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1211 Palavras
Quando Audrea saiu, senti um enorme pesar em meu coração. Acomodei-me na cama e fitei o velho diário de capa de couro. Abri-o e lembranças de um passado não muito distante me vem a tona. Cavalos correndo, tiros e pessoas gritando. Tento desvencilhar-me de tais pensamentos, mas, era impossível. Jamais esqueceria aquele dia fatídico. Estava em casa com meus pais e meus irmãos, quando o cobrador chegou a nossa porta. Papai discutiu f**o e foi ameaçado. Como forma de esquecer a dívida, o cobrador exigiu que minha irmã fosse dada a ele. Papai recusou e o homem sacou uma a**a para atacá-lo. Mamãe se colocou a frente dele e acabou por pagar o preço. Papai a segurou em seus braços, enquanto o homem corria para seu cavalo. Meus irmãos correram atrás dele. Avistei um cavalo e montei rapidamente. Percorri o vasto campo aberto que dava para a saída da pequena cidade. O homem olhou algumas vezes para trás. Saquei uma faca de minha bota, e no galope do cavalo, mirei o melhor que consegui. Acertei-lhe na altura do ombro esquerdo. Ele caiu e o cavalo continuou a viagem. Puxei as rédeas e saltei. Agarrei-o pelo pescoço e o fitei. – Por favor… – suplicou. Arranquei a faca e pus em seu pescoço. Seu olhar era de medo. Ele não estava pronto para morrer, mas, quem está? Minha mãe também não estava. Estava a lavar as roupas, quando ouviu a discussão do lado de fora e foi verificar o que se passava. Jamais fez ideia de que tal atitude mudaria para sempre nossas vidas. Mas, se analisar bem, a culpa fora de meu irmão mais velho. Roubara um alazão de um senhor de engenho da cidade vizinha. O animal acabou por morrer em perseguição e ele foi obrigado a passar três meses prestando serviços, fora o valor sórdido que teria de pagar pelo animal. Papai, sem pensar duas vezes, tomou em empréstimo o valor e deu ao homem, mas, ficou sendo perseguido pelo cobrador. Se meu irmão não tivesse se juntado ao seu bando – de idiotas – para roubar as mercadorias do senhor de engenho, papai jamais teria tomado emprestado a quantia absurda para pagar sua dívida, e mamãe não teria saído para ver o que se passava do lado de fora. – Tenha piedade… – Você não teve piedade de minha mãe… – cravei a faca em seu peito. Saí de cima dele e o vi agonizar. Dei-lhe as costas e andei alguns metros, até sentir uma ardência em minhas costas. Viro e percebo-o sentado apontando a a**a para mim. Não entendi na época, de onde aquele homem, com tamanha dor que sentia, conseguira reunir forças para desferir algum golpe contra mim. Sorte minha por tal força sobrenatural, tenha cessado e ele caíra morto. Ele acabou por tombar no chão. Montei no cavalo e voltei para casa. Somente quando cheguei, foi que percebi que minha roupa estava encharcada de sangue. Passei cerca de dois meses para me recuperar completamente. Bem, pelo menos o físico. Capangas do cobrador vieram atrás de mim dias depois de acharem o corpo. Um velho amigo de meu pai, um padre muito conhecido na cidade, ofereceu-me uma vaga na escola para padres. Fui para o seminário e acabei por tomar gosto. Não apenas pela vida pacata – o que na verdade é o mais difícil, principalmente no que está relacionado a mulheres – mas, também, porque sempre gostei de ajudar as pessoas. Acabei me tornando um ótimo conselheiro e acabei por perceber, que havia pessoas com problemas muito maiores que os meus. Não que isso servisse de alívio para mim, mas, servia como um apoio para que eu ultrapasse as dificuldades de cabeça erguida. Que tivesse forças para mim e para o próximo. Desejava tanto que nada disso tivesse acontecido. Mas, por outro lado pensava que, se eu não tivesse passado por nada disso, talvez eu não tivesse vindo para Salvatore, e nem tivesse conhecido Audrea. Meu Deus, Audrea. Aqueles olhos castanhos de quem tanto anseia perigo. Aquele brilho que carrega no olhar e deixa transparecer para o próximo. Como podia existir alguém como ela? Como podia ser possível que ela mexesse tanto comigo? Já tinha me apaixonado, mas, há muito tempo. Mas, com Audrea era diferente. Ela não é igual as outras moças. Ela é forte, independente, segue a vida com a cabeça erguida. Seria ela o sinal que eu sempre pedira? Um sinal de que rumo deveria tomar em minha vida? Seria ela o motivo real de eu ter passado por tudo isso, para que no fim eu pudesse encontrar a verdadeira felicidade? Quem sabe. Já tinha passado por momentos desconcertante com outras moças e até mesmo com mulheres casadas e senhoras. Muitas diziam nutrir sentimentos por mim. Me ofereciam presentes e faziam convites nada discretos. Mas, o que diferenciava Audrea de todas as outras, era que eu tomava a iniciativa. Eu que a chamei para conversar naquela noite. Eu lhe dei esperanças de que sentia algo. Não fora uma falsa esperança, mas, algo impossível. Apesar de errado, com ela, não sentia pudor de errar. Porque, toda vez que olhava profundamente naqueles olhos cor de mel, sentia que estava a um passo de algo muito bom, mas, que não era para mim. Como se fosse algo bom demais para que eu provasse. Já não sabia mais o que fazer. Sabia o que sentia por ela, mas, entreguei-a para meu adversário. Mas, porque? Ela disse que quer a mim e não ele. Ela disse que me ama, e não ele. Por que eu simplesmente não conseguia admitir com todas as letras que sentia o mesmo por ela? Olho para minhas vestes e cai a ficha. Escolhera o sacerdócio como uma fuga para os meus problemas. Não que eu rejeitasse as boas coisas que Deus me dera, em retribuição ao meu serviço, mas, por vezes me pegava pensando se eu tivesse seguido outro caminho. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas por um sacerdote, aprendi a ser uma pessoa muito melhor, mas, privei-me de muitas coisas. Audrea estava no centro dessas coisas, e isso me doía mais do que tudo. Ela era o ápice de meu sofrimento ao longo dos quase seis anos de sacerdócio. Renegara muita coisa para viver uma vida casta, buscando sempre a santidade, mas, ao conhecê-la, isso mudou. Por vezes, pegava-me pensando em suas vestes de dormir. Em seu sorriso e o brilho no olhar. A forma única de como seus cabelos caíam em seus ombros. Meu Deus, que criatura perfeita. Que criatura cheia de defeitos perfeitos. Como eu queria ser a seda que toca docemente sua pele bronzeada do sol. Não podia negar que a amava, mas também não podia admitir o que sentia. Precisava pensar, principalmente agora que a entreguei para Benicio e que a distratei. Ela devia me amar de verdade para aguentar isso. Ponho meu diário debaixo do travesseiro e decido dar uma volta. Precisava arejar as ideias e pensar no que faria. A data mais próxima disponível para o casamento era daqui a duas semanas. Tinha algum tempo para pensar e analisar o que faria. Mas, precisava pensar rápido e da maneira correta, para não fazer algo de que eu pudesse me arrepender, sendo o principal, perder Audrea.
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