Ravana
Meu coração está batendo nas orelhas. Estamos em fuga, escondidas no meio da densa escuridão, aproveitando o momento da troca de segurança. São míseros minutos para sairmos sem que notem uma movimentação estranha no jardim.
_ Anda logo, Vitória! - sussurro entre dentes, apoiando minhas mãos nas costas da garota.
Estamos arrumadas, totalmente produzidas para arrasar na boate recém-inaugurada que fica do outro lado da cidade. Esse é o novo point onde os jovens "normais" marcam de se encontrar.
Cruzamos o gramado, indo de arbusto em arbusto, na parte lateral esquerda do jardim, sendo cobertas pelo véu da noite. Levamos nossos saltos nas mãos para não corrermos o risco de torcer nossos pés correndo com essas belezinhas.
Vitória sempre resguardando a nossa frente e eu, nossas costas, como foi nos ensinado no treinamento.
Damos alguns passos e o meu vestido sobe, o que é uma bosta. O vento frio bate na minha b***a, que conta apenas com uma calcinha fininha protegendo os meus globos de carne durinha; todavia, minha maior preocupação é que desfaça os meus cachos. Tive muito trabalho para fazer as molas ficarem perfeitas.
_ Eu não acho uma boa ideia, Ravana, vamos ser castigadas. O padrinho vai nos esfolar e, se sobrar alguma coisa de mim, o meu pai vai terminar de fazer o serviço - minha prima profere, e eu faço ouvidos moucos; minha atenção está voltada para a movimentação dos soldados.
_ Nem venha com arrependimentos, é tarde! Consegui derrubar Giulia, sua irmã tá dopada, só vai acordar amanhã; além do que, nosso amigo está nos esperando. - Percebo a lacuna de falha dos homens; é a nossa deixa.
_ Agora! Vai! Corre! - sussurro para a garota.
Corremos feito dois fantasmas por entre as árvores. Chegamos ao fundo da academia, retiro a chave presa no elástico da minha calcinha. Abro a porta e entramos apressadas. Fecho a folha de madeira reforçada e seguimos pelo corredor até o almoxarifado.
_ Estou muito nervosa, quero fazer xixi! - minha prima diz, apavorada, com os olhos arregalados.
_ Na rua você faz! Precisamos ir! - pego em sua mão e sigo para dentro do almoxarifado, onde são guardados os tatamis que usam para o treino de artes marciais e outros objetos. - Me ajuda aqui! - peço, puxando um carrinho que contém, em seu interior, sacos de pancadas, aqueles sacos de areia usados para praticar boxe, muay thai e MMA.
_ Está maluca! Nem morta que faço xixi na rua, vai que algum bichinho entra lá dentro! - Vitória sussurrou brava.
Abaixo-me e tateio o piso até sentir o relevo do taco que é falso. Retiro a peça e logo vejo a fechadura digital que emite uma luz neon. Um sorriso forma-se em minha face. O gostinho da liberdade, preenchendo de felicidade cada célula do meu ser.
Digito a senha 50743875109, ouço o clique, barulho que me traz a sensação de vitória. Puxo o alçapão e a escada surge.
_ Isso vai dar r**m, Ravana, vamos desistir! - minha prima tenta me persuadir; pensa numa pessoa dividida, então, Vitória é esse indivíduo.
_ Nunca! Quero saber como é sair sem ter a sombra de um segurança no meu pé. Anda, vamos descer logo que o Gio deve estar surtando com nossa demora. - desço na frente e logo atrás vem minha prima.
Quando chegamos na boca da galeria subterrânea que corta a propriedade, andamos céleres; as lâmpadas presas na parede são acionadas através de sensores de movimento, nos possibilitando ver o percurso.
No final dessa galeria, subimos uma escada caracol, saímos dentro de uma guarita desativada que fica na curva do terreno, bem perto de um bosque cheio de árvores.
Respiro fundo, sentindo o gostinho bom da noite.
""Essa noite sou apenas Ravana; nada de princesa da máfia; nada de herdeira do império da 'Ndrangheta; nada de nada!" - penso com meu coração aos pulos - "Apenas uma garota normal, apenas isso!"
_ Calça as sandálias, não podemos chegar na boate com os pés sujos! - digo, colocando os meus saltos Louboutin.
Vitória faz o mesmo.
_ Arruma essa roupa, sua b***a está aparecendo. - minha prima sussurra.
_ Essa p***a não ajuda! - profiro, puxando o tecido cheio de brilho para baixo.
Olho pelo vidro insufilmado se não teremos uns problemas de dois metros de altura, armados até os dentes, nos delatando para o Don.
_ E aí? Podemos terminar de cometer suicídio? - a medrosa pergunta.
Olho para Vitória por cima do ombro.
_ A vida é feita de riscos, minha prima; se não for para correr, melhor nem nascer. - digo, observando o momento em que o soldado responsável por guardar a área externa entra pelo portão.
_ Agora! - aviso e saímos as duas correndo rente ao muro. Mais à frente, debaixo das árvores, está Gio dentro do carro, nos aguardando.
Chego batendo no vidro para que o garoto destrave as portas.
_ Cazzo! Demoraram, hein! - Giovanne profere assim que abre a porta.
Vitória se joga no banco de trás, soltando o ar com força pelos pulmões.
Entro no veículo e me sento no banco da frente.
Puxo para o meu colo a pequena bolsa que contém a carta e alguns itens de maquiagem.
_ Sabe que estamos todos os três mortos, né? - fala minha prima, erguendo-se. - Se meu tio - a menina olha para mim - meu pai e seu pai - aponta para o rapaz que coloca o veículo em movimento - souberem, não vai ficar pedra sobre pedra nessa Itália. - completa e deita no banco outra vez. - Sou nova demais para ser trancada numa torre e depois jogarem a chave fora. - diz, melodramática.
_ Eu danço com a minha coroa de flores no meu funeral. Mas antes preciso fisgar um casal bem gostoso. - Gio diz, sacudindo os ombros e rindo.
O som do carro vai tocando Its not my time ( 3 Doors Down), cantamos acompanhando a música, damos o nosso máximo. Gio pisa no acelerador com tudo.
Nunca me senti leve, sem todo aquele peso, sem todas aquelas correntes e regras. E, por mencionar elas, que são um chute de sapato de bico fino na porta dos fundos, são tantas, mas tantas que decorar é impossível.
Pior são os jantares, que são todos cheios de regras de etiqueta; ouço a voz da minha mãe: "não pode apoiar o cotovelo na mesa, não olhe diretamente para os homens do clã, não confunda os talheres, não deixe marca de batom nas taças, não coloque muita comida no garfo, não, não, não, não... é tanto do não que me causa enjoos.
Abaixo o volume do som e olho para Gio.
— Não estou me aguentando de ansiedade para ver o Alessio. Espero que ele vá ao encontro. Não extrai um chip subcutâneo à toa, hein? — digo, e ambos, Vitória e o garoto, me dirigem olhares de descrença.
— Você fez o quê?! — os dois perguntam em uníssono.
_ Arranquei aquela p***a do meu corpo. Estava na parte lateral do meu pescoço; foi um corte pequeno. Coloquei gelo para adormecer o local e usei a ponta de um estilete - digo, alisando o band-aid que coloquei no local.
_ Sua... sua maluca! Por isso, quando perguntei que sangue era aquele na toalha de rosto, você disse que tinha feito um corte ao bater com a cabeça na prateleira de vidro! - vocifera Vitória.
_ Já foi, não estou sentindo nem mais dor. Eu tive que retirar; meu pai pode querer me rastrear de onde ele está e iria ver o pontinho longe da fortaleza. Seria pedir para ser encontrada, Vitória - digo, sabendo que o senhor Vittorio sempre faz isso.
_ Pensando em todos os prós e contras, você tem razão, Ravaninha. Melhor pecar pelo excesso do que pela falta - meu amigo diz, passando uma mão nos fios escuros.
Gio é um rapaz bonito, é mais velho que Vitória e eu; ele está beirando os vinte anos. É de estatura mediana, possui olhos claros e o corpo musculoso. Giovanne veio com sua família de Chicago para a Itália; o pai dele pertence à nossa máfia, sendo um dos Capos. O seu irmão Giacobbe faz a segurança da minha tia Larissa, e minha prima tem uma quedona pelo soldado.
Vitória tenta disfarçar a cara de boba que fica ao ver o rapaz, mas é difícil. Certa vez, tio Pietro quase flagra a menina admirando o seu love affair, Vitória ficou com o olhar de cão vendo o presunto na vitrine; a coisa não terminaria nada bem. Apesar de quase não conseguir disfarçar que Giacobbe mexe com seu íntimo, minha prima evita confrontos com os pais. Prefere guardar para si o que sente.
No submundo muitas mulheres seguem suas vidas desta forma, sufocando amores e paixões. Outras apenas aceitam seus destinos e seguem sem serem atingidas por nada.
Um bom exemplo é Giulia, que não faz nada para desagradar os pais. Sequer desvia o olhar para flertar com algum garoto. Tenho pena da minha prima, que está presa nas amarras dessa vida em que nascemos e não escolhemos.
Por isso, eu luto para livrar-me das minhas. Quero poder viver, beijar na boca, namorar; usar desse gás que os meus dezessete anos me proporcionam.
_ O Sarratore, vai estar lá sim. Iolanda disse que vai também. Vamos nos divertir.- profere meu amigo, prestando atenção no percurso que estamos fazendo.
_ Vem cá, coisa fofa, quando vai contar ao seu pai que você gosta de meninos e meninas?- Vitória pergunta, curiosa.
Giovanne olha de r**o de olho para a garota que coloca a cabeça bem no meio de nós dois.
_ Nunca, ragazza, o senhor Guerino vai me torturar até a morte. Já estou escapando de servir à máfia, bom, pelo menos diretamente, uma vez que não posso dar as minhas belas costas para essa podridão toda. Porém, prestarei apenas meus serviços advocatícios, e isso me torna uma pessoa mais limpa - diz, fazendo uma curva fechada.
Paramos no sinal.
- Bom, eu só acho que você precisa falar disso com sua família para não ocorrer de arrumarem uma noiva e casamento; daí não vai ter como fugir - minha prima expressa o seu ponto de vista.
A menção de casamento e noivado faz meu corpo arrepiar por inteiro. Olho para o meu dedo anelar direito e é um alívio não ter aquele anel enfiado nele. Depois que joguei a joia longe, meus pais ficaram com receio de que eu pudesse jogar a joia no vaso e dar descarga. Bom, eu fiz isso, mas a porcaria não desceu; parecia uma pedra pousada no fundo, não saía do lugar.
Tentei três vezes, apertei a descarga e nada. Foi quando minha mãe entrou no meu banheiro e viu a cena. Meus ouvidos criaram calos naquele dia.
_ Nisso, eu concordo, Gio. Melhor seus pais saberem por você do que por terceiros - profiro, e meu amigo fica sério.
_ Vou esconder, protelar, não quero ser marcado com tatuagens de olhos. Sabe que eles gostam de identificar os homossexuais; eu sou bissexual, que para todos eles é a mesma coisa - diz, erguendo o queixo.
_ Dio Santo! Gio! Quem faz isso é a máfia russa, não a Calabresa! Em qual planeta você está? - indago, estreitando meu olhar para o garoto.
_ Não entendo nada dessas porras, Ravana. Só sei que os homossexuais são identificados por algum tipo de figura impressa na pele - responde, torcendo os lábios num bico.
_ Pensa numa p***a dessas, ter o corpo igual a um gibi! Cada tatuagem tem um significado, uma história por detrás - Vitória fala.
_ Eu não quero ser marcado igual a gado por conta da minha orientação s****l. Se um dia eu quiser ter alguma tatuagem, vai ser algo de minha escolha e não uma imposição por causa do clã - diz Gio, girando o volante para a esquerda_ Meu irmão já coleciona as dele - completou, e minha prima mostrou-se interessada.
_ Taí um gibi que eu teria o maior prazer em ler. - solta Vitória e eu dou uma gargalhada.
Gio abre a boca exibindo um " Uuuuaalllll".
Seguimos nosso caminho, entre conversas amenas e minha ansiedade por ver Alessio corroendo-me os ossos.