar uma coisa" ela disse, sem delongas. "A direção chamou o grupo dos meninos lá. Os que postaram os stories." ​Meu corpo ficou rígido, defensivo. ​"Por quê?" ​"Não sei se foi por causa do vídeo em si... ou por causa dele." ​Theo. O nome agora pesava na conversa com uma gravidade diferente. ​"A coordenadora viu o que estava rolando" Maria continuou, entrando na sala. "Disseram que pode dar advertência, suspensão... o pacote completo." ​Fechei os olhos, sentindo uma pontada de culpa que não deveria ser minha. Eu não queria complicações. Não queria ser o pivô de punições. E, irracionalmente, não queria problemas para ele. ​"Isso não devia ter ido tão longe" murmurei. ​"Mas foi" Maria rebateu, implacável. "A escola viu. Eles viram. E o Theo viu." ​Ela respirou fundo, escolhendo as próximas palavras com cuidado cirúrgico. ​"Você percebeu que ele se envolveu demais, né?" ​Fixei o olhar no tapete da sala. ​"Ele só... defendeu. Foi o certo a fazer." ​"Lívia." Maria segurou meu braço, forçando-me a encará-la. "Ele não defendeu 'porque sim'. Não foi justiça social. Olha pra mim." ​Ela esperou até ter minha atenção total. ​"Isso não é comportamento de alguém que não se importa. Theo Navarro não compra briga dos outros. Nunca." ​As palavras dela me atingiram como um peso físico. Eu sabia. No fundo, na parte mais honesta e aterrorizada do meu cérebro, eu sabia. Mesmo sem admitir em voz alta. ​O jeito dele me olhar, como se tentasse decifrar um código. A forma como ele falou comigo. A maneira como segurou o celular dos garotos, absorvendo a ofensa como se fosse pessoal. ​Havia algo ali. Uma corrente subterrânea que eu não entendia, mas que me puxava. ​"Eu não quero isso" sussurrei, a voz falhando. ​"O quê?" ​Respirei fundo, tentando conter o tremor. ​"Não quero que falem da gente. Porque nem existe 'a gente'." ​Maria me olhou com uma mistura de pena e perspicácia. ​"É isso que te assusta, Livi?" Ela fez uma pausa dramática. "Ou você está com medo porque existe... e você só não tinha percebido ainda?" ​O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Parecia um trovão dentro da minha cabeça. ​Maria apertou minha mão antes de ir embora, mas a frase dela ficou ali, suspensa no ar da sala, reverberando nas paredes. ​“Ou é porque existe… e você não percebeu?” ​Subi para o quarto e deitei, observando a luz do dia morrer e o teto escurecer. ​Respirei fundo. Uma. Duas. Três vezes. ​E somente quando o celular vibrou na colcha, iluminando o quarto escuro, eu soube que a noite ainda não tinha acabado. ​Era uma mensagem. De um número desconhecido. Mas meu coração, traidor, sabia o remetente antes mesmo de eu desbloquear a tela. ​Theo. ​“Amanhã, preciso te contar uma coisa.” ​Meu pulso disparou. ​“Algo importante.” ​Minhas mãos tremeram, os dedos frios. ​“Promete que vai me ouvir?” ​Engoli em seco. A saliva desceu rasgando. Eu poderia ignorar. Poderia bloquear. Poderia fingir que ele não existia. Mas digitei a resposta como se fosse arrastada por uma força maior. ​“Prometo.” ​E, pela primeira vez, percebi que o perigo real não era o boato crescendo lá fora. Era o que estava crescendo aqui dentro. Algo que tinha o potencial de mudar tudo. ​A noite foi um borrão de insônia. A casa estava silenciosa, mergulhada na paz da madrugada, mas minha mente era um caos barulhento. O céu lá fora parecia espelhar meu interior — carregado, denso, uma tempestade elétrica prestes a desabar. ​A mensagem de Theo brilhava na tela do celular a cada vez que eu o checava. Eu relia aquelas palavras simples como se fossem hieróglifos. "Preciso te contar uma coisa." ​Liguei a tela. Desliguei. Deixei o aparelho cair ao meu lado. Puxei de volta. Até meu corpo rejeitava o descanso. ​Eu não sabia o que esperar. E, honestamente, não sabia se queria descobrir. ​A verdade é que eu estava apavorada. Medo do que ele diria. Medo do que aquilo significaria para a minha vida pacata. E o maior medo de todos: perceber que alguma parte de mim — uma parte pequena, silenciosa, mas teimosa — já tinha começado a se importar com ele. ​E esse era o precipício. ​Acordei antes do despertador tocar. Ou melhor, desisti de tentar dormir. Desci as escadas sentindo meu corpo estranho — leve pela falta de sono, mas pesado pela ansiedade. Eu flutuava em um limbo de incerteza. ​Minha mãe perguntou se eu estava bem enquanto passava o café. "Tudo ótimo" respondi. A mentira mais óbvia do ano. ​O trajeto para a escola foi um borrão rápido demais. Quando dei por mim, já estava na rua principal, observando o fluxo de uniformes entrando pelo portão de ferro. ​Meu coração batia num ritmo descompassado, doloroso contra as costelas. ​Maria me interceptou perto da entrada, analisando meu rosto. ​"Dormiu?" ela perguntou. ​Neguei com a cabeça. ​"Imaginei" ela disse, soltando uma risada sem humor. "Isso... tudo isso é muita coisa pra processar." ​Assenti, incapaz de formular frases complexas. ​"Ele mandou mais alguma coisa?" ​"Não." ​"E você vai? Vai ouvir o que ele tem pra dizer?" ​Respirei fundo, sentindo o ar frio da manhã. ​"Prometi que sim." ​Maria segurou minha mão com firmeza. ​"Então vai. Mas lembra de uma coisa, Livi: você não deve nada a ninguém. Nem a ele. Nem a esses babacas da escola que não têm vida própria." ​Concordei, mas algo dentro de mim discordava silenciosamente. Por mais que eu não devesse nada... Eu queria ouvir. ​Eu precisava entender. Não para calar os boatos. Mas por causa dele. ​O pátio estava lotado, mas minha percepção estava alterada; tudo parecia se mover em câmera lenta, o som abafado como se eu estivesse debaixo d'água. ​Foi então que eu o vi. ​Theo estava do outro lado do pátio, isolado, encostado na parede externa da sala de artes. A cabeça baixa. As mãos enterradas nos bolsos. A postura dele irradiava algo que eu jamais associaria a Theo Navarro. ​Insegurança. Culpa. Um cansaço profundo. ​Quando ele levantou o olhar e me encontrou na multidão, ele endireitou o corpo imediatamente, como se tivesse passado a noite inteira ensaiando aquele momento. ​Os passos dele na minha direção foram lentos, deliberados. Havia uma tensão no maxilar dele que me atravessou o peito. ​Ele parou perto o suficiente para que eu pudesse ouvir sua respiração, ignorando o caos ao nosso redor. ​"Obrigado por vir" ele disse. A voz estava rouca. ​Engoli o nervosismo. ​"O que você queria me contar?" ​Theo olhou ao redor. Viu os olhares curiosos que se voltavam para nós como imãs. Os comentários disfarçados por trás das mãos. As risadas abafadas. ​Ele deu um passo à frente, invadindo meu espaço pessoal, criando uma bolha de privacidade. ​"Não aqui." ​Meu coração falhou. ​"Onde, então?" ​Ele respirou fundo, os olhos fixos nos meus. ​"Em um lugar onde você possa... acreditar em mim." ​Aquelas palavras me atingiram com força. Não havia arrogância nelas, nem o tom de desafio que ele costumava usar. Havia apenas uma vulnerabilidade crua. ​"Theo...", comecei, tentando organizar o caos na minha cabeça. "O que é tão urgente?" ​Ele passou a mão pelos cabelos, um gesto de pura inquietação. ​"Algo que eu deveria ter falado antes." Ele fez uma pausa, buscando coragem. "Algo que envolve você. E o motivo de tudo isso ter começado." ​Meu estômago se contraiu violentamente. ​"O motivo... dos boatos?" ​"O motivo de tudo" ele corrigiu, intenso. "O motivo de eu ter parado naquele estacionamento. O motivo de eu ter te oferecido aquela carona. O motivo de eu ter defendido você ontem com tanta raiva." ​A voz dele era firme, mas havia uma rachadura nela. Uma mistura impossível de determinação e pavor. ​"Você precisa saber, Lívia" ele disse, baixando o tom para um sussurro urgente. "Porque eu não quero que você descubra por outra pessoa. Tem que vir de mim." ​Meu coração disparou de um jeito que fugiu ao meu controle. A escola inteira pareceu desaparecer, dissolvida em névoa. Só restávamos nós dois ali. E aquela tensão — humana, dolorosa, inevitável. ​"Me encontra depois da última aula" ele pediu, quase suplicando. "Na quadra antiga." ​"Por que lá?" ​Theo sustentou meu olhar, e vi a sombra de um segredo escuro passar pelos olhos dele. ​"Porque é o único lugar onde eu ainda consigo dizer a verdade." ​E então, ele se virou e entrou no corredor. ​Sem olhar para trás. Sem esperar minha confirmação. Sem me dar tempo para respirar. ​Fiquei ali, parada no meio do pátio, com o coração batendo forte demais para uma manhã de terça-feira. ​A verdade. Ele ia me contar a verdade. ​E, pela primeira vez, senti um frio na espinha que me dizia que talvez... Talvez eu não estivesse preparada para ouvi-la.
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