Pré-visualização gratuita A Luz Em Meio Á Escuridão
A noite caíra pesada sobre o pequeno vilarejo, e com ela a chuva.
As nuvens se fechavam como cortinas grossas, impedindo que a lua brilhasse no céu. Apenas o barulho constante das gotas contra o telhado de zinco preenchia o silêncio, ecoando como um tambor insistente. A cada rajada de vento, as frestas da velha casa de madeira se agitavam, gemendo como se também sofressem com a espera daquela madrugada.
O lugar onde a família vivia não era mais do que um casebre esquecido na periferia. Uma rua de terra batida, esburacada, cercada por mato alto, alguns cães magros que disputavam restos de comida e vizinhos tão pobres quanto eles. Não havia iluminação pública; a única claridade vinha de um lampião de querosene pendurado na parede da sala, cuja chama tremulava e lançava sombras alongadas, fazendo as paredes rachadas parecerem vivas.
Dentro, o ar cheirava a madeira úmida, fumaça de lenha e suor. Um cheiro forte, mas familiar para quem já não tinha luxo de escolher. O piso rangia a cada passo, e nas extremidades da casa, alguns buracos haviam sido tampados com pedaços de papelão e tecidos velhos. Era pouco, mas era o suficiente para tentar manter a chuva do lado de fora.
Na sala, um colchão fino, gasto, havia sido estendido no chão. Era ali que Helena, a mãe, lutava contra as dores do parto.
— Aaaah! — seu grito ecoou, rasgando o silêncio da madrugada.
Seu corpo se contorcia, o rosto banhado em suor, os cabelos grudados na testa. Apesar da exaustão, seus olhos carregavam uma chama de coragem, a mesma que sempre a mantivera de pé diante da vida dura.
Ao seu lado, Ricardo, o marido, segurava sua mão com força. Os dedos dele tremiam, não de fraqueza, mas de medo de perder a mulher que mais amava.
— Respira, meu amor… — sussurrou, enxugando-lhe a testa com um pano velho. — Vai dar certo. Você vai ver, nossa filha vai chegar bem.
Helena o encarou por um instante, entre uma contração e outra. Seu olhar dizia mais do que palavras: “Confio em você, mas estou com medo”.
Ricardo sabia disso. No fundo, ele também carregava o mesmo temor. A vida já havia lhes tirado tanto… perder a esposa naquela noite seria como perder tudo.
No canto da sala, três pares de olhos observavam a cena com atenção. Os filhos.
Brayan, o mais velho, de quatorze anos, tentava manter a postura de homem. Os ombros retos, o maxilar travado, as mãos fechadas em punhos. Por dentro, seu coração batia descompassado, mas ele sabia que não podia mostrar fraqueza. Desde cedo aprendera que precisava ser o braço direito do pai.
Henrique, de treze, não conseguia esconder a inquietação. Andava de um lado para o outro, mordendo as unhas, passando a mão pelo cabelo desalinhado. Tinha o temperamento explosivo, sempre mais impulsivo que o irmão, mas naquele momento estava dividido entre a vontade de ajudar e o medo de presenciar uma tragédia.
Já Pietro, o caçula de apenas quatro anos, agarrava a barra da camisa do pai, com lágrimas escorrendo pelas bochechas redondas.
— Papai… a mamãe vai morrer? — perguntou, com a voz embargada.
Ricardo engoliu em seco. Aquelas palavras foram como uma faca atravessando o peito. Ele se abaixou, puxou o filho para perto e o envolveu num abraço firme.
— Não, filho. Sua mãe é forte. E ela vai trazer sua irmãzinha para nós. Você vai ver, Pietro… quando a bebê nascer, tudo vai melhorar.
O menino fungou, escondendo o rosto contra o peito do pai, buscando naquele abraço a segurança que o mundo parecia negar.
Dona Alzira, a vizinha idosa, estava ajoelhada ao lado de Helena. Conhecida por ajudar em partos na comunidade, tinha mãos calejadas, mas firmes. Seus olhos, apesar da idade, mantinham a clareza da experiência.
— Força, minha filha… respira fundo… segura… já está perto — dizia, com uma calma que contrastava com o ambiente de tensão.
Helena gritava, arqueando o corpo, apertando a mão de Ricardo como se nele estivesse sua única âncora. E ele, mesmo tremendo, repetia palavras de fé:
— Vai dar certo… eu estou aqui… segura na minha mão…
As horas se arrastavam. A cada contração, o choro de Pietro se misturava ao ranger das tábuas e ao barulho da chuva. Henrique finalmente se ajoelhou ao lado do irmão mais velho e murmurou:
— Eu não gosto disso, Brayan. Eu tenho medo.
Brayan, sem tirar os olhos da mãe, respondeu em tom firme:
— A gente tem que ser forte, Henrique. Se o papai cair, se a mamãe cair, a gente precisa ficar de pé. É assim que funciona.
Henrique engoliu as lágrimas, tentando se convencer daquilo.
Quando finalmente o grito de Helena se transformou em um som diferente, um choro agudo, pequeno, mas cheio de vida, todos ficaram em silêncio. Por um instante, até a chuva pareceu cessar.
Dona Alzira ergueu o bebê nos braços, envolto em um pano limpo, e sorriu:
— É uma menina.
Ricardo caiu de joelhos, lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Obrigado, meu Deus… obrigado por trazer minha filha ao mundo.
Helena, exausta, ergueu a cabeça o suficiente para ver o rostinho da criança. Seus olhos marejados se iluminaram, e um sorriso suave se abriu em seus lábios.
— O nome dela… — murmurou, quase sem voz — será **Ayla Hellena**.
Ricardo repetiu devagar, como quem sela uma promessa:
— Ayla… luz da lua. Hellena… como você. Ela vai carregar você sempre, minha amada.
Brayan se aproximou devagar, olhando para a irmã. Seus olhos endurecidos pela vida suavizaram-se de repente. Tocou de leve a mão minúscula da bebê e disse, em voz baixa:
— Ela é a nossa sorte. Eu sinto isso.
Henrique, tímido, inclinou-se também. Tentava parecer indiferente, mas os olhos marejados o entregavam. Pietro, por sua vez, estendeu o dedinho, e quando a bebê o agarrou com força, soltou uma risada nervosa:
— Papai! Ela gosta de mim!
Todos sorriram. Pela primeira vez em muito tempo, dentro daquela casa pobre, havia mais que dor. Havia esperança.
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Reflexões da madrugada
A casa inteira adormeceu com o passar das horas, espalhados pela sala: Helena abraçada à filha, os meninos deitados no chão, exaustos, e até Dona Alzira recostada numa cadeira. Mas Ricardo permaneceu acordado.
Sentado, com os cotovelos apoiados nos joelhos, observava a pequena Ayla dormir tranquila no colo da mãe.
O vento ainda soprava pelas frestas, mas, dentro dele, havia silêncio. Paz.
Ele pensou nos dias de fome, nas dívidas, nos sonhos interrompidos. Pensou nos empregos m*l pagos, nas promessas que nunca pôde cumprir aos filhos. Mas, ao olhar para aquela menininha, algo dentro dele se acendeu.
— Eu não vou desistir… — murmurou. — Por ela. Por todos eles.
Naquele instante, fez um voto silencioso: protegeria sua família, custasse o que custasse.
A chuva finalmente cessou. E, quando os primeiros raios do amanhecer se infiltraram pelas frestas da madeira, iluminando o rosto da pequena Ayla Hellena, parecia que o mundo todo renascia junto dela.