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970 Palavras
Lorena Eu tava sentada ali naquela sala gelada encarando o crucifixo como se fosse um quadro interativo. Pensava: será que Jesus sabe no que eu me meti? Será que Ele aprova? Porque, sinceramente, nem eu sei. Quando aceitei vir pro convento, minha única intenção era sobreviver. Não me passar por candidata a santa beatificada. A maçaneta girou. A porta se abriu devagar, e entrou uma mulher de mais ou menos uns 60 anos, com um olhar capaz de esculachar até uma alma penada. Tava vestida igualzinho a um filme da Sessão da Tarde. Véu até o pé, crucifixo batendo no umbigo e um cinto de corda apertando tanto que eu juro que ouvi um “amém” saindo da barriga dela. Madre: Você é a nova? Lorena: Sou. Lorena. Muito prazer. Madre: Prazer é só de Cristo. Aqui não tem essa de simpatia, sorriso ou ‘bom dia flor do dia’. Isso aqui é convento, minha filha. Não retiro espiritual do t****k. Juro que engoli o riso. Mas engoli com tanta força que até me engasguei. Madre: Você tá tossindo ou tá zombando da cara da madre? Lorena: Tô tossindo, madre. Juro por Deus. Madre: Pois então jure direito, com a mão na Bíblia. Eu olhei ao redor. Tinha uma Bíblia enorme em cima da mesinha. Devia pesar uns cinco quilos. Peguei com cuidado e falei: Lorena: Juro. Madre: Ótimo. Agora senta, porque eu vou te explicar como funciona a vida aqui dentro. Eu me sentei como se tivesse na escola, só que com muito mais medo. A mulher abriu uma caderneta como se fosse dar chamada. Madre: Regra número um: silêncio. Aqui não tem gritaria, gargalhada, música alta, nem t****k. E muito menos celular, se eu achar um você vai rezar cinquenta Ave-Marias ajoelhada no milho. Lorena: t****k? Eu nem gosto dessas coisas, madre. Madre: Não mente, Lorena. Você tem cara de quem rebola até no banho. Fiquei sem resposta. Madre: Regra número dois: celibato. Aqui você não vai botar a mão em homem, nem pensar em homem, nem sonhar com homem. Entendeu? Lorena: Entendi. Madre: Tá achando que é fácil? Porque se você sonhar e acordar suando, já vai ajoelhar na hora e rezar pra expurgar o demônio da sua carne. Eu arregalei os olhos. Lorena: Entendi real, madre. Bem entendido mesmo. Pode deixar. Nada de homem. Eu tô traumatizada, inclusive. Madre: Regra número três: trabalho. Você quer comer, dormir e se abrigar aqui dentro? Vai ter que trabalhar. Lavar louça, varrer igreja, limpar privada, cuidar das hortas e do galinheiro. Sim, a gente tem um galinheiro. Sim, as galinhas ciscam igual gente fofoqueira. E sim, você vai limpar cocô de galinha com a mesma fé que reza um terço. Lorena: Galinha eu aguento. Gente que me trai, não. Pode me mandar pro galinheiro com gosto. Madre me olhou com aquele ar de "sei que você vai me dar dor de cabeça". Madre: Regra número quatro: castigo é bíblico. Então, se aprontar, vai ajoelhar, levar reguada e ficar sem comer. Não tem esse papo de direitos humanos aqui. Aqui é só você, Deus, e a palmatória se bobear. Lorena: Reguada? Mas isso não é coisa de colégio de antigamente? Madre: Exatamente. E aqui a gente é tradicional. Se reclamar, eu pego logo a régua modelo industrial. Aquela que é usada pra medir altar. Lorena: Eu prefiro isso do que morrer na mão do meu ex. Madre: Última regra: aqui não entra homem. Nem entregador. Nem padre bonito. Se entrar, você vira estátua de sal igual a mulher de Ló. Lorena: Mas e se eu cair em pecado? Assim… só pensar. Madre levantou com uma velocidade impressionante. Madre: Levanta! Agora! Lorena: O quê? Por quê?! Madre: Você duvidou da regra do celibato. Isso é sinal de tentação precoce. Vai ajoelhar e receber a primeira reguada da sua nova vida. Lorena: Madre, foi brincadeira. Foi ironia. Eu sou debochada. A senhora vai se acostumar. Madre: Não me chama de senhora. Eu sou madre. E aqui deboche vira penitência. E foi assim que, no meu primeiro dia no convento, eu ajoelhei diante da madre, ela sacou uma régua de madeira que parecia herança da época da inquisição, e me deu três reguadas na palma da mão. PÁ! Lorena: Ai! PÁ! Lorena: Eita, essa foi mais forte! PÁ! Lorena: JESUS! Madre: Isso mesmo. Grita o nome dele. Tá no caminho certo. Agora levanta e vai pra horta. A irmã Teresa vai te mostrar onde você vai cuidar das cenouras. E, Lorena… Lorena: Sim, madre? Madre: Se eu te pegar olhando pros irmãos da paróquia quando forem consertar a cerca semana que vem, você vai colher espinho com a mão. Lorena: Não se preocupe. Eu tô mais pra freira enlutada do que pra ninfeta tentada. Madre bateu a régua na mão de novo. Madre: Lorena. Lorena: Brincadeira! Tô indo! Cenouras, eu escolho vocês! A horta era no fundo do convento. A irmã Teresa tava lá, com cara de paz e paciência. Usava um chapéu de palha e carregava uma cesta de tomate como se fosse oferenda. Teresa: Falou com a madre, né? Lorena: Sim. Já apanhei, já jurei, e agora tô pronta pra virar agricultora. Teresa: Aqui é assim mesmo. A madre parece grossa, mas tem um coração bom. Escondido, enterrado embaixo de doze camadas de disciplina e três toneladas de mágoa dos pecadores. Lorena: Parece eu. Só que eu ainda não fiz voto de castidade. Só de vingança. Ela riu e me entregou uma enxada. Teresa: Vamos ver se Deus vai preferir você cavando buraco ou rezando. Se bobear, Ele manda você fazer os dois. Eu comecei a capinar o mato do lado da estufa pensando que, se o Gabriel sobreviveu que ele deve está me caçando feito doido, mas aqui ele não vai me achar. Então eu vou aguentar isso aqui.
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