A cozinha possuía o tamanho exato da sala do apartamento de Michelle e Jô, em São Paulo. Retangular, com uma longa mesa disposta no centro, armários embutidos e bastante arejada devido às janelas em todas as paredes e a porta dupla de correr que, de um lado dava para um corredor até a sala principal e do outro, o jardim que cercava a piscina. Piscina essa que recebera olhares de adoração por parte de Jô.
Michelle tinha olhos treinados para investigar e analisar, e usou tal habilidade desde que entrara na mansão. O lugar era luxuoso, era verdade. Entretanto, o proprietário vestia-se com roupas velhas, que deviam acompanhá-lo há anos. Ele tinha dificuldade de desfazer-se de seus pertences. Talvez houvesse criado algum tipo de dependência emocional de compensação, que funcionava quando as pessoas apegavam-se a coisas de menor importância a partir de uma situação de perda de algo de fato valioso. Tal comportamento podia ser exemplificado por aqueles que guardavam relógios ou medalhinhas da sorte que pertenceram a pessoas próximas que haviam morrido. Era o que Adam parecia fazer vestindo roupas que não condiziam com o seu padrão econômico, pelo simples fato de não conseguir desfazer-se delas. Restava saber o que ele compensava com tal apego?
Olhando-o de costas, preparando o almoço em frente ao balcão de mármore, ela pensava nas mudanças sutis pelas quais ele passara. O cabelo loiro e rebelde não mudara, mas estava ainda mais claro e queimado nas pontas. Podia ser em função da praia, visto que morava em Malibu também. As costas largas e fortes, a cintura estreita e o traseiro pequeno forçando o tecido da bermuda, que lhe alcançava pouco abaixo dos joelhos. Tecido gasto de um modelo que se usava nos anos 80 por surfistas no Rio; flores brancas no fundo azul celeste. Baixou os olhos e contemplou os pés descalços sobre o piso e os pelos loiros das panturrilhas. Ele estava diferente e igual. Era estranho. O rosto amadurecera, ganhara força, virilidade, rugas de expressão ao redor dos olhos, na testa e próximo aos lábios. Os ossos projetaram-se e a suavidade de sua expressão desvanecera-se. Até mesmo o azul dos olhos já não era mais límpido e claro; a cor estava mais intensa, escura, com riscos prateados. Olhos endurecidos. Ela havia-lhe beijado os olhos um sem-número de vezes, tocado os lábios levemente por sobre seus cílios loiros e sentido a maciez da pele fina das pálpebras.
– Por acaso você é o famoso Adam Nicolas, descendente mutante de Stephen King com George Romero e um dos mais fecundos escritores da nova geração de suspense de supermercado?
Adam riu e voltou-se para Jô que, sentada comportadamente ao lado de Michelle à mesa, repetia as palavras lidas numa revista para adolescentes.
– Suspense de supermercado? – interpelou Michelle antes de levar aos lábios o copo com suco de laranja.
– Eles, os críticos, se referem aos livros comerciais vendidos em supermercados, sabe. Os de fácil consumo, que ficam entre a prateleira dos enlatados e a do papel higiênico. – explicou Adam com naturalidade, enquanto terminava de abrir a embalagem com comida pronta, feita por Marguerite, e levando-a ao micro-ondas.
– Quais os livros que não são comerciais, se até a bíblia, o maior dos Best Sellers é comercializada? – comentou Michelle, de forma perspicaz. – Será que existe escritor que escreve para não ser lido? – havia um tom irônico na sua voz que muito agradou o escritor que era lido por milhares de pessoas.
– O que o meu pai escreve? – interrompeu Jô, curiosa, enfiando os cotovelos na mesa e apoiando o rosto nas mãos.
– Humm... coisas profundas. – comentou vagamente e, vendo-a alçar uma sobrancelha interrogativa, emendou reflexivo, os braços cruzados à frente do peito: –Vejamos, ele escreve sobre relacionamentos e questões existenciais, a condição humana de modo geral. – procurou ser didático, gesticulando a cada tentativa de fazê-la compreender que, a bem da verdade, a literatura profunda e visceral de Pierre Leverne, era um legítimo pé-no-saco regado a Bourbon e a cenas filosóficas e escatológicas com monólogos interiores sem pontuação e brincando com a sintaxe de tal forma que convidava o leitor a fazer o mesmo, mas com um .38 e uma bala no tambor. Ocultou-lhe que Pierre bebia na fonte da literatura experimental que se baseava na técnica narrativa, e não no conteúdo, ou seja, o cúmulo da m*********o narcisista do autor.
– Chato. – ela murmurou, desanimada.
– Ele é importante aqui na França, Joana, e talvez um dia faça parte da Academia de Letras. – Adam exagerou para impressioná-la, mas a garota não se impressionou.
– Cha-to – repetiu. – Li os livros Um e Dois de Zumbis Detonando. – mudou de estrada numa guinada radical e, com isso, mudou também de humor. – Jim e Felda continuam juntos no Três? – perguntou, animando-se.
Adam endereçou um rápido olhar a Michelle, que fitava a filha com um leve sorriso nos lábios. Como estava linda, a sua antiga namorada. Como conseguia manter aquele ar superior e misterioso que o desafiava a querer saber mais sobre ela e nunca, nunca chegar nem perto da verdade. Quando ela sorria como agora o fazia, olhando para a expressão alegre e relaxada da filha, ele sentia um nó na garganta.
Quando ela se voltou para ele, pois o silêncio pairava no ar e uma pergunta ficara suspensa, Adam desviou seus olhos para a janela e fingiu prestar a atenção em qualquer coisa além.
– Terá de lê-lo, Joana. – procurando ocultar o significado que isso tinha para si. Depois, cogitando que Jô não tivesse o livro, comunicou: – Tenho um exemplar aqui, se quiser.
– Está brincando? – arregalou os olhos.
– Ela não domina o francês. – falou Michelle, enviando-lhe um olhar azedo.
– Ah, é, Adam, sou fodida em francês.
– Olha os modos, Jô. – censurou Michelle franzindo o cenho.
– Pardon, monsieur. – desculpou-se para Adam, endereçando um olhar irritadiço para a mãe. – E pode me chamar de Jô, viu, Adam...
– Tenho um exemplar que foi editado no Brasil. – afirmou Adam contendo-se para não rir da garota. Era um amor, essa menina. Queria roubá-la de Pierre. – Pode pegar lá em cima no estúdio.
– Não, fica sentada aqui, quietinha. – ordenou e virou-se para Adam em tom de reprovação: – Quando eu sair, compro o livro para ela.
– A edição em francês? – alçou a sobrancelha.
– Estamos em Paris, e não em São José dos Ausentes. – rebateu.
– Não seja teimosa, tenho o livro lá em cima...
– Meu pai gosta de crianças? – interveio Jô prontamente lançando um olhar atravessado à Michelle, do tipo: p***a, que é isso?
O micro-ondas apitou. Adam permaneceu imóvel fitando Michelle. Os maxilares contraídos e um olhar indefinível. Como ele não era mais o garoto de 19 anos que ela conhecera e amara, também não compreendia os sentimentos dele através da expressão facial. Há vinte anos, ela leria até mesmo o seu próprio destino na sua feição e no tom azul de seus olhos. Por fim, ele virou a cabeça em direção a Jô e respondeu tornando a sorrir:
– Deve gostar...tem seis filhos, um com cada mulher, em várias partes da Europa. – disse com falsa naturalidade, já que o objetivo era trazê-la para o seu lado.
– É mesmo? Não sou a única?
O rosto da garota parecia ter literalmente murchado e encerrou-se numa expressão entre triste e decepcionada. Arrependeu-se imediatamente de ter dito aquilo da forma errada, podia tê-la preparado.
Michelle estreitou os olhos perigosamente, farejando no ar algo beligerante. Durante a investigação acerca dos dois escritores, não havia evidenciado filho algum que não fosse Jô, ainda mais seis. Esses eram os problemas quando se investigavam pessoas envolvidas diretamente com o investigador, a cegueira, a falta de objetividade e impessoalidade e a dificuldade de separar o que se pensava e o que se sentia. Agora, por exemplo, Michelle estava convicta que pensava em Adam como um i****a insensível e sentia uma vontade enorme de esbofeteá-lo. Principalmente, quando via os olhos da filha encherem-se de lágrimas revelando o seu desapontamento.
Ergueu-se num átimo, pegou a mão de Jô e a fez levantar-se do seu lugar:
– Vamos até o estúdio pegar o livro desse b****a! – falou alto e com rispidez.
Saiu da cozinha sem olhar para trás. No corredor, puxou a menina para um forte abraço e sussurrou ao seu ouvido:
– Escute, seu pai pode ter até doze filhos, isso não importa. Cada filho é uma benção na vida da gente, cada um, não é a quantidade que nos importa como pais, não é uma soma matemática. Além do mais, gatinha, você continua sendo a primeira, a primogênita, sacou? Continua sendo especial.
– Ele parece um maldito coelho... É assim que a vovó fala desses caras que têm filhos por aí. – disse, fungando e limpando as lágrimas que rolavam no rosto.
– Ah, sua avó adora rotular todo mundo. – beijou-a na testa e disse com firmeza: – Agora, pare de bancar a mulherzinha, ok?
Jô riu e fungou mais uma vez.
– Mulher não chora, né?
– Só quando é estritamente necessário. – brincou Michelle. – Vem, garota, um livro recheado de defuntos a espera!
– Você também deveria ler os livros do Adam. Jim e Felda são vocês dois. – afirmou com um sorriso travesso.
– Imagino que sim, dois zumbis. – deu de ombros com descaso.
– Mãe, o Jim e a Felda são os heróis. – comentou a menina significativamente. –Sacou?
– Saquei, gatinha, heróis zumbis. Monsieur Nicolas lida muito bem com a ficção, ao passo que com a realidade é um legítimo covarde e, agora, pelo visto, insensível.
– Ele não fez por m*l. – defendeu-o Jô
– Quer voltar para o hotel?
– Nunca! – exclamou, já de bom humor.
Subiram a escada de mãos dadas e, no alto, cruzaram por um pequeno hall ornamentado pelo espelho na parede e um vaso preto, quadrado, sustentando um fícus. À esquerda, seguia-se por um longo corredor acarpetado que era seccionado pelas portas de pelo menos quatro quartos e dois banheiros. No fundo, uma biblioteca com sofás de couro ainda plastificados e, ao lado, o estúdio, às escuras, uma vez que as cortinas pesadas estavam cerradas.
– Dá para se perder nesta casa... – comentou Jô com os olhos arregalados.
– É provável que ele more há pouco tempo aqui. – murmurou Michelle, observando cada detalhe.
– Achei! Lá, mãe, fica na ponta dos pés que consegue pegá-lo! – apontou para o alto da estante.
– Quer ler o livro quatro também? Encontrei a edição em português dos dois. –anunciou Michelle, espichando-se o quanto podia, ouvindo estalos nos joelhos.
Não obtendo resposta, pegou ambos os livros de qualquer forma. Temia romper os ligamentos ou ter uma cãibra.
– O que está escrito aqui?
Virou-se equilibrando os dois tijolos de quinhentas páginas e deparou-se com a filha de olho na tela do notebook exibindo uma página do editor de texto, escrita em francês.
– Ai, ai, ai...Onde mexeu? – resmungou Michelle, aproximando-se da escrivaninha e balançando a cabeça reprovando a falta de educação da filha.
– Estava hibernando, só dei um toquezinho... Lê para mim, vai! De todas essas palavras esquisitas só deu para entender “Jim”.
– Certo, e assim ficamos. – encerrou a conversa e encaminhou-se para a porta a fim de motivar Jô a segui-la.
– Caramba! Sabe o que é isso? Estou diante do último livro da saga. Ninguém no universo em que vivemos o leu! Acredita nisso?, nem os americanos o leram. – ela parou, tomou fôlego e engatou a segunda marcha: – Lê, mãe, please! O que está escrito sobre Jim?
Michelle olhou para os lados, sentia-se uma criminosa espionando segredos industriais. Mas não resistia à insistência da filha, que a olhava como talvez um dia Platão olhara para Sócrates.
– m***a, está bem. – passou os olhos pelos poucos parágrafos e traduziu-os com certa dificuldade. – Bom, o tal do Jim foi esmagado... – ergueu a cabeça em direção a Jô com o cenho franzido.
– O...M...G...! – exclamou com os olhos arregalados. – Ele “esmagou” o Jim!
– É, o Jim aqui se foi.
– Não pode ser!! Ele é o mocinho! Ele tem de salvar a Felda!
– Pois é, o protagonista corajoso morre, – Michelle simulou um pigarro e emendou com ironia: – no início do terceiro capítulo.
– Por quê? Por quê? – Jô repetia, fitando as paredes em busca de respostas, parecia aturdida e decepcionada com o seguimento da história.
Michelle, por sua vez, analisava a fragilidade do mundo construído por Adam, desde a mansão luxuosa e artificial, completamente negligenciada, ao andamento de sua carreira. Ele parecia relapso, como aquele tipo de pessoa que passa a vida inteira dando de ombros às circunstâncias ao seu redor.
– Achei que estavam perdidas. – a voz grave, ligeiramente rouca, baixa e arrastada ressoou no ambiente.
Adam estava encostado no batente da porta, displicentemente. Os braços cruzados e um sorriso jovial nos lábios.
– Encontrei o livro quatro também. – Michelle balbuciou.
– Ótimo. Vamos almoçar? – disse, acentuando o convite com um alçar de sobrancelha.
– Por que acabou com o Jim? – inquiriu abruptamente Jô, empinando o nariz numa atitude desafiadora. – O que deu em você, Adam Nicolas?
Para surpresa de ambas, Adam Nicolas riu com vontade. Recompondo-se, assumiu uma atitude mais moderada e ainda sorrindo mas falando num tom sério, começou:
– Lady Jô, antes de qualquer coisa, quero me desculpar pela m***a que falei sobre o seu pai. – depois, aproximou-se do computador, selecionou o texto e apagou-o. – Viu? Quem disse que Jim desaparecerá da trama? – provocou-a com um sorriso charmoso. – Seja feita a vossa vontade, ma petit.
Michelle observou o rosto de Jô iluminar-se e, com certeza, não era por causa do personagem ressuscitado ou o que fosse, e sim pelo gesto de Adam. Ele havia resgatado a sua crença em ser especial para alguém, além da própria mãe.
– Merci, Adam. – agradeceu timidamente, estendo a mão que foi prontamente apertada pela a do escritor.
–Não precisa agradecer, quero mesmo sua opinião para o último livro... – considerou ele apontando para as folhas impressas sobre a escrivaninha. – Enquanto almoçamos, me conte o que pensa sobre os meus amados zumbis. – pediu, bem-humorado.
– Puxa-saco. – Michelle murmurou, vendo-os passar por ela e saírem do estúdio, lado a lado, deixando-a para trás.