Maria Clara
Desci apressada do quarto do Iago e fui direto atrás da Manuela. Avisei que ia embora, mas ela não deixou eu passar. Se levantou do colo do Terror e veio caminhando comigo até o portão.
— Tu pegou tua roupa? — perguntou, cruzando os braços.
— Depois eu pego. — respondi, desviando o olhar.
— Foi o Iago, né?
Fiz cara de paisagem, tentando disfarçar, mas ela me encarava como se pudesse enxergar tudo por dentro de mim.
— Não. — respondi, forçando um riso que não existia.
Ela continuou calada por uns segundos, só me olhando.
— Sei… — disse por fim, arqueando a sobrancelha.
Eu fiquei calada, sem confirmar nada.
— Maria Clara, escuta o que eu vou te dizer… o Iago é um menino bom, de verdade. É um cara leal, fiel e apaixonado. Só que a ele mesmo, entende? — a Manu falava calma, mas firme, me olhando como quem tenta me acordar pra realidade. — Ele não é de abrir a boca pra falar, mas eu sei que ele sente algo por você. O problema é que ele tá acostumado com mulher que vive correndo atrás dele, aquelas que se jogam fácil.
Fiquei quieta, ouvindo. Cada palavra dela parecia empurrar um pouco mais da minha ficha pra cair.
— Então faz diferente dessas meninas. Deixa ele correr atrás de você pela primeira vez na vida dele. Não entrega tudo de bandeja.
— A gente não tem nada, Manu.
— Melhor ainda. Então vive a tua vida, vai ser feliz. Tu é linda, inteligente, tem o mundo inteiro na tua frente. Não perde teu tempo rodando em volta do Iago, não. E muito menos deixa ele rodar em volta de você.
Soltei um riso sem graça.
— Obrigada… de verdade.
Ela segurou minha mão, apertando de leve.
— Eu só quero o seu bem e o dele.. tô aqui, viu? Pra você. Independente da sua relação com ele.
Sorri e a abracei, sentindo o cheiro leve do perfume dela. Aquele abraço era quase um respiro depois de tanta conversa.
Mas durou pouco.
Uma voz soou atrás da gente.
— Mãe!
O corpo da Manu endureceu na hora. Ela se afastou devagar, o sorriso apagando como se alguém tivesse desligado a luz dentro dela.
Me virei pra ver quem era.
Uma moça parada na calçada, uns passos adiante. Alta, bonita, o cabelo solto caindo nos ombros. Mesmo com a rua meio escura, dava pra notar que era do tipo que se cuida, que se veste bem.
Ela olhou primeiro pra mim, medindo sem disfarçar, depois virou o rosto pra Manuela.
— O que você tá fazendo aqui, Alicia? — a voz da Manu saiu contida, mas eu percebi a tensão.
— Vim pedir ajuda. — respondeu, ainda me encarando. — Tô sem dinheiro.
A Manu deu uma risada curta, amarga, mexendo na corrente do pescoço antes de encarar a moça de frente.
— Ah, entendi... — ela balançou a cabeça devagar, o tom cheio de ironia. — Não apareceu quando teu irmão tava preso, nem quando ele quase morreu, nem mesmo sabendo que eu tava vivendo todo esse inferno. Mas agora vem bater na minha porta pra pedir dinheiro.
A moça franziu a testa, o rosto endurecido.
— E o que tu queria que eu fizesse? O pai me botou pra fora daqui, esqueceu? Ele não me queria por perto.
— Eu queria que tu virasse gente, Alicia! — a voz da Manu subiu, dava pra notar seu nervosismo. — Que criasse vergonha nessa tua cara e mudasse de vida.
— Me ajuda, mãe! — retrucou. — Eu sou tua filha!
— Filha? — Manu riu de nervoso, apontando pra ela. — Tu não tem nada de mim não, garota. Nada!
A Manu respirou fundo, firme, mas o brilho nos olhos dela já denunciava o quanto aquilo doía. Mesmo assim, ficou em silêncio por alguns segundos.
— Então vai me deixar morrer de fome? — ela insistiu.
— Tu tem mais de dezoito anos, Alícia! — Manu gritou. — Vai trabalhar, vai vender marmita, fazer faxina, o que for, mas vai correr atrás do que é teu!
— Eu não vou fazer isso! — Alicia berrou, trincando o maxilar. — Eu não vou fazer isso! Por que eu faria, se vocês têm dinheiro pra me ajudar?
— Já é o cúmulo dos cúmulos vocês terem parado de pagar a minha faculdade, e agora querem o que? Que eu morra de fome? Ou que eu peça dinheiro no sinal?
— Se teu pai parou de pagar, ele fez foi certo! — Manu respondeu, a voz embargada, enxugando as lágrimas com a mão trêmula. — Chega, Alicia. Chega de viver pendurada nas nossas costas. Tá na hora de tu aprender a andar com as tuas próprias pernas.
Enquanto as duas continuavam a discutir, a voz delas foi crescendo até virar apenas gritos.
Em poucos segundos, o pessoal que tava lá dentro começou a sair pra ver o que tava acontecendo.
Fiquei meio de canto, sem saber se intervia ou se apenas observava. Quieta.
A garota de repente, virou-se pra mim, me apontando o dedo com a expressão cheia de raiva.
— E tu? — falou com estupidez. — Tá fazendo o quê com as minhas roupas?
Gelei. Olhando pra mim mesma, pro vestido... e congelei. Abri a boca pra responder mas a Manu foi mais rápida. Gesticulou com a mão pra mim e se colocou na minha frente como um escudo.
— Aqui não tem nada teu, ouviu? — a voz dela saiu alta, cheia de fúria. — Tudo que era teu, tua tia já te entregou. O que tá aqui dentro é meu, fui eu que comprei!
A garota bufou, avançando um passo. A luz amarelada do poste pegou em cheio o rosto dela, e foi nesse instante que nossos olhos se cruzaram de verdade.
Eu parei e ela também.
O olhar dela mudou na hora. Primeiro confuso, depois assustado. E então piscou, como quem tentasse entender se tá vendo certo mesmo.
— Pera aí… — sussurrei, o coração batendo forte. — Eu te conheço.
O rosto dela, de perto, era o mesmo. A mesma menina das fotos com o Humberto. A mesma que eu já tinha visto pessoalmente.
A namorada dele.
— Você… você é a namorada do Humberto, não é? — soltei alto, dando um passo pra frente e ela recuou dois.
O rosto dela foi perdeu a cor na hora.
— O quê? — ela forçou um riso nervoso, tentando disfarçar. — Além de ladra, é maluca também? Tá me confundindo, garota. Nem sei quem é esse aí.
— Sabe sim. — avancei mais um passo, meu coração batendo acelerado. — Eu já te vi antes. Naquela vez mesmo que a gente saiu pra comemorar o aniversário do Beto. Você tava lá. Eu conversei com você. Só que, naquela noite, você usou outro nome.
A Manu virou pra mim, confusa, o olhar correndo de uma pra outra.
Mas eu continuei, falando.
— Tô lembrando que você me disse que a tua mãe era médica. — falei, em tom de constatação, cada palavra encaixando como uma peça no quebra-cabeça.
O Terror foi o primeiro a aparecer, o olhar fixo, daqueles que bastam pra calar qualquer um. Logo atrás dele veio o Iago, andando devagar, apoiado pelos meninos.
A Mel, a Any e a Agatha já estavam aqui fora, paradas perto do RD, observando a cena com atenção.
O Terror olhou de mim e pra Alicia, o maxilar travado.
— Quem é Humberto? — ele perguntou.
Foi então que o Iago respondeu, sem hesitar, o olhar preso nela.
— O PM.
A Manu piscou devagar, como se precisasse de um segundo pra processar aquela informação, e levou a mão ao peito.
— O quê? — a voz dela saiu baixinha.
A Alicia começou a dar alguns passos pra trás, o rosto pálido, o corpo trêmulo.
— Vocês tão acreditando nessa garota? — ela gritou, apontando pra mim. — Essa menina apareceu ontem aqui! Vocês nem sabem quem ela é direito e já colocaram ela dentro de casa. Ainda deram minhas roupas pra ela... e agora tão acreditando nessas mentiras? — tentou rir, mas o riso saiu fraco e morreu rápido quando viu o olhar do Terror endurecer ainda mais.
— Cala a p***a da boca, Alicia. — a Manu respondeu, a voz carregada de decepção.
— É mentira, mãe! — a Alicia começou a chorar de soluçar. — Eu nem conheço esse cara que ela tá falando, mãe! Eu nunca ia me meter com polícia, você sabe disso. Nunca! — os olhos dela rodavam, buscando apoio, mas ninguém dizia nada. — Mãe, acredita em mim, por favor!
Ela chorava como se cada palavra dita contra ela fosse uma injustiça. E, por um segundo, eu quase acreditei — se eu não tivesse visto e falado com ela eu ia duvidar da minha própria sanidade.
Mas por tudo que é mais sagrado… eu tenho certeza de que era ela.
Ela que estava com o Humberto.