DEGUSTAÇÃO – O DIA EM QUE EU MORRI POR DENTRO
Narrado por Kevão (criança)
O inferno não começa com o tiro.
Começa com a primeira perda que tu não consegue nem chorar.
Meu nome é Kevin Elias dos Santos.
Mas aqui no Morro Azul, me chamam de Kevão.
Hoje eu sou o dono da rua.
O medo pendurado nos fios de luz.
O nome que cala o vento.
Mas antes disso tudo, eu era só um menino.
Um menino com mãe.
Um menino com irmão de vida.
Um menino com um restinho de esperança encardida na alma.
**
Minha mãe chamava Rosa.
Pequena, valente, cheirando a sabão de barra e cansaço.
Lavava roupa pros outros pra comprar feijão pra mim.
Quando o Caveira — meu pai — não tava em casa, ela me ensinava a falar baixo e andar rápido.
Me contava histórias de outros lugares, onde criança podia rir sem medo.
Ela sonhava por mim.
Mas no Morro Azul, sonho é só um jeito mais bonito de se decepcionar.
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Meu pai era o Caveira.
Frio.
Sádico.
Sem paciência pra fraqueza.
Homem que educava com soco.
Que ensinava fidelidade com baque.
Que achava que lágrima era doença.
Primeira lição dele foi clara:
— "Homem que sente, morre."
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Entre a brutalidade dele e o carinho cansado dela, tinha o Fábio.
Não era meu irmão de sangue.
Era mais.
Fábio era três anos mais velho.
Tinha sorriso moleque e coragem nos olhos.
Era ele quem me chamava de "baixote", que me puxava pra jogar bola, que me protegia dos meninos mais velhos com peito estufado e rebolado de valentia.
Era ele quem dizia:
— "Fica firme, baixote. O mundo lá fora pode até quebrar, mas nós não."
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Mas nem todo amor resiste à pólvora.
Fábio caiu.
Caiu porque tentou ajudar a mãe dele, pegando pó da boca pra vender e pagar remédio.
Coisa pequena.
Mas no Morro Azul, pequeno é sinônimo de morto.
**
Lembro como se fosse agora.
Tarde quente.
O céu pesado.
O cheiro de chuva misturado com medo.
Caveira mandou chamar Fábio.
Ele veio.
Suado.
Olho baixo.
Coração na boca.
Eu tava ali, pequeno no canto da sala, segurando o choro na garganta.
Fábio ajoelhou.
Implorou.
— "Padrinho, foi erro meu… me perdoa… juro que eu arrumo…"
Minha mãe correu da cozinha, as mãos tremendo.
— "Evaldo, não! Ele é só um menino!"
Ela tentou se colocar entre o Fábio e a arma.
Caveira nem piscou.
Empurrou ela de lado como quem afasta um saco vazio.
Ela caiu no chão, batendo a cabeça no canto da parede.
Ficou imóvel.
Não gritou.
Não gemeu.
Só apagou, como vela ao vento.
E eu?
Eu congelei.
Caveira olhou pra mim.
— "Olha bem, Kevin."
E atirou.
O tiro estourou o peito do Fábio.
O corpo dele tombou pesado, o sangue escorrendo pra debaixo da porta.
Silêncio.
Cheiro de morte.
Um silêncio tão alto que até o morro pareceu prender a respiração.
**
Meu pai apagou o cigarro na bochecha do morto.
Pegou minha mãozinha suada e sujou ela no sangue ainda quente.
— "Agora tu tá marcado."
**
Naquele dia, eu aprendi três coisas:
Primeiro:
Amor não impede bala.
Segundo:
Coração mole cava a própria cova.
Terceiro:
A dor é uma corrente. E eu seria a p***a da âncora.
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Minha mãe?
Nunca mais levantou.
O corpo dela sumiu do barraco na mesma noite.
Alguns dizem que o Caveira "resolveu o problema" — como fazia com tudo que fraquejava.
Outros dizem que ela morreu ali mesmo, naquela queda, quebrada por dentro e por fora.
Eu não procurei saber.
No Morro Azul, quem cava muito fundo… acaba caindo junto.
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Desde então, eu não era mais o Kevin.
Eu era só o vazio que sobrou.
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Hoje, sentado no trono de plástico da boca, com a pistola em uma mão e o cigarro na outra, eu sou a prova viva:
Quem sobrevive ao inferno… vira o próprio demônio.
E eu?
Eu sou o pesadelo que Caveira sonhou em parir.
**
O Morro Azul tem dono.
E esse dono não sente mais nada.
Nem amor.
Nem pena.
Nem dor.
Só vontade.
Vontade de nunca mais ser fraco.
Vontade de nunca mais ser quebrado.
Vontade de fazer o mundo engolir o nome que me fizeram cuspir com sangue:
Kevão.