EManuelle Narrando
O corredor da faculdade tava aquele caos de sempre. Gente correndo, gente rindo, gente reclamando da prova, professor atrasado e aluno fingindo que estudou. Eu andava no meio daquele turbilhão com a cabeça longe, o celular pesando dentro da bolsa igual um tijolo.
Eu sabia que ele tava ligando. Sabia que tava mandando mensagem. Mas eu não ia atender. Não naquele momento. Não com todo mundo ao redor. E principalmente… não depois da conversa que a gente teve mais cedo.
Cheguei na sala, sentei na cadeira de sempre, encostei o corpo na mesa e respirei fundo. O coração batia acelerado, mas não era por causa de prova, nem de aula. Era por ele. Sempre por ele.
Tirei o celular da bolsa pra colocar no silencioso, e me assustei com a quantidade de notificações.
15 chamadas perdidas.
9 mensagens no w******p.
3 chamadas de vídeo.
E outra entrando, bem naquele instante.
Travei a respiração e virei o celular com a tela pra baixo, enfiando dentro do estojo. Do meu lado, a Lívia, minha amiga de turma, me olhou com a sobrancelha arqueada.
— Caraca, Manu… foi o namorado de novo, né?
— Foi — murmurei, sem querer dar muito papo.
— Mano… tu vai continuar ignorando?
— Vou. Só por agora. Não quero brigar logo de manhã.
Ela ficou me olhando por uns segundos, depois bufou e encostou o queixo na mão.
— Olha… eu sei que é teu namorado e que tu ama ele desde sempre. Mas posso te falar uma parada sem tu ficar bolada?
— Fala.
— Quem controla demais assim… é porque tá fazendo merda.
Virei pra ela com a testa franzida.
— Como assim, Lívia?
— Ué, Manu… alguma merda ele tá fazendo. Se tu procurar, tu acha. Homem é burro. Homem não sabe esconder. E ele tá te controlando demais.
— Mas ele sempre foi ciumento… — defendi, mais por reflexo do que por convicção.
— Ciumento, sim. Óbvio, tu é linda demais. Até eu tenho ciúmes de tu, amiga. — Ela riu de leve, mas logo ficou séria. — Tô falando desse nível de controle aí, ó.
Ela apontou discretamente pro meu estojo onde o celular vibrava de novo.
— Isso aí não é normal, não.
Toda hora querendo saber onde tu tá.
Com quem tu tá.
Que roupa tu tá usando.
Que hora tu vai voltar.
Quantos minutos atrasou.
Quantas mensagens tu respondeu.
Quantas ele mandou e tu ignorou.
— …
— Quem trai… tem medo de ser traído.
E aí começa a vigiar tudo, controlar tudo. É culpa disfarçada de ciúme.
Eu fiquei quieta.
Quieta demais.
O silêncio me bateu forte por dentro.
Ela voltou os olhos pra frente como se tivesse soltado só um pensamento solto, mas aquilo ficou martelando na minha cabeça.
“Quem trai tem medo de ser traído.”
Olhei pro estojo como se o celular lá dentro fosse uma bomba prestes a explodir.
Caio sempre foi ciumento.
Desde o início. Desde moleque.
Sempre implicou com roupa curta, com amigo homem, com rolê que não incluía ele.
Mas de uns tempos pra cá… o nível subiu demais.
Agora ele queria ver vídeo, foto, prova.
Queria saber quem tava na sala comigo, que professor tava dando aula, por que eu não respondia na hora, o que eu tava fazendo que era mais importante do que ele.
E quando eu falava que tava estudando, ele soltava aquele deboche:
— Tá estudando ou tá desenrolando com alguém aí?
Era piada, mas doía.
Porque não era piada. Era desconfiança disfarçada.
Dei um sorriso forçado pra Lívia, que ainda me observava com aquele olhar de quem tava preocupada de verdade.
— Tu acha mesmo…? — perguntei, quase sem querer.
Ela deu de ombros.
— Não posso afirmar nada, né? Mas homem que ama de verdade não sufoca desse jeito, não. Ele protege, ele cuida, sim. Mas não precisa te monitorar como se tu fosse uma detenta. Ele tá inseguro demais, e insegurança nesse nível sempre tem rastro.
Fechei os olhos por um segundo, deixando aquilo ecoar dentro de mim.
Será que era isso mesmo?
Será que o Kaick tava escondendo alguma coisa?
Será que o ciúmes dele vinha de outro lugar… de culpa?
Olhei de novo pro celular, que agora tava quieto.
Nenhuma vibração. Nenhuma notificação.
E isso me deu mais medo do que o excesso.
Porque quando ele parava de cobrar, era sinal de que vinha tempestade.
Já passava das cinco da tarde quando a aula acabou.
A sala esvaziava aos poucos, o som de vozes misturado ao arrastar de cadeiras e passos apressados no corredor. Mas eu continuava sentada, imóvel, com a mochila no colo e o celular desligado há horas.
Eu precisava de um tempo. Um tempo de mim. Um tempo dele.
A cabeça latejava com tudo que a Lívia falou. Com tudo que eu pensei depois. Era como se alguém tivesse acendido uma luz dentro de mim que eu não queria encarar. E agora… não tinha mais como apagar.
Levantei em silêncio, saí da sala e segui pro estacionamento. O Corolla brilhava no sol do fim de tarde, parado no mesmo lugar de sempre. Entrei no carro e fechei a porta com força, tentando tirar o peso do mundo de dentro do peito.
Mas a verdade é que ele morava ali. Dentro de mim.
Dirigi com calma, devagar, o rádio tocando uma música qualquer que eu nem prestava atenção. Os pensamentos iam longe. Os olhos ardiam. A garganta apertava.
Eu amo o Caio.
Amava mais do que devia.
Mas alguma coisa ali… tava errada.
Muito errada.
Foi só quando virei a última ladeira antes de chegar na favela que meu coração acelerou de novo.
A barricada tava montada como sempre, só que dessa vez tinha algo diferente. Ou melhor… alguém diferente.
Ele.
Caio tava encostado numa das motos da boca, braço cruzado, olhar de quem já sabia que eu ia passar por ali. Camisa preta, bermuda, chinelo, rádio na cintura e a expressão carregada de ódio m*l contido. Ele nem disfarçava mais.
Pisei no freio. O carro parou. O peito disparou.
Ele veio. Me esperar.
Baixei o vidro devagar e tentei forçar o melhor sorriso que eu conseguia.
— Oi, amor…
— Tava onde? — ele perguntou direto, sem bom dia, sem beijo, sem nada. A voz firme, seca. O olhar atravessando o parabrisa como faca afiada.
— Na faculdade… ué — falei tentando manter a leveza, forçando doçura na voz.
— Faculdade que não tem celular, né? — ele rebateu, se aproximando mais da janela.
Meu coração gelou.
— Caio… minha cabeça tá cheia. To cansada, cheia de coisa pra resolver, prova difícil… só queria prestar atenção, amor.
Ele olhou fundo nos meus olhos, e naquele momento eu vi.
Não era só ciúmes. Era raiva. Descontrole. Medo.
Ele forçou um sorriso cínico e falou baixo:
— Vai lá pra casa. A gente vai conversar.
Senti um arrepio gelar minha espinha.
— Hoje não, amor… — respondi calma, como se estivesse tudo normal. — Tô cansada. Vou tomar um banho na casa da minha mãe, dar um beijo nela… depois a gente se fala, tá bom?
Ele não respondeu de imediato. Só ficou me encarando. Os olhos dele estavam escuros, perigosos. Ele mordeu o lábio inferior, engoliu em seco, e se afastou devagar.
— Tá certo, então…
Pisei no acelerador sem dizer mais nada. Fui embora com o coração na boca.
Deixei ele ali, plantado no meio da rua, sozinho, com a mão no rádio e a alma em combustão.
E por mais que me doesse fazer isso, era a primeira vez em muito tempo que eu sentia que tava fazendo alguma coisa por mim.
Cheguei na casa da minha mãe, estacionei o carro e fiquei alguns segundos ali dentro, respirando. O celular ainda tava no silencioso. Devia ter mais vinte mensagens dele. Mas eu não ia olhar agora.
Desci do carro e entrei em casa. Minha mãe veio da cozinha com um pano de prato na mão e um sorriso acolhedor no rosto.
— Oi, filha! Nossa, que cara é essa? Tudo bem?
Olhei pra ela, pra casa onde eu cresci, pro sofá velho, pro cheirinho de comida simples no ar. E ali, no meio daquela paz, eu respondi:
— Não, mãe. Não tá tudo bem.
Ela parou, largou o pano na mesa e veio até mim.
— Quer tomar um banho? Deitar um pouco? Eu faço um café.
— Eu só quero… respirar — falei, a voz embargando.
Subi pro meu quarto e travei a porta.
Lá fora, o morro fervia.
Mas aqui dentro…
Era o começo do meu silêncio.
E talvez… o início do fim de nós dois.