capítulo 1 degustação

717 Palavras
DEGUSTAÇÃO – O DIA EM QUE EU MORRI POR DENTRO Narrado por Kevão (criança) O inferno não começa com o tiro. Começa com a primeira perda que tu não consegue nem chorar. Meu nome é Kevin Elias dos Santos. Mas aqui no Morro Azul, me chamam de Kevão. Hoje eu sou o dono da rua. O medo pendurado nos fios de luz. O nome que cala o vento. Mas antes disso tudo, eu era só um menino. Um menino com mãe. Um menino com irmão de vida. Um menino com um restinho de esperança encardida na alma. ** Minha mãe chamava Rosa. Pequena, valente, cheirando a sabão de barra e cansaço. Lavava roupa pros outros pra comprar feijão pra mim. Quando o Caveira — meu pai — não tava em casa, ela me ensinava a falar baixo e andar rápido. Me contava histórias de outros lugares, onde criança podia rir sem medo. Ela sonhava por mim. Mas no Morro Azul, sonho é só um jeito mais bonito de se decepcionar. ** Meu pai era o Caveira. Frio. Sádico. Sem paciência pra fraqueza. Homem que educava com soco. Que ensinava fidelidade com baque. Que achava que lágrima era doença. Primeira lição dele foi clara: — "Homem que sente, morre." ** Entre a brutalidade dele e o carinho cansado dela, tinha o Fábio. Não era meu irmão de sangue. Era mais. Fábio era três anos mais velho. Tinha sorriso moleque e coragem nos olhos. Era ele quem me chamava de "baixote", que me puxava pra jogar bola, que me protegia dos meninos mais velhos com peito estufado e rebolado de valentia. Era ele quem dizia: — "Fica firme, baixote. O mundo lá fora pode até quebrar, mas nós não." ** Mas nem todo amor resiste à pólvora. Fábio caiu. Caiu porque tentou ajudar a mãe dele, pegando pó da boca pra vender e pagar remédio. Coisa pequena. Mas no Morro Azul, pequeno é sinônimo de morto. ** Lembro como se fosse agora. Tarde quente. O céu pesado. O cheiro de chuva misturado com medo. Caveira mandou chamar Fábio. Ele veio. Suado. Olho baixo. Coração na boca. Eu tava ali, pequeno no canto da sala, segurando o choro na garganta. Fábio ajoelhou. Implorou. — "Padrinho, foi erro meu… me perdoa… juro que eu arrumo…" Minha mãe correu da cozinha, as mãos tremendo. — "Evaldo, não! Ele é só um menino!" Ela tentou se colocar entre o Fábio e a arma. Caveira nem piscou. Empurrou ela de lado como quem afasta um saco vazio. Ela caiu no chão, batendo a cabeça no canto da parede. Ficou imóvel. Não gritou. Não gemeu. Só apagou, como vela ao vento. E eu? Eu congelei. Caveira olhou pra mim. — "Olha bem, Kevin." E atirou. O tiro estourou o peito do Fábio. O corpo dele tombou pesado, o sangue escorrendo pra debaixo da porta. Silêncio. Cheiro de morte. Um silêncio tão alto que até o morro pareceu prender a respiração. ** Meu pai apagou o cigarro na bochecha do morto. Pegou minha mãozinha suada e sujou ela no sangue ainda quente. — "Agora tu tá marcado." ** Naquele dia, eu aprendi três coisas: Primeiro: Amor não impede bala. Segundo: Coração mole cava a própria cova. Terceiro: A dor é uma corrente. E eu seria a p***a da âncora. ** Minha mãe? Nunca mais levantou. O corpo dela sumiu do barraco na mesma noite. Alguns dizem que o Caveira "resolveu o problema" — como fazia com tudo que fraquejava. Outros dizem que ela morreu ali mesmo, naquela queda, quebrada por dentro e por fora. Eu não procurei saber. No Morro Azul, quem cava muito fundo… acaba caindo junto. ** Desde então, eu não era mais o Kevin. Eu era só o vazio que sobrou. ** Hoje, sentado no trono de plástico da boca, com a pistola em uma mão e o cigarro na outra, eu sou a prova viva: Quem sobrevive ao inferno… vira o próprio demônio. E eu? Eu sou o pesadelo que Caveira sonhou em parir. ** O Morro Azul tem dono. E esse dono não sente mais nada. Nem amor. Nem pena. Nem dor. Só vontade. Vontade de nunca mais ser fraco. Vontade de nunca mais ser quebrado. Vontade de fazer o mundo engolir o nome que me fizeram cuspir com sangue: Kevão.
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