Adam desviou sua atenção da menina para a mulher de olhar raivoso, o sorriso desvanecendo-se, os sulcos ao redor dos olhos pronunciando-se como que acompanhando o esforço da mente em compreender o que se desenhava à sua frente, os personagens estranhos e íntimos, a circunstância que o mantinha imóvel à porta entreaberta, entre a realidade e o sonho.
De tudo o que ele admirava, agora, quando a imagem se tornava mais nítida, de tudo, ainda admirava, o cabelo preto que balançava mesmo preso no topo da cabeça, balançava mansamente e caía-lhe sobre o ombro e o seio esquerdo. E eram como tentáculos que se enroscavam no seu pescoço puxando-o para o dia em que a abandonou num quarto de hotel de quinta categoria. Não conseguia articular palavra, ele, que as dominava como ofício.
– Pardon, monsieur. – Jô aturdida, balbuciou.
– Não precisa se desculpar, querida. – Michelle rodeou-lhe os ombros e voltou-se para Adam, procurando não se trair pelo tom de voz, já que duas bombas nucleares haviam explodido em seu peito. – Sou Michelle Esteves, e essa é minha filha Joana. – estendeu-lhe a mão como o fazia com os clientes e qualquer desconhecido que lhe fosse apresentado.
A tática era fingir que não reconhecia Adam Nicolas. Desconcertá-lo, subtrair a importância que ele devia se dar à sua vida. Resumindo, pô-lo no seu devido lugar: no arquivo morto do cérebro.
Adam tornou a sorrir, agora, levemente, e ainda sob o efeito da surpresa. Havia poucas horas, quase se afogara ao vê-la debaixo d’água, tão próxima e necessária... Que maluquice estava acontecendo? Estendeu-lhe a mão mais como um gesto mecânico, pois tinha quase certeza de que esta transpassaria um holograma. Mas não foi o que aconteceu. Tocou a pele morna da mão pequena e magra, absorveu o calor e a força. Michelle estava aqui. Mesmo passados vinte anos, ela fizera por ele o que ele jamais tivera força e coragem para fazê-lo. E estava ainda mais linda do que aos 15 anos. O jeito como defendera a filha demonstrava o quanto se tornara forte, como ele também lembrava que ela o era.
– Fico muito feliz que tenha vindo, ma chérie – afirmou sorrindo e segurando-lhe a mão. Não tinha intenção alguma de soltá-la.
– Como...? Desculpe, monsieur... – fingiu embaraço e constatou com prazer o franzir de seu cenho. Pretensioso! Acreditava mesmo que depois de duas décadas, ele ainda lhe era importante. Não lhe deu tempo para refazer-se e disparou com estudada naturalidade: - Pierre está? Viemos do Brasil para visitá-lo. – acrescentou um sorriso simpático.
Ele nem se mexeu, os olhos sérios cravados no rosto dela, as mãos ainda se tocando.
– Michelle... não se lembra de mim? Mudei tanto? – estreitou os olhos, curioso e confuso.
Ao seu lado, Jô fitava um e outro captando no ar a atmosfera e compreendendo rapidamente que aquele cara era o famoso Adam, de Michelle. Viu quando a mãe torceu o lábio inferior para baixo e isso era um claro sinal de menosprezo. Por outro lado, sabia que ela se continha para não rir. Observara-a em ação quando os caras a cercavam e, sempre segura e irônica, despachava-os com a elegância de um salto agulha sobre testículos.
O jogo começou, pensou Michelle, intensificando o sorriso nos lábios pintados de vermelho-fúria.
– Desculpe, mas, deveria lembrar? Você é... – deixou a frase para ser completada.
Ele soltou a sua mão enfim e havia perdido totalmente o sorriso.
– O Adam. – informou de má vontade.
Ela fazia tipo, era óbvio, e ficou muito claro isso. Michelle estava ali, à sua frente, rompendo uma barreira de tempo e espaço e fingia que não o reconhecia. Então por que diabos batera a sua porta? Ah, claro, Pierre...
– Entrem, s'il vous plaît – afastou-se da porta a fim de ceder-lhes passagem. Porém, as duas mantiveram-se nos seus lugares: – Pierre não está no momento.
Adam observou a expressão irritada de Michelle e desapontada de Jô.
– Você é filha de Pierre? – indagou à menina.
Ela assentiu levemente e completou:
– A gente ainda não se conhece. Obriguei minha mãe a fazer essa viagem... Céus! Vamos pagar em 36 vezes as passagens! E, agora? – virou-se para Michelle que digitava uns números no celular.
– Vou chamar um táxi e voltaremos ao hotel. – depois, virou-se para Adam que as olhava de um jeito estranho e perguntou: – Sabe quando Pierre estará em Paris?
– Em duas semanas. – respondeu, mecanicamente. Ideias e imagens giravam num caleidoscópio insano dentro de sua cabeça. – Você e Pierre são pais dessa menina? Então...você fodeu com Pierre? – estreitou os olhos e crispou os lábios.
– Que linguagem é essa? Filha, feche os ouvidos que pelo jeito esse aí é um francês bem vulgar... – fingiu-se ofendida e depois completou puxando da bolsa um papel e uma caneta: – Não o conheço, mas já que mora com Pierre vou dar-lhe o endereço do nosso hotel. Assim que ele chegar, por favor, avise-nos. Tenho apenas trinta dias de férias e...
– Quantos anos você tem, menina?
Adam ignorava-a descaradamente, concentrado em Jô, analisando suas feições.
– Treze.
– Aqui está o endereço do hotel, monsieur. Tenha um bom dia. – disse Michelle estendendo o papel.
– Sete anos depois... – Adam falou baixo, pensativo.
– Mãe, vamos mesmo voltar para aquele hotel com cheiro de mofo e naftalina? –indagou com uma careta.
Michelle ainda estava com o braço estendido e o papel na mão à espera que Adam o pegasse, porém ele, por sua vez, permanecia encarando a menina como se no rosto dela estivesse escrito a sequência correta das ações do passado.
– Seis, seis anos, Adam. – disse Michelle por fim, querendo encerrar a primeira parte da brincadeira: – Namoramos um ano, antes de você partir. – constatou gravemente.
Ele olhou-a profundamente e viu nos seus olhos um misto de tristeza e amargura. Era responsável por aqueles sentimentos que via, sabia disso. Michelle não o havia traído com Pierre. Mesmo que tivesse transado no mesmo dia em que ele, Adam, partira. Quem traiu a história de amor dos dois fora tão-somente ele.
– Fiquem aqui. – pediu, num tom firme.
– Vamos, mãe?
Jô estava ansiosa e tensa em função da viagem e do fato de se encontrar pela primeira vez com o pai. Seria bom mantê-la no mesmo ambiente até ele chegar, mas, por outro lado, não queria que ela se acostumasse com um estilo de vida muito longe da realidade das duas. Além do mais, não estava em seus planos morar debaixo do mesmo teto com Adam. A ideia nunca fora essa. A brincadeira seria feita apenas até Jô conhecer Pierre...
– Não creio que seja uma boa ideia.
– E por que, não? O Adam está nos convidando! – exclamou, praticamente implorando.
Adam? Jô, por acaso, simpatizara com o cretino?
– Não, querida. – disse, com firmeza.
– Ah, mãe... – fez manha.
– As duas devem estar cansadas da viagem. – lançou-lhes um rápido olhar e emendou com educação polida: – Vou buscar as malas no hotel. Agora, entrem, s'il vous plaît.
Michelle ficou em dúvida. Jô estava fazendo manha e isso a irritava. Não estava certo ceder à sua vontade. Precisava ser sensata e ponderada:
– Olha, Adam, não se sinta na obrigação de ser educado. O que aconteceu há mil anos não importa mais. A Jô explicou o motivo de nossa viagem, e não vamos ficar na casa de Pierre enquanto ele estiver fora. – afirmou com seriedade.
–Eu sei, Michelle. Mas ainda temos que conversar; principalmente, quando o passado de mil anos bate à minha porta, non? – em seguida, deu ombros e completou quase com timidez: – A casa também é minha.
Claro, uma vez rico sempre rico. Adam era filho de diplomatas e por isso vivera no Brasil durante um ano. Pelo visto, conseguira multiplicar o dinheiro dos pais.
– Então, mãe? – perguntou Jô, ansiosa.
– Não vejo sentido em ficarmos, já que seu pai não está.
–Mas aqui é a casa do Adam, – virando-se para o homem que as fitava com atenção e seriedade, convocou-o: – e você quer que a gente fique, né?
Ele sorriu levemente aceitando de imediato a cumplicidade da menina. Era fácil gostar de Jô e de sua espontaneidade e frescor. Aos treze, tudo era mais simples. A complicação somente vinha depois.
– Oui, podem ficar aqui à vontade. Tem espaço para todo mundo, são oito quartos. – afastou-se da porta ainda mais e teve vontade de jogar Michelle para o meio de sua sala. – Vem Jô, quando sua mãe se decidir, ela nos procura.
Dito isso, deu-lhe as costas e entrou, mantendo a porta arreganhada. Jô olhou para Michelle em dúvida; num átimo, beijou-a na bochecha e disse baixinho e sorridente:
– Não estraga tudo... A gente não vai zoar com a cara dele?
Fitou a feição maliciosa da filha e sentiu-se manipulada. Jô lutava pelo o que queria e usava o seu carisma como arma.
– Até Pierre chegar? – sondou-a.
– Claro, depois voltamos para casa. – concordou.
– Espera, Jô! Escute, não pense que Adam é um amor de pessoa, viu? Já ouviu a expressão lobo em pele de cordeiro? – alçou a sobrancelha.
Jô caiu na gargalhada.
– Coitado, mãe. Acho que por eu ser loira como ele, pensou que de fato fosse sua filha. Cheguei a ver um brilhozinho nos seus olhos. Putz!, espero que o meu pai de verdade também me olhe assim. – considerou ela, puxando a mãe para dentro da casa.
– O que posso fazer para me redimir do que fiz você passar?
Adam se sentia um m***a.
– Olha, Adam, ficarei aqui por causa da Jô, mas não quero falar sobre pessoas que tiveram um caso há 20 anos, ok? Eu não sou mais aquela menina e você não é mais aquele menino. Vamos nos poupar disso. – ponderou, sem fitá-lo.
Não conseguia olhá-lo nos olhos sem ter vontade de furá-los.
– D’accord, aceito. Obrigado por ficar. – disse, gravemente.
Ele olhou ao redor e piscou um olho para Jô.
– Quer escolher o seu quarto?
Ela pulou do sofá com o refrigerante na mão.
– Oba! Vamos lá!
Era visível que Jô estava encantada por Adam. Olhou bem ao redor. As paredes eram de vidro e pedras rústicas, o piso de mármore. O lugar era simplesmente caríssimo.
Sentou-se no sofá de cetim que mais parecia uma cama com encosto de tão largo e confortável que era. Bebeu um gole de seu refrigerante e admirou a decoração impecável do ambiente. Havia o toque bastante pronunciado de um profissional, pois em nada revelava a personalidade do dono. Objetos caros, prontos, perfeitamente encaixados na atmosfera moderna e arejada da mansão de três andares e, como Adam mesmo dissera, oito malditos quartos. Quanta futilidade!, ela pensou.
Aproveitou para relaxar um pouco e se permitiu lembrar dos primeiros instantes do reencontro com o antigo namorado. Registrou cada expressão, cada timbre da voz, cada resposta e rebatida, cada gesto. Sentia-se diante de um estranho. O encanto e a inocência do amor desapareceram.
Michelle tentou controlar uma risada, a bem dizer nervosa, relembrando o diálogo ensaiado exaustivamente em frente ao espelho. Tinha de convir consigo mesma, ela e Jô eram ótimas atrizes. O desgraçado sofreria o dobro do que a fizera sofrer. Essas, sim, seriam suas verdadeiras férias.